quarta-feira, 16 de novembro de 2016

DAS ‘PORRADAS’ QUE LEVAMOS NA VIDA

 Literatura





  
Publicado por Karla Kélvia


Fernando Pessoa, através de um dos seus heterônimos ( Álvaro de Campos), criou um dos poemas mais contundentes em termos de consciência das fraquezas humanas: “Poema em linha reta”. O eu lírico surge como alguém que não se encaixa na vida justamente por ser humano demais para viver em um mundo de gente asséptica e perfeita.





Era apenas uma garota que achava que nunca ninguém olharia para ela com olhos de desejo. Era apenas um trabalhador que voltava cansado para casa, sem saber como pagar todas as contas. Era apenas uma garota adolescente que tinha engravidado sem querer e que não sabia como cuidar de um filho.
São tantas as vezes em que somos atingidos por “porradas” nesta vida, golpes duros dos quais não sabemos nos desviar, não podemos, ficamos paralisados. Lembro da primeira vez que li “Poema em linha reta”, de Fernando Pessoa, assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos. Dezoito anos, terceiro ano do Ensino Médio, tantas coisas a serem resolvidas de imediato, tanta pressão, como se a nossa vida pudesse resolvida ali com o vestibular. Fiquei chocada com o termo “porrada”.
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
O impacto daquela palavra em um poema me entonteceu como se eu tivesse realmente levado um safanão. Estava em uma fase em que a realidade batia à porta, exigia atenção, em que saber fórmulas, datas, regras, leis de Mendel, Newton, e tudo aquilo mais, de alguma forma, não me parecia ser o suficiente. Todos queriam uma campeã, mas eu me sentia mais a que tinha levado porrada na vida. Depois de um frustrante vestibular após acabar a escola, a vida foi me ensinando que realmente ninguém escapa de uns tabefes. Claro, uns mais, outros menos. Alguns sabem disfarçar melhor:
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
O que o atormentado e pessimista Álvaro de Campos diria da sociedade em que vivemos hoje? Todos os que postam fotos felizes nas redes sociais, e que não utilizam filtro apenas nelas, mas em tudo, na forma como são e agem, são os “príncipes” perfeitos. Nunca sofreram como o eu lírico do poema, como eu para entender que profissão seguir e como lidar com as coisas práticas da vida, como os pobres trabalhadores endividados, as jovens mães solteiras, as pessoas de baixa autoestima.
O que é preciso hoje? Ser perfeito. Sempre postar fotos felizes, com o corpo em forma, sorriso estampado, frases de efeito, festas maravilhosas, companheiros perfeitos. Sempre me vem esse poema à mente quando vejo tanta plastificação. É quase como se existisse um padrão de qualidade para a felicidade, quem não o atinge é o perdedor, o que fica à margem porque as olheiras, o cabelo feio por não ter tempo de cuidar, as roupas simples de quem precisa priorizar o alimento ao invés da moda não são coisas de “príncipes”.
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
“Poema em linha reta” me fascinou profundamente. Eu estava descobrindo a poesia, as formas várias de ela poder ser escrita, e aquela influência foi para além da literatura. Se hoje eu leciono justamente esta matéria, é porque senti que o que pensamos e sentimos pode ser expresso de forma mágica, forte, imortal.
Ler Fernando Pessoa, para mim, sempre foi além da teoria. É mergulhar nos muitos aspectos que nos tornam humanos, reais. O poeta que estilhaçou-se por completo, sendo gigante em qualquer que fosse a autoria que atribuía aos seus escritos, levou tantas porradas que morreu pobre, isolado, com o fígado acabado pelo álcool. Morreu sem saber que depois seria descoberto genial, atemporal, único. Será que ele se ri, onde quer que esteja, de ser considerado um cânone, o que seria o equivalente ao “príncipe” da cultura? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Muitos de nós nunca poderão chegar tão longe das porradas, sejam elas figurativas ou não. Muitos de nós serão golpeados no coração, na alma, no bolso, na dignidade. Sempre sendo humanos demais para viver em uma bolha de perfeição.





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