Luiz Carlos Facó*
Carybé, artista plástico, muralista, com o seu característico sotaque argênteo-baiano, reuniu um grupo de amigos e confidenciou:
- Soube por fonte fidedigna que o homem chega aqui no próximo dia seis de agosto às dezenove e trinta horas. Desta vez é pra valer. Ele resistirá a todos os apelos para ficar. Até aos de Zélia. Nada o fará desistir. Já tomou uma decisão sem retrocesso. Avisem a todos que faremos uma festa de arromba a fim de recepcioná-lo. Aviem-se. Se cada qual fizer a sua parte, nada dará errado. Ele gostará de nos ver. - E em tom de determinação, acrescentou:
- Não esqueçam de comunicar aos demais. Peçam a Dona Flor que se encarregue da comida. Da moqueca de arraia, do siri catado, do xinxim de galinha, do bobó de camarão. E dos doces, também. Ela se sentirá honrada em preparar os quitutes. As bebidas ficarão por conta do Quincas Berro D’Água. Ele sabe como consegui-las. O importante é que todos estejam a postos na hora exata. Nada deve falhar.
Foi assim, com simplicidade, que Carybé comunicou, na sala de reuniões do céu, a próxima chegada do fraterno companheiro àquelas paragens.
Mirabeau e Norma Sampaio, Pierre Verger, Hansen Bahia, Diógenes Rebouças, Genaro de Carvalho, João Batista Caribé, Hélio Simões, Jair Francisco Burgos “o escultor da pelve feminina”, vibraram com a notícia recebida. Bateram palmas. Ficaram eufóricos. Estavam loucos para revê-lo. Saber de todas as novidades da Bahia. Matar as saudades. Jogar pôquer com o velho parceiro, mesmo sabendo que seriam furtados por ele.
Pierre tomou a si a tarefa de avisar a mãe Senhora, à mãe Menininha do Gantois e a mãe Creusa. Hansen-Bahia, em informar a Vadinho. Um grande desafio. Pois o farrista continuava o mesmo. De nuvem em nuvem, à procura de uma roleta ou de uma mulher fogosa, com bunda grande, para se deitar. Talvez, quem sabe, se estivesse na pindaíba, buscando descontar com Clemente Mariani, Fernando Góes ou Miguel Calmon, banqueiros, uma daquelas promissórias irresgatável, avalizada por Raimundo Reis, como ele, caloteiro sem remédio.
Contentíssimos e plenos de expectativa ficaram Albert Camus e André Malraux.
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, quando souberam da boa nova, foram correndo à procura de Carybé.
- Só peço, querido companheiro, não convidar nenhum político para a festa. Em época de eleição, todo cuidado é pouco. Provavelmente, eles não perderão a oportunidade para transformar nossa manifestação de apreço num comício. Você sabe como eles são. Concluiu Sartre sem hesitações.
Solicitação endossada sem maiores discussões.
Camafeu de Oxóssi, ao tomar conhecimento da próxima chegada do irmãozinho Jorge, desfez todos os seus compromissos e partiu para arregimentar as equédes, os alabês, conhecidos, instigando-os a preparar e afinar seus atabaques para a reunião próxima.
- Onde já se viu uma festa em homenagem a um dos mais queridos filhos de Oxóssi sem o repenicar daqueles instrumentos?
Não foi menor a satisfação de Quincas Berro D’água. Aquela era uma chegada que aguardara há muito tempo. Agora, dizia ele:
- Aquele porreta vai me contar direitinho como eu morri. Vai colocar tudo em pratos limpos.
Sob os aplausos de Curió, Pé-de-Vento, Cabo Martim, Negro Pastinha, Tieta, Tereza Batista, ainda em guerra, mas não tão cansada, Carmela, Doralice, Quitéria do Olho Arregalado, Mestre Manuel, a gorda Margô e de Pedro Arcanjo fora da Tenda dos Milagres.
Só havia um porém. A branquinha da boa, a de estalar na língua, de cheiro gostoso, de cana-caiana, estava em falta.
- Nos botecos daqui só encontro vinho. Uma merda - dizia desconsolado Quincas.
Teresa, contudo, o acalmou.
- Fique tranquilo. Cachaça não faltará. Tenho onde consegui-la.
Foram as palavras mais doces que Quincas ouvira depois do anúncio de que Jorge achava-se prestes a chegar.
