sábado, 19 de novembro de 2016

SOBRE A IDEIA DE DEUS NA POESIA DE FERNANDO PESSOA

 Literatura: poesia







Publicado por Ana Lúcia Gosling
“Apenas me demoro mais observando as coisas...você não?”


Fernando Pessoa é um dos maiores poetas da Língua Portuguesa e ainda hoje é revisitado frequentemente porque sua poesia, tanto na talentosa forma que se expressa quanto nas ideias que veicula, ainda se mantém atual. Entre as muitas leituras possíveis, debruçamos o olhar sobre uma possível concepção da idéia de Deus na sua obra, que rompe com as construções religiosas vigentes e enaltece a identificação e o carinho por uma imagem mais humana do divino, talvez preenchendo uma lacuna do coração humano atual.







Todos que admiram a poesia de Fernando Pessoa deveriam descobrir ângulos novos para a leitura de seus textos. Porque o autor se presta sempre a essa experiência, já que sua poesia é riquíssima, o que faz dele, ainda, um dos poetas mais populares de todos os tempos.
Particularmente, algo que me chama a atenção é a sua relação com o divino, pois seus heterônimos sempre trouxeram à baila imagens descritivas do panteísmo (a ideia de que Deus é o todo, a universalidade dos seres) e do paganismo (espécie de religião que não é monoteísta, ou seja, acredita na existência de vários deuses). Isso sempre me sugeriu o fascínio do poeta pelo ocultismo, pelo desconhecido.
Longe de ser ateu e de desacreditar de Deus, Fernando Pessoa parece tentar a propositura de uma nova idéia de Deus, com a qual se relaciona de forma menos transcendental, mais humana e, por isso, mais carinhosa.
Na poesia de Alberto Caeiro, por exemplo, matéria e espírito são, ambos, manifestações reais de Deus, existindo Ele ou não além dessas manifestações. Como bom panteísta, Caeiro concebe a natureza como uma realidade que nela mesma encontra sua razão de existir e sua unidade. São dele os famosos versos “Mas se Deus é as flores e as árvores/E os montes e o sol e o luar,/Então acredito nele,/Então acredito nele a toda hora/.../Mas se Deus é as árvores e as flores/E os montes e o luar e o sol,/Para que lhe chamo eu de Deus?”.
Caeiro é o pagão em essência, que busca restituir uma certa pureza original ao homem, afastando-o dos conceitos e dogmas que o aprisionam. Através de sua voz, Pessoa tentou construir a essência do pensamento que nos poderia levar à verdade absoluta.
E, em oposição a isso, o poeta produz a figura, criticada, do “triste deus cristão” - triste porque é construído e, por isso, distante e frio. Num dos poemas mais famosos de Caeiro, Jesus é um menino descido do céu que confidencia ao amigo (o poeta) as histórias celestiais: que fora concebido sem amor, que não tem pai, que o Espírito Santo se coça e suja as cadeiras do céu, que Deus escarra e diz indecências. As imagens criadas para a descrição do céu são inversamente opostas a todas as imagens construídas pelas igrejas cristãs e, para alguns, soam até ofensivas. Mas se notamos, nos demais versos do mesmo poema, o carinho com que o poeta descreve a pureza e a naturalidade da criança que Jesus é, que pula poças, brinca e ri-se da vida e dorme aconchegado em seu ser, entendemos que o poema é só uma severa crítica aos dogmas e convenções com que a Igreja cobrira a figura do divino. É, na verdade, o enaltecimento de um deus humanizado, amigo e, por isso, realmente divino. É uma busca de harmonização com a essência do Cristo. Assim, o poeta tenta separar a ideia da essência de Deus das ideias criadas pelas igrejas sobre Deus. E reconciliar-se, assim, com o divino.
De toda forma, nas vozes narrativas da poesia de Fernando Pessoa, Deus existe, é o fim da estrada, o portal de passagem para o desconhecido, que comprovaria ao homem sua finitude e mortalidade. Eis a confissão dessa crença presente nos versos do antônimo Pessoa: “...E, perto ou longe, grande lago mudo,/O mundo, o informe mundo onde há vida.../E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...”.
Talvez sonhasse o poeta com uma doutrina que transcendesse todas as existentes, aproximando-se mais da verdade. Mas o projeto proposto é, no fundo, uma busca sem uma resposta final. É um tentar entender e sentir e, no percurso, viver de angústias. E não é um projeto religioso – é literário, uma leitura da poesia de Fernando Pessoa a que se permitem tantas leituras, sempre atuais.
Como também permanecem atuais as discussões sobre as diversas concepções religiosas dos dias em que vivemos estarem afastadas (ou não) da essência de Deus, o que evidencia a necessidade constante de que o homem tem de relacionar-se com a vida de forma mais espiritualizada e, por que não?, mais amorosa.
Assim, a angústia do poeta é comum ainda ao homem de hoje, o que mantém a poesia de Fernando Pessoa viva em significados, permitindo que sua voz sempre se renove, em sintonia com o que há nas mentes e nos corações do mundo contemporâneo.

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