Texto de Luiz Carlos Facó: o septuagenário falando do menino e do jovem que foi.
Bem-nascido!
Esse era o adjetivo usado, em meio à década de quarenta e cinquenta, do século
anterior, para festejar alguns recém-natos.
Como
a sua curiosidade tinha e tem o tamanho de uma megalópole, cuja indiscrição
levava-o e leva-o querer saber dos seus sítios periféricos, vielas e esconsos,
debruçou-se em questionar os porquês de algumas crianças serem havidas por
aquela expressão e outras não.
Mas,
das respostas recebidas nenhuma tinha o poder de esclarecer-lo ou levá-lo ao
fulcro da questão. Por isso, considerou moto-próprio, ser bem-nascido aquele
vindo ao mundo através de parto normal, gozando plena saúde, fruindo do amor
daqueles que, ansiosos, o aguardavam. Uma definição simples e aceitável, para
não dizer ampla.
Vã
especulação! Para sua surpresa, soube depois que aquela manifestação era
controversa, pois só dizia do nascido de boa família, possuidora de sólidos
princípios, portadora de boa linhagem no sobrenome, cujo chefe detivesse
formação superior ou exercesse uma soante e respeitável posição no mundo
político e administrativo, estatal. Sobremodo, a que dispusesse de um excelente
cabedal. Trocando em miúdos: possuísse muito dinheiro, dinheiro disponível.
Igualmente, bens imóveis desembaraçados de pendências judiciais. O que na Bahia
era difícil de se acreditar existir, pois, dizia o povo, possuidor de imensa
sabedoria: nessa terra, a elite tem mais pose do que posse. Para aquela criança
de seis anos ou sete anos que, alfabetizada pelo esforço da mãe aos quatro,
entre beijos, impaciências, impertinências e resmungos, já lendo textos
literários e referenciais, como jornais e revistas: A Tarde, Diário de
Notícias, Estado da Bahia, O Momento, A Fôia do Roceiro, O Cruzeiro, Única, os
gibis: a Família Marvel, Homem Submarino, Dick Tracy, Cavaleiro Negro, Roy
Rogers, Tarzan, Búfalo Bill, a Família Buscapé, Mandrake, Tio Patinhas, Zé
Carioca, Tico-Tico. Ainda, Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho), Lewis
Carroll (Alice no País das Maravilhas), Daniel Defoe, (Robinson Crusoé),
Jonathan Swift (As Viagens de Gulliver), Edgar Rice Bourroughs (Tarzan dos
Macacos), Maurice Leblanc, criador de Arséne Lupin, (romance 813), Agatha
Christie, que também se assinava Mary Westmacott (A Noite das Bruxas), além de
muitos dos seus pares da literatura, que engatinhava escrevinhar notas,
bilhetes, resumos, aquela revelação fizera-se cáustica. Fato que o
entristecera. A ponto da velha Theodora, agregada da casa, a boa e inesquecível
amiga negra – tia do bem-querer – exímia contadora das histórias que preludiam
o seu sono noturno – as mesmas de sempre, mudadas as circunstâncias e o nome
das personagens – diagnosticar: esse menino está com quebranto, mau-olhado.
Nada que uma boa benzedura não resolva. Das brabas:
“Com
olho ruim te olharam
Com
olho bom eu retiro
Com
dois te botaram
Com
três eu te tiro
Com
os poderes de Deus Padre
E
Nossa Senhora do Retiro.”
A
muitos, aquela conversa e reza soavam como miolo de pote, resumida por Jayme
Barbosa, um dos nossos mais competentes cronistas, como conversa mole para boi
dormir, papo de botequim, muito adjetivado e nada substantivado. Sem tema,
começo, meio e fim. Mero lero-lero. Conversa de bêbado.
Então,
se deve inferir que tudo não passava de uma infantil “mise en scène” daquele garoto? Esquisitice? Ou mera inquietação de
quem começa a enxergar o mundo na sua opressiva realidade?
Não!
Não se tratava de simples mistificação daquele menino sensível – que o tempo se
encarregou torná-lo septuagenário, que à medida do seu crescimento físico e
amadurecimento intelectual, percebia que àquela preocupação outras se
sucederiam e a elas se somariam.