Mãe Menininha, Senhora e Creusa já haviam convocado todos os Orixás, os da terra e os das águas.
“O Compadre”, Exu, foi o primeiro a ser chamado. Não desejavam irritá-lo. Depois, naturalmente, estenderam o chamamento a Oxóssi, Ogum, Logunedé, Inlé, Omolu, Aguê, Xangô, Nanã, Dadá, Oxumarê, Oxalá, Oxum, Iemanjá, Oyá, Obá, Ossâim. Todos, alvoroçados, correram a providenciar suas melhores roupas e a luzir suas jóias, contas, oxês, ibiris, alfanges, iruexins de rabo de cavalo.
Por melhor que estivessem ou se apresentassem, era muito pouco para saudar o velho capitão de Navegação de Cabotagem.
Mirabeau e Norma, num canto, entre sorrisos largos, teciam seus comentários. Mirabeau afirmando:
- Já não era sem tempo. Ele demorou muito a se decidir. Acho que resistiu demais.
- Provavelmente, isso aconteceu por causa da Zélia, do João Jorge e de Paloma. Ele não queria abandoná-los. Principalmente, deixar de usufruir do amor de Zélia. Tão aconchegante, pleno de ternura, maduro, continuado, isento de suspeitas, vivido intensa e ininterruptamente - retrucou Norma.
- Porém, ao procrastinar a sua decisão, aumentou o seu sofrimento. Depois de ter sido cassado no seu direito de ler, escrever, fazer nascer novas personagens, de ver claramente o rosto dos amigos, ele deve ter se desencantado com a vida. Avalio a sua angústia. Já que a vida era a sua inspiração - lamuriou Mirabeau. E, prosseguindo, concluiu:
- Será que valeu a pena ele não ter se apressado em vir? Sabedor que jamais morreria? Não por ter sido eleito imortal, nem por haver vestido aquele fardão ridículo. Mas pelo que ele construiu. Pelo amor dedicado à sua terra, à sua gente. Pela defesa das causas da liberdade. Lembra-se do quanto nos emocionamos e choramos ao lermos Subterrâneos da Liberdade - Ásperos Tempos, Agonia da Noite, A Luz no Túnel?
- Concordo com você. Mas garanto que os nossos amigos lá de baixo hão de chorar muito pela viagem que ele irá empreender. Não entenderão que ele jamais os abandonará. Permanecendo na mesma casa do Rio Vermelho, sentado sob sua mangueira, ideando novos livros, criando novas personagens tão ao seu gosto. Olhando o céu para contar estrelas, sem perder o senso, parafraseando Bilac. Tenho certeza de que, por não entenderem sua deserção, suas razões, ela se dará sem aplausos. Nem mesmo os de Zélia ou os dos filhos, submetidos à depressão, ao pranto.
Ao lado, na Arcádia Celestial, Austregésilo de Ataíde, seu presidente, como o fora por tempos imemoriais da Academia Brasileira de Letras, escalava uma comissão de doutos para recepcionar o notável confrade, que tomou a seguinte feição: Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, Sinclair Lewis, Eugene O’ Neill, T. S. Eliot, Ernest Hemingway e John Steinbeck. Sob os protestos de Cuíca de Santo Amaro e do Major Cosme de Farias. Desejosos de que da comissão participasse, ao menos, um escritor conterrâneo, como o grande Adonias Filho, por exemplo, até mesmo, pelo bom pernambucano Odorico Tavares. Cosme ia além, requeria a sua imediata extinção.
- Pra baianos ela é elitista – enfatizava convictamente o velho Cosme.
E, com a elegância que lhe era peculiar, pleiteava que ela tivesse cheiro de povo, como os desfiles de 2 de Julho, em cuja oportunidade ele garbosamente desfilava com a sua Liga Baiana Contra o Analfabetismo.
Se pensava assim, o Coronel Agnaldo Sampaio Pereira, de Farda Fardão Camisola de Dormir, também presente à discussão, não opinava.
Naquele instante, a azáfama se instalara no paraíso. A notícia se tornara de domínio celeste. Graças aos querubins que, indo e vindo, providenciavam fazê-la chegar aos mais distantes paradeiros.
Ilustração: Carlos Bastos
Foi dessa maneira que a turma de Ilhéus tomou conhecimento da novidade. Gabriela, Nacib, Coronel Ramiro.
