sábado, 8 de outubro de 2016

AS REVELADORAS PORTAS DE VICTOR HUGO

 Arte arquitetônica













  
Publicado por Leandro Dupré Cardoso,
“O “Questionando Histórias” é uma iniciativa que busca estimular a importância do maior diferencial inerente ao ser humano: a capacidade de gerar conhecimento.



A sua essência se baseia no entendimento dos “porquês”, das razões, dos motivos para que tudo acontecesse exatamente do jeito que ocorreu. Pois nada sucede por acaso.
É por isso que existe a necessidade de refletir sobre aquilo que se vê, questionar histórias a todo tempo, a fim de perceber o que é o mundo e, mais ainda, quem é você mesmo. Vamos sempre fortalecer essa corrente.”


Sobre como uma frase de Victor Hugo me levou a enxergar esses e outros objetos tão comuns do nosso cotidiano com uma visão bem mais aprofundada...



Mais um dia agitado, outra jornada corrida. Novamente a pressa do que é mais urgente atropela a precaução do que é mais importante. Coitado do importante, já não é tão novo assim... A ambulância até que tem chegado cada vez mais depressa para atendê-lo, mas é só pôr a cara para fora mais uma vez que se mostram ainda mais velozes a impaciência, a imprudência e os modos espeloteados de um trânsito desgovernado que é obrigado a passar por cima de quem para pelo caminho a fim de respirar um pouco.
É no meio dessa loucura que eu consigo achar um cantinho mais protegido onde posso trancar a porta e me separar do tráfego de costume. Aqui a velocidade é outra, as necessidades também. Quase um mundo paralelo. E é com essa visão de fora do olho do furacão que uma frase da obra de Victor Hugo começa a me perturbar:
“Quando se sabe ver, encontra-se o espírito de um século e a fisionomia de um rei até na aldrava de uma porta.”

E com vocês, Victor Hugo: vocês não adivinham o que ele também acabou de enxergar na expressão de espanto de vocês.
Trata-se de uma ideia que resume bem a opinião do autor: Victor Hugo destaca que, assim como as artes possuem uma linguagem própria de acordo com as características de cada uma, a arquitetura também possuiria uma para expressar as próprias mensagens. Que na verdade iria muito além de passar sensações de comodidade, segurança ou arrojo, mas sim a narração de toda a história que permeia determinada sociedade.
Como assim? O que será que tem se escondido atrás da minha porta? Como que um negócio tão comum pode falar tanta coisa sem que ninguém se dê conta? Interessante, acho que é uma boa hora para iniciar uma investigação mais apurada.
Mas logo ao princípio as buscas por evidências se mostram prejudicadas: não existem mais aldravas, muita gente nem sabe o que é isso. Quer dizer, provavelmente até sabe, mas desconhece que aquelas argolas de ferro penduradas no meio de portas de séculos passados tivessem esse nome de “aldravas”.

Leitor, esta é a aldrava. Aldrava, este é o leitor.
Essas aldravas faziam parte de um conjunto formado por grandes portas de madeira, ferro ou de outros materiais mais pesados e resistentes dependendo da importância do que estivesse atrás de cada uma. No entanto, além da sua função primária de ocultar e proteger alguma posse ou simplesmente garantir mais privacidade, o conceito infere que cada porta ostentava também as personalidades dos habitantes da casa assim como os demais móveis igualmente o fariam.
Considerando as famílias mais humildes isto fica mais claro ao se pensar que as suas portas seriam montadas pelos próprios moradores ou por pequenos marceneiros e artesãos. Podia demorar um pouco e o incômodo por ficar sem esse precioso objeto devia ser um bocado preocupante. Contudo, mesmo antes de finalmente pronta, seria fácil identificar o produto acabado: provavelmente de madeira maciça simples e sem ornamentos considerando o pouco para gastar em portas modernas e também o pouco para esconder em seus lares. A ausência completa de aldravas não devia ser realmente um problema, bastava bater na porta diretamente. Talvez trouxesse até uma aproximação maior entre os visitantes e os donos da casa.
O que definitivamente não deveria ocorrer perante portas mais sofisticadas: sabe aquelas entradas de igrejas antigas (e até atuais também) que são tão altas com o objetivo de fazer você se sentir bem menor do que é? Para distanciar o máximo possível você dos entes divinos? Você certamente já teve esta impressão antes. Não só igrejas como toda a elite da sociedade não procurava pequenos trabalhadores para as suas construções. A maioria lidava com pintores, escultores e outros artistas mais renomados junto às suas equipes de profissionais altamente capacitados.
Mesmo assim os produtos finais dependiam muito do gosto do cliente desde que este poderia pagar pelos detalhes adicionais. E seriam estes mesmos pormenores que diferenciariam uma família rica da outra. Afinal, todos possuem portas. Mas só eu tenho esta toda rebuscada nas pontas de acordo com o padrão de sinuosidade do rio Sena e pequenos vitrais quadriculados que refletem o meu próprio ar de elegância enquanto dou voltas com o meu cachorro no parque. A guerra de egos não tem fim desde que uma família sempre quer demonstrar superioridade sobre a outra. Neste caso, a aldrava tem uma função bem mais valiosa do que simplesmente anunciar a chegada de alguém, que é a função social de se mostrar mais luxuosa e interessante que a do vizinho. No entanto, a forma como isto acontece pode variar de época para época, como Victor Hugo ressalta ao introduzir o século e a regência como variáveis desta equação.
Por consequência, durante reinados menos conturbados, as aldravas geralmente deveriam privilegiar cores vibrantes, as modas artísticas vigentes e possuírem argolas mais leves e finas para facilitar o contato com futuros hóspedes. Ao passo que, em períodos de crise, as argolas já seriam grossas e pesadas ao desejarem separar os moradores dos ares de mau agouro que pairam do lado de fora. As formas artísticas seriam mais ignoradas, talvez somente investindo em desenhar o rosto de algum monstro horripilante ao redor da aldrava para que os seus olhos fuzilassem previamente qualquer possível visitante e a sua boca escancarada de dentes parecesse devorar a mão de qualquer um que ousasse encostar na argola que levava presa ao nariz. É claro que na prática a divisão é muito mais tênue entre épocas de bonança e de dificuldades e mesmo cada morador ainda detém a própria personalidade para querer a porta que bem quisesse. Mas a tendência geral realmente tendia a acompanhar o ânimo do clima que nos cerca.