Dirimidas,
ou razoavelmente explicadas, pelos livros da biblioteca do pai, da qual se
tornara freguês compulsivo e que hoje lhe pertence. Prenhe de autores clássicos
– se bem que T. S. Eliot, Prêmio Nobel de Literatura (1948), só elegesse um
único clássico na literatura: Virgílio. Numa temerária afirmação que beira o
preconceito. Abarrotada de escritores gregos, romanos, ingleses, franceses,
sobretudo, nacionais. Abarcava todos os gêneros literários: prosa, poesia,
crônica, teatro, romance, biografias e que tais. Lidos, a princípio,
mecanicamente, até se dar conta de que a sabedoria da leitura englobava muito
mais: acurada análise, tradução de metáforas, decifrar o subliminar conteúdo
das entrelinhas, considerar as imagens citadas e compará-las, buscar os
objetivos do autor, cujos remoques ditam, as mais das vezes, uma repreensão ou
advertência. Correta ou não.
Foi
a partir dessa presunção de saber ler que o jovem resolveu ir ao encontro de
obras mais densas. Passou pelo Decamerão, de Boccaccio, Minha Formação, de
Nabuco, D. Quixote, de Cervantes. Paraíso Perdido, de Milton, Casa Grande e
Senzala, de Gilberto Freire e muitos tantos. Até por Euclides da Cunha, em os
Sertões, que, segundo ele, a primeira parte da obra se deva, sem contestações a
Teodoro Sampaio, embora o contradiga, seu amigo e biógrafo daquele autor, o
excelente romancista conterrâneo, Oleone Coelho Fontes. Um negro virtuoso, mas,
por excelência, competente baiano de quatro costados, filho preferencial dos
Orixás.
Em
francês, ele enveredou pelo Génie du
cristianisme, de Chateaubriand, À la
recherche du temps perdu, de Proust, auxiliado por vários dicionários, além
de uma infinidade de autores gauleses e normandos, como Dumas pai e Balzac. Na
literatura inglesa, deleitou-se com Sheakespeare, Woolf, Beckett, Austen,
Dickens, Carroll, Bernard Shwall, Emily e Charllote Brontë. Focado,
preferencialmente, em suas peças teatrais. Sem abandonar e dar realce à
literatura portuguesa e à brasileira. Sobremodo à regionalista, nascida, quase
sempre, no Maranhão, Ceará, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Minas Gerais, Rio
Grande do Sul e Bahia. Nem por isso, menos universal que as demais.
Só
um autor, dos tantos quantos até hoje ele visitou, ficou a dever-lhe!
Tratava-se de James Joyce, com seus contos Dublinenses e o “afamado” romance
Ulisses! Também criador de versos e peças teatrais intragáveis (dito por ele,
constituiu-se numa heresia). Desculpem-no seus acólitos e críticos literários
de plantão de toda ordem e qualidade, que aconselham: para entender Joyce,
deve-se seguir bulas – tais quais as dos remédios – que são tão incompreensíveis
como o escritor do romance supra dito, o qual só tem quatro personagens.
Coitado do herói grego da Odisséia – cercado por tantas figuras dramáticas
notáveis e seres mitológicos – que dá nome à obra!
Dentre
esses seguidores de Joyce, há um, o talentoso tradutor, José Antonio Arantes,
que sugere obediência a uma série de providências para penetrar e compreender o
mundo daquele inusitado escritor. Com o que não concordava aquele jovem,
tampouco este narrador.
O
bom autor, sempre se faz entender, repetia o jovem, sem a necessidade de
obrigar o leitor recorrer a artifícios e atalhos para captar a grandeza do seu
texto. Salvo opiniões discordantes balizadas por pessoas mais doutas e
competentes do à daquele menino, que se fez um dia escritor, corajoso e versátil.
Afirmava
ele, o jovem, sem temer: ter trauma de Joyce e, sabe que, será malhado, tal
qual Judas o é no romper da Aleluia, pelos seus sequazes. Diz um velho brocardo
popular: crie fama e deite-se na cama.
A
formação cultural deles – não a de Joaquim Nabuco provinda dos fabulosos lucros
dos engenhos da madrinha, proporcionados por mãos escrava – mas a dele e a de
seu irmão Jorge, nascia da leitura de bons livros mesmo sem disporem dos
enormes recursos financeiros daquele.
Ademais,
dispunham de uma radiola que, reproduzia através das “bolachas” – discos
antigos feitos de cera de carnaúba – a coleção discográfica dos pais. Mistura
providencial de músicas clássicas e populares.
