quinta-feira, 5 de maio de 2016

E TEM CANDOMBLÉ, DO LIVRO AS SETE PORTAS DA BAHIA



Literatura e desenhos



Texto e desenhos de CARYBÉ o grande muralista ‘argentobaiano´

 

 Carybé

Que estranhou a cidade de mistério, que sua por todos os poros da Bahia. Ele está presente na mesa rica e na pobre, nos arvoredos sagrados, nos pés de loco, nas encruzilhadas onde moureja Exu, nos quindins das baianas, nas igrejas, nos mercados, nas folhas da mata.


As coisas do trivial, cotidiano e costumeiro, soma-se uma força sutil, uma imponderável presença, uma potência mágica que paira no ar.


Vendo uma quartinha ao pé de uma jaqueira ou de um iroco sentimos que ao mistério do lento ascender de sua seiva trazendo forças do fundo da terra soma-se outro mistério, o de saber que esse arvoredo é morada de um espírito, talvez de um deus, e a jaqueira se nos apresenta com uma força metafísica densa, insuspeitada.


Os santos católicos possuem dupla personalidade aqui. Assim Yemanjá é Nossa Senhora da Conceição, São Lázaro é Omolu, basta ir às segundas-feiras para sua pequena Igreja e veremos inúmeras oferendas de pipocas que é comida de Omolu; São Jorge é Oxossi, o caçador, e a Sant’Ana é Nanã Burucu, a mais velha das divindades da água.  Não há nisso desrespeito algum, a fé e a devoção são iguais como quer que o santo se apresente, se vestindo couraça montado em branco corcel, ou se farejando caça na mata, de arco e flecha na mão, a veneração será a mesma, a graça, pedida com a mesma unção.



Exu, que é sincretizado com o diabo, é o único que não casa bem com seus sósias católicos. O diabo é o diabo mesmo, ruim, implacável, Exu não, Exu é moleque, gosta de ser adulado, se sensibiliza com oferenda de um galo, uma garrafa de cachaça ou alguns charutos e então desfaz qualquer perversidade que maquinou em seu juízo travesso. Ele é antes de tudo o mensageiro dos Orixás. Ele é o encarregado de abrir os caminhos, de desentortar as longas estradas que nascem no Daomé e na Nigéria.


Os atabaques trovejam, o agogô repica seu som agudo, muito perfume e espelhos, e pentes bonitos, e sedas, joias e o que há de bom para Oxum que mora no dique, é a deusa mais dengosa, mais faceira, mais sabedora das coisas do amor.

Qualquer morador do Tororó ou da Usina já a viu sobre as águas verdes. As lavadeiras refletidas na água, que nem figuras de baralho, lhe cantam de cócoras, enxaguado as sujeiras dos outros. Muitas delas são suas filhas, suas deusas e não há quem duvide ao vê-las subir as empinadas ladeiras cavadas no barranco, com suas enormes trouxas à cabeça, seu pisar majestoso, o vestido molhado grudando no corpo e as potentes garupas da cor das cabaças moendo safras inteiras de samba. Sobem, sobem até suas figuras se recortarem no céu.


Vitorina, Oké, Pinguinho, Chica. Escuras como a noite, rocas, cor de formiga, de canela ou de pão, vendem bolo, fato, cocada, acarajé ou mingau mas seus corpos gordos ou esguios, cão o receptáculo dos Orixás nas noites em que as três luas de couro dos atabaques os chamam.


E os Orixás se congregam sob o teto humilde dos barracões da Bahia, vem Ogum, o guerreiro, Oxalá velho imaculado, apoiando a mão trêmula em seu cajado terminado em pássaro, Yemanjá tangendo espumas, cheirando a mar, Obaluaê transformando a febre e as convulsões em danças terríveis, belo no mistério da palha roxa que lhe cobre a figura. É nessa hora que o céu da Bahia se enfeita de foguetes, anunciadores da chegada desses deuses tão antigos, tão familiares, tão tangíveis que é possível lhes falar.   

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