A argola não está exatamente no nariz, mas esse olhar não deixa de ser um bocado intimidador...
E assim chegamos aos dias de hoje em que as aldravas estão extintas e os reis viraram peças nos museus de cera. Será que esse pensamento ainda consegue ser válido? As portas atuais honram a tradição deixada pelas antigas? Decerto que sim. Afinal, elas ainda abrem e fecham, quebram o vento, isolam-nos do frio, e arrebentam os dedos mínimos dos pés como sempre fizeram. Ganharam algumas modernidades como a campainha e o olho mágico, mas que apenas complementam o seu uso habitual para isolar determinados bens e privacidades.
Se formos olhar bem, até os seus padrões de demanda não mudaram tanto: os mais humildes ainda possuem portas simples de madeira e os mais abastados arranjaram tipos ainda mais variados de formas, estilos e materiais para satisfazerem a mesma necessidade de mostrarem entradas mais bonitas que a do concorrente. De qualquer maneira, as portas tanto de um quanto de outro têm a cara dos próprios moradores. Parece lógico. Diabolicamente lógico.
Mas então eu olho para a porta que continua a me trancar nesse meio-tempo. Procure também avistar alguma que esteja perto de você e faça essa pergunta: será que essa porta realmente tem a sua cara? Se ficou em dúvida ou também não teve a mínima ideia do que responder, talvez seja porque essa porta foi feita para um grupo de consumidores de classe média e não especificamente para você.
Acontece que até a era moderna as diferenças econômicas eram muito mais gritantes: se você não fazia parte nem do clero nem da nobreza, o que praticamente lhe restava era ser servo. Só que a revolução industrial introduziu essa nova categoria de assalariados com alguma importância econômica, fortalecendo os burgueses e comerciantes em geral. O poder econômico ganhou mais relevância do que o poder político. Por isso houve uma grande desconcentração de poder que culminou na criação desse estranho povo, chamado classe média. Um pessoal nem lá nem cá, que tem a cabeça dos ricos e a carteira dos pobres. Pessoas que de maneira geral não têm muita certeza da própria posição no mundo e, consequentemente, não possuem uma ideologia particular.
É por isso que essa porta não me parece dizer muita coisa? Ela foi fabricada em massa somente com variações mínimas para os gostos de cada um. Mas são todas basicamente as mesmas portas. Isto não deixa de ser bom, pois leva peças mais baratas para mais gente. Só que são portas que não representam os seus donos, mas simplesmente a indústria que as produziu. Já que a classe média não possui uma característica comum forte, foi o próprio sistema que lhe tratou de impor as peculiaridades que mais lhe interessam. Tais objetos ainda têm que ser seguros, resistentes e atenderem a outras funções essenciais, obviamente, não adianta montar qualquer porcaria ou a peça ficará para sempre em estoque. Porém, respeitando-se o mínimo para conseguir a venda, o cliente pouco mais importa. Então que se façam portas em grande escala, com poucos adornos e material econômico para baratear os custos. Não que isto seja necessariamente ruim ou bom, mas que decerto deixou de lado a nossa personalidade em prol da maximização do lucro.
É, essa porta não diz muita coisa sobre mim, mas diz sobre o ambiente que me rodeia. O espírito do nosso século é o da eficiência, da padronização. E a fisionomia do nosso rei está longe de ser um rosto, mas sim a figura abstrata formada por um conjunto restrito de pessoas, organizações e nações que regem a economia mundial. Esta é a resposta que dou para Victor Hugo hoje. Afinal, antigamente nós fabricávamos portas de acordo com a identidade que autodefiníamos. E hoje as portas são produzidas com a finalidade de estabelecer a identidade que deixamos de definir para nós mesmos.



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