O Bataclã cerrou as portas. Aquela noite era de Jorge.
Num átimo, Gabriela se aprontou, colocando até sapatos, o que não era do seu feitio, disposta a socorrer dona Flor no preparo dos acepipes. Como boa cozinheira ela não podia se furtar em dar ajuda. Em preparar para o querido Jorge os seus famosos bolinhos, os acarajés, os abarás, que aguavam os clientes de Nacib, no bar Vesúvio.
No dia aprazado, algumas horas antes do desenlace, Jorge deu os primeiros sinais de sua iminente partida. Levaram-no ao hospital, o mesmo de tantas visitas. Entregaram-no aos cuidados do seu amigo e médico assistente, que, sôfrego por salvá-lo, usou todo o seu arsenal de conhecimentos. Nada adiantou. A determinação de Jorge era não fugir daquele instante.
Arredar-se do que decidira, seria covardia. Por isso fez-se surdo aos apelos de todos para voltar. Na verdade, dessa vez, ele não os quis ouvir. Forças ainda lhe restavam para reverter o epílogo próximo, caso assentisse aos chamamentos feitos em coro. Mas eles se faziam vãos. Jorge estava firme na proposição de rever os amigos que haviam partido. De explorar novos caminhos. De voltar a ver, escrever, viver sem restrições. E o fez as dezenove e trinta, pouco depois da hora do Ângelus, sem dar maiores trabalhos, quando cerrou os olhos e abriu um sorriso feliz. O mesmo que ele vira no semblante morto de Quincas Berro D’água. Um sorriso de libertação, de felicidade, de esperança, até de deboche.
Nesse instante, o povo da Bahia chorou. Todo o brasileiro, também. O mundo todo lamentou tão grande perda.
Bobos! Como podem pensar que ele se foi em definitivo quando suas obras estão aqui mostrando-o de corpo presente? Suas personagens, livres de qualquer tutela, correm o planeta dizendo ser parte dele. Principalmente, quando mostrou que a vida não se reduz a um mero trânsito, mas a uma epopéia cotidiana.
Recebido, com honras, por São Pedro, Jorge foi surpreendido ao ver aos pés do santo um sapo a coaxar – Jorge colecionava sapos moldados em cerâmica. Com seus botões pensou ser obra do canalha Carybé em mais uma de suas brincadeiras. E era. Soube depois.
Ilustração: Cátia Amélia (artista plástica)
Enquanto a consternação pairava por aqui, lá no céu tudo era festa. Vadinho, à frente de uma ala dos Filhos de Gandhi, gritava:
- Hoje é carnaval, vamos nos divertir, seus bostas. Jorge chegou.
Ilustração: Carlos Bastos (Carnaval no Céu)
Gláuber Rocha, com uma câmara nas mãos e uma idéia na cabeça, afastando os circunstantes, berrava:
- Deixa filmar, pessoal - ao mesmo tempo em que perguntava:
- Jorge, trouxe algum roteiro?
A balbúrdia era geral.
O formalismo ideado por Austregésilo ruíra. Só prosperava a esculhambação baiana. O que deu azo a Vinícius de Morais, com um copo de úisque envelhecido em uma das mãos, afirmar ao seu companheiro Tom Jobim fumando com tranquilidade um havana:
- Esses baianos são porretas para fazer uma festa. São imbatíveis.
As mulheres da zona, do Largo de São Francisco, do Pelourinho, de São Miguel, da Ladeira da Montanha, do Buraco Doce, cafetões, bêbados, ex sem-tetos, hoje, com céu, capitães de areia, coronéis, rufiões, xibungos, toda a ralé baiana, misturada com intelectuais posudos, ensimesmados, políticos oportunistas, amigos de fé, irmãos camaradas, estavam reunidos naquela zorra. Naquela festa de arromba para saudar Jorge Amado. Que, assustado e aturdido com tantos abraços e beijos, só então pode dimensionar a sua estatura e o quanto é querido.
Até Deus mandou representante. Apesar de saber que Jorge dissimulasse não acreditar na Sua existência. Tão evidente nele mesmo. Um criador, como o Grande Arquiteto do Universo.
Não conto sobre o resto da festa, pois até hoje ela não acabou. Se é que vai acabar.
* Conto extraído do livro CONTOS em CANTOS SAUDOSOS.
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