Literatura e desenhos
Texto e
desenhos de CARYBÉ o grande muralista ‘argentobaiano´
Carybé
Que estranhou
a cidade de mistério, que sua por todos os poros da Bahia. Ele está presente na
mesa rica e na pobre, nos arvoredos sagrados, nos pés de loco, nas
encruzilhadas onde moureja Exu, nos quindins das baianas, nas igrejas, nos
mercados, nas folhas da mata.
As coisas do
trivial, cotidiano e costumeiro, soma-se uma força sutil, uma imponderável
presença, uma potência mágica que paira no ar.
Vendo uma
quartinha ao pé de uma jaqueira ou de um iroco sentimos que ao mistério do
lento ascender de sua seiva trazendo forças do fundo da terra soma-se outro
mistério, o de saber que esse arvoredo é morada de um espírito, talvez de um
deus, e a jaqueira se nos apresenta com uma força metafísica densa,
insuspeitada.
Os santos
católicos possuem dupla personalidade aqui. Assim Yemanjá é Nossa Senhora da
Conceição, São Lázaro é Omolu, basta ir às segundas-feiras para sua pequena
Igreja e veremos inúmeras oferendas de pipocas que é comida de Omolu; São Jorge
é Oxossi, o caçador, e a Sant’Ana é Nanã Burucu, a mais velha das divindades da
água. Não há nisso desrespeito algum, a
fé e a devoção são iguais como quer que o santo se apresente, se vestindo
couraça montado em branco corcel, ou se farejando caça na mata, de arco e
flecha na mão, a veneração será a mesma, a graça, pedida com a mesma unção.
Exu, que é
sincretizado com o diabo, é o único que não casa bem com seus sósias católicos.
O diabo é o diabo mesmo, ruim, implacável, Exu não, Exu é moleque, gosta de ser
adulado, se sensibiliza com oferenda de um galo, uma garrafa de cachaça ou
alguns charutos e então desfaz qualquer perversidade que maquinou em seu juízo
travesso. Ele é antes de tudo o mensageiro dos Orixás. Ele é o encarregado de
abrir os caminhos, de desentortar as longas estradas que nascem no Daomé e na
Nigéria.
Os atabaques
trovejam, o agogô repica seu som agudo, muito perfume e espelhos, e pentes
bonitos, e sedas, joias e o que há de bom para Oxum que mora no dique, é a
deusa mais dengosa, mais faceira, mais sabedora das coisas do amor.
Qualquer
morador do Tororó ou da Usina já a viu sobre as águas verdes. As lavadeiras
refletidas na água, que nem figuras de baralho, lhe cantam de cócoras,
enxaguado as sujeiras dos outros. Muitas delas são suas filhas, suas deusas e
não há quem duvide ao vê-las subir as empinadas ladeiras cavadas no barranco,
com suas enormes trouxas à cabeça, seu pisar majestoso, o vestido molhado
grudando no corpo e as potentes garupas da cor das cabaças moendo safras
inteiras de samba. Sobem, sobem até suas figuras se recortarem no céu.
Vitorina,
Oké, Pinguinho, Chica. Escuras como a noite, rocas, cor de formiga, de canela
ou de pão, vendem bolo, fato, cocada, acarajé ou mingau mas seus corpos gordos
ou esguios, cão o receptáculo dos Orixás nas noites em que as três luas de
couro dos atabaques os chamam.
E os Orixás
se congregam sob o teto humilde dos barracões da Bahia, vem Ogum, o guerreiro,
Oxalá velho imaculado, apoiando a mão trêmula em seu cajado terminado em
pássaro, Yemanjá tangendo espumas, cheirando a mar, Obaluaê transformando a
febre e as convulsões em danças terríveis, belo no mistério da palha roxa que
lhe cobre a figura. É nessa hora que o céu da Bahia se enfeita de foguetes,
anunciadores da chegada desses deuses tão antigos, tão familiares, tão
tangíveis que é possível lhes falar.
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