As “bolachas” (78rpm) de selo preto continham músicas populares cantadas
ou compostas por: Assis Valente, Noel Rosa, Ataulfo Alves, Francisco Alves,
Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Luiz Gonzaga, Adelaide Chiozzo, Pixinguinha,
Lúcio Alves, Dick Farney, Elizete Cardoso, Linda e Dircinha Batista, Nora Ney,
Gregório Barrios, Lucho Gatica, Maurice Chevalier, Gilbert Bécoud, Charles
Trenet, Charles Boyer, a incomparável Edit Piaf, Juliette Greco, também atriz
cinematográfica, Mistinguett, Bing Crosby, dentre os que ele consegue lembrar.
E tudo terminava em “douce France Ie pays
de mon enfance”, verso de uma canção francesa que sua mãe amava.
Nas
de selo vermelho, estavam impressas as músicas clássicas, interpretadas por
Enrico Caruso, Beniamino Gigli, Yma Sumac, cuja extensão vocal ultrapassava
cinco oitavas, embasbacando críticos e músicos por tal proeza, Bidu Sayão, a
lírica brasileira que arrancava estrondosos aplausos da exigente platéia do
Metropolitan Opera House, de New York. Além das óperas, La Bohème, de Puccini,
Fidélio, de Beethoven, Otelo, de Rossini, Nabuco, de Verdi, Tristão e Isolda,
de Wagner, Carmen e L’Arlésienne, de Bizet.
Mas,
a preocupação de seus pais transcendia a mera abordagem desse outro aspecto
cultural. Ia muito além. Foi, por iniciativa deles, que ele e Jorge, conheceram
o museu da Igreja do Carmo e o do Estado Da Bahia. A azulejaria barroca da
Igreja de ouro de São Francisco, no Terreiro de Jesus, o museu dos ex-votos da
Igreja do Senhor do Bonfim, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em
estilo Gótico, cuja fachada foi revestida de pedra sabão, vinda da Portugal,
além da Capela do Instituto Feminino da Bahia, cujo altar, entalhado e
recoberto de ouro, é remanescente da antiga Catedral da Sé, demolida em nome do
progresso, para dar passagem aos bondes pela Praça Tomé de Souza – sob
protestos do povo.
Desses
roteiros constavam, também, visitas ao Gabinete Português de Leitura,
edificação que seu pai admirava, construída em estilo Manuelino, à Associação
Comercial da Bahia, Câmara Municipal de Salvador, às sedes da antiga Biblioteca
Pública do Estado e da Imprensa Oficial da Bahia, situadas na Praça Municipal,
postas abaixo por algum aventureiro, para, em seus lugares, erguer o próprio
que abriga a administração da Prefeitura Municipal de Salvador, cujo projeto
indefinido, de perverso gosto estético, segundo o jovem de quem falo, achar que
ele destoa do conjunto arquitetônico daquele logradouro. Por isso, ele
arremata: recebe do povo o epíteto de “gaiola das loucas” e tantos outros que
exprimem o ridículo e a insensatez da iniciativa.
Sem
sofrerem oposições, espreitadores, quase profissionais que eram seus pais iam
em frente, e, de quando em quando, paravam diante de uma mansão, de um solar.
Aquele é do Comendador Catarino. Aqueloutro, de Costa Pinto. Esse aqui, na
Ribeira, pertence à família Amado Bahia. Aquela era a residência de Ruy
Barbosa, essa outra de Castro Alves. Onde fica o colégio Dois de Julho foi à
morada do Conde dos Arcos. Acolá, é a Casa das Sete Mortes, informavam-lhes.
Dos
Fortes de São Diogo, Santo Alberto, da Lagartixa, do Rio Vermelho, do Mont
Serrat, São Marcelo, Jiquitaia, Barbalho, Santo Antônio e São Pedro, ouviam
suas histórias. E assim, sucessivamente, entre idas, paradas, ensinamentos,
cursavam suas peregrinações histórico-cultural, pois ainda restava tempo para
assistirem à tradicional – quase um rito – puxada de rede da pesca do xaréu, lá
pras bandas de Patamares, acessível através de uma picada carroçável, dada a
inexistência de calçamento ou asfalto.
