segunda-feira, 5 de novembro de 2012

LÚCIO E AS PELADAS DE RUA

Extraída do livro Recordações da vila de São Sebastião do Alto Gandu

                               Newton Padua*
A cidade não era calçada e a garotada descalça se juntava ao final das tardes para as peladas de rua, porque futebol era a paixão, crescente. O Brasil iria participar da Copa do Mundo de 1938.  Os craques Perácio, Romeu, Martin, Patesko, Walter – admirável goleiro –, Leônidas – o diamante negro – e, tantos outros, que eram divulgados colecionados por nós, através fotografias, distribuídas como brindes pelas, então famosas, balinhas-doce. Às transmissões dos jogos, nos quais a maioria desses jogadores participava eram captadas no rádio instalado do bar de Farid, carregadas de ruídos estridentes quando não emudecidas nos instantes mais cruciais dos jogos: como na marcação de uma penalidade máxima ou de um gol. Mesmo assim, não abandonávamos o rádio. Enfrentávamos tais dificuldades nos aproximando do preguiçoso aparelhinho e nos púnhamos nas pontas dos pés na tentativa de buscar o som que se escafedia para nos atarantar, como fazem em brincadeiras, Tom e Jerry.
                Cada guri se sentia um craque daqueles. Luiz Ferreira e Jadir Cedro compunham o meio-de-campo, a espinhal dorsal dos times. Omar estava lá garantindo a retaguarda. No campo gramado obedeciam as ordens de “seu” Máximo, treinador compenetrado daquele time infanto-juvenil. Mas para a escalação dos times litigantes o treinador se via em palpos de aranha. O nosso e o time dos mais velhos disputavam um mesmo jogador: Cocota, centro avante, temido goleador e driblador emérito. O negrinho era um porreta, parecia o diabo em pessoa. Fazia “embaixada”, “trivela”, dava “chapéu”, e com um jogo de corpo a Silvestre, fazia estatelar no chão o adversário. Além do mais, sabia fazer como poucos o principal: colocar a bola na rede.
                A poeira das ruas engrandecia o espetáculo
                Os mais velhos – como se respeitavam os homens daquele tempo – vinham ver Cocota jogar. Era um Zezinho da praça do quartel de Vitória, aquele do Botafogo do Rio e da Seleção Brasileira. Aliás, Zezinho é quem era como Cocota.
                O negrinho chegara mesmo a participar dos treinos do time dos adultos. Mas seu físico franzino era impróprio para o corpo a corpo, embora, tal qual uma ágil lebre, soubesse evitar as faltas, sobremodo, as perversas caneladas dos seus marcadores. Num daqueles treinos chegou a driblar todo o time adversário até fazer o gol. Por segurança, quiçá, por desencargo de consciência muitos o recusavam no quadro principal. – “Alguém ainda quebra este moleque” – diziam.
                Além dos Schwartz – Amir e Quilim -, outro companheiro muito disputado era o Lúcio Soares, no estaleiro por muitos meses, sem que os colegas se apercebessem do seu grave estado de saúde. Disso só tomaram consciência numa triste tarde.
                Naquela ocasião ele insistira com os pais para colocá-lo numa espreguiçadeira ali na calçada, para assistir à pelada da turma. A seu pedido, ainda, o jogo se prolongou até a noitinha. Não queria que os amigos debandassem. Queria-os ali enquanto força tivesse para desfrutar deles. Doutro lado, seus companheiros, de tantas peladas, não escondiam o constrangimento por vê-lo naquele débil estado físico. Estava muito magro e pálido. A todos parecera que chegara ao fim de sua caminhada terrena.
                Em campo, dado aquele triste quadro, todos atuavam mal. Cocota, não era exceção. Mas diante de Lúcio, ele e seus companheiros procuravam se mostrar alegres. Cocota ouvira dizer que no palco o artista deve esconder a tristeza e mesmo chegar a rir em plena amargura. Por isso fez força para se comportar dessa maneira, mesmo arrasado como se encontrava juntamente com seus pequenos companheiros de corações tão grandes.
                O certo é que naquela triste tarde não houve vencidos nem vencedores. Apenas derrotados e inconformados. Foi a pelada mais tristonha na vida de todos nós.
                Era o adeus ao Lúcio querido.

NR * Newton Padua é capixaba. Bel. em Direito, levou a vida toda com alto funcionário do Banco do Brasil e cacauicultor. Humanista, entusiasta da arte literária, nela mergulhou de cabeça. Desse encantamento, fez-se escritor, e dos bons, vale dizer. Por isso mesmo, é imortal pela Academia de Letras de Ilhéus-Bahia, cidade onde morou e considera como sua terra natal.      
               
 
                    

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