Literatura
Publicado por Karla Kélvia
Fernando Pessoa, através
de um dos seus heterônimos ( Álvaro de Campos), criou um dos poemas mais
contundentes em termos de consciência das fraquezas humanas: “Poema em linha
reta”. O eu lírico surge como alguém que não se encaixa na vida justamente por
ser humano demais para viver em um mundo de gente asséptica e perfeita.
Era apenas uma garota que achava que nunca
ninguém olharia para ela com olhos de desejo. Era apenas um trabalhador que
voltava cansado para casa, sem saber como pagar todas as contas. Era apenas uma
garota adolescente que tinha engravidado sem querer e que não sabia como cuidar
de um filho.
São tantas as vezes em que somos atingidos
por “porradas” nesta vida, golpes duros dos quais não sabemos nos desviar, não
podemos, ficamos paralisados. Lembro da primeira vez que li “Poema em linha
reta”, de Fernando Pessoa, assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos. Dezoito
anos, terceiro ano do Ensino Médio, tantas coisas a serem resolvidas de
imediato, tanta pressão, como se a nossa vida pudesse resolvida ali com o
vestibular. Fiquei chocada com o termo “porrada”.
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos
têm sido campeões em tudo.
O impacto daquela palavra em um poema me
entonteceu como se eu tivesse realmente levado um safanão. Estava em uma fase
em que a realidade batia à porta, exigia atenção, em que saber fórmulas, datas,
regras, leis de Mendel, Newton, e tudo aquilo mais, de alguma forma, não me
parecia ser o suficiente. Todos queriam uma campeã, mas eu me sentia mais a que
tinha levado porrada na vida. Depois de um frustrante vestibular após acabar a
escola, a vida foi me ensinando que realmente ninguém escapa de uns tabefes.
Claro, uns mais, outros menos. Alguns sabem disfarçar melhor:
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato
ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe
- todos eles príncipes - na vida...
O que o atormentado e pessimista Álvaro de
Campos diria da sociedade em que vivemos hoje? Todos os que postam fotos
felizes nas redes sociais, e que não utilizam filtro apenas nelas, mas em tudo,
na forma como são e agem, são os “príncipes” perfeitos. Nunca sofreram como o
eu lírico do poema, como eu para entender que profissão seguir e como lidar com
as coisas práticas da vida, como os pobres trabalhadores endividados, as jovens
mães solteiras, as pessoas de baixa autoestima.
O que é preciso hoje? Ser perfeito. Sempre
postar fotos felizes, com o corpo em forma, sorriso estampado, frases de
efeito, festas maravilhosas, companheiros perfeitos. Sempre me vem esse poema à
mente quando vejo tanta plastificação. É quase como se existisse um padrão de
qualidade para a felicidade, quem não o atinge é o perdedor, o que fica à
margem porque as olheiras, o cabelo feio por não ter tempo de cuidar, as roupas
simples de quem precisa priorizar o alimento ao invés da moda não são coisas de
“príncipes”.
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no
mundo?
“Poema em linha reta” me fascinou
profundamente. Eu estava descobrindo a poesia, as formas várias de ela poder
ser escrita, e aquela influência foi para além da literatura. Se hoje eu
leciono justamente esta matéria, é porque senti que o que pensamos e sentimos
pode ser expresso de forma mágica, forte, imortal.
Ler Fernando Pessoa, para mim, sempre foi
além da teoria. É mergulhar nos muitos aspectos que nos tornam humanos, reais.
O poeta que estilhaçou-se por completo, sendo gigante em qualquer que fosse a
autoria que atribuía aos seus escritos, levou tantas porradas que morreu pobre,
isolado, com o fígado acabado pelo álcool. Morreu sem saber que depois seria
descoberto genial, atemporal, único. Será que ele se ri, onde quer que esteja,
de ser considerado um cânone, o que seria o equivalente ao “príncipe” da
cultura? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Muitos de nós nunca poderão chegar tão longe
das porradas, sejam elas figurativas ou não. Muitos de nós serão golpeados no
coração, na alma, no bolso, na dignidade. Sempre sendo humanos demais para
viver em uma bolha de perfeição.
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