Seus
pais, insaciáveis, ambicionavam muito mais para seus filhos. Mostravam-lhes as
esculturas sacras do Frei Agostinho da Piedade. As pinturas acadêmicas de
Mendonça Filho, Presciliano Silva, Diógenes Rebouças, urbanista, arquiteto,
pintor, cuja topografia e casarios da Cidade Baixa foram por ele visionados e
poeticamente retratados, com mestria. Além, da graciosa, tradicional e anciã
Cidade Alta de Salvador, registrada em telas inolvidáveis, hoje pertencentes ao
Grupo Norberto Odebrecht – acervo histórico e artístico de imponderável valor
material e imaterial, assinalamentos pictóricos tão talentosos e relevantes quantos
os de Jean-Baptiste Debret, que, no século XIX, em magistrais instantâneos,
pintou pessoas e as paisagens do Rio de Janeiro. Além da inolvidável série de
marinhas produzidas por Pancetti, quando da sua estada nessa terra
mandingueira. Parte dela, adquirida pelos seus avós, Georgina e José Daltro de
Azevedo, a preço vil, do próprio pintor. Esse, um perdulário, um esbanjador de
talento e dinheiro.
Quando
seus pais morreram, deixaram-lhes uma pequena pinacoteca. Importante e
expressiva. Seus quadros seguiam a linha do academicismo reinante à época. Era
constituída de naturezas mortas, paisagens, marinhas e com assinaturas de Jaime
Hora, Presciliano Silva, Trajano Dias, Alberto Silva, Mendonça Filho. Até mesmo
a de um jovem chamado Sante Scaldaferri, representado por um quadro coerente
com os ensinamentos da Escola de Belas Artes da Bahia, daquele período. Moço
que viria, mais tarde, revolucionar a arte pictórica nativa, opositora do
modernismo, movimento do qual Sante foi um dos seus mais entusiastas e singulares
defensores. Daquela coleção, constavam também quadros de alguns naïfs, que, apesar de talentosos, jamais
lograram arranhar o sucesso.
Digressão
feita, na qual formaliza-se o gosto estético de seus pais, estratificado nas
preferências da então, havida como refinada, sociedade local, volto ao tema
deste texto, que se faz para alguns cansativo, longo, embora ainda nele deseje
lograr mencionar fatos dignos de registro.
Instigante,
afável, sociável, o casal possuía um sem número de amizades. Com elas trocavam
visitas e partilhavam uma mundana vida social. E, dessa última, faziam parte
visitas ao Cassino do Palace Hotel, ao Cassino Internacional Tabaris, às festas
do Baiano de Tênis, do Iate Clube da Bahia, Associação Atlética da Bahia, às
representações teatrais, operetas encenadas pelo Clube Fantoches da Euterpe,
eventos e recepções.
Amiúde,
a casa deles vivia cheia de convivas, de políticos e amigos. Seu pai adorava
recebê-los e, sua mãe, sempre festeira e cativante, o acompanhava naquela sua
disposição. Sem afastá-los, a ele e ao irmão, daquele convívio. Aliás, sempre
fizeram questão da presença deles naquele meio, quiçá, para exibi-los, muito
mais, para que aprendessem as boas normas da etiqueta social, da arte de fazer
amigos, conservá-los, e para que alargassem seus horizontes sociais e
culturais.
Nessas
circunstâncias conheceram: Cândido Caldas e Da. Santinha, ele, Interventor da
Bahia (1946/1947), Juracy Magalhães e Lavínia, Tarcilo Vieira de Melo, Orlando
Ferreira Spínola e Judith, Antônio Balbino e Tysila, Fernando Sá e Ivone, Jorge
Correa Ribeiro e Maria do Carmo, Lafayette Coutinho e Chicá, Vasconcelos Maia,
Godofredo Filho, Ivan Americano da Costa, Wilson Lins, Walfrido Morais,
Sebastião Nery, Adroaldo Ribeiro Costa, Jehová de Carvalho, Geovanni Guimarães,
Jorge Calmon, Orlando Gomes e Stela, Erwin Mongeroth e Eva, Pio Bittencourt e
Maria, Magalhães Neto, pai de Antonio Carlos, Gastão Pedreira, Hélio Meireles e
Rita, Aliomar Baleeiro, Aloísio de Carvalho Filho, Nelson Sampaio, Josapha
Marinho, Odorico Tavares, Aristóteles Gomes, Wolmar Carneiro da Cunha e Alice,
Egas Campos e Amélia, João Carlos Ferreira Gomes e Célia. A par de dois jovens
que se tornariam Presidentes da Academia de Letras da Bahia: Cláudio Veiga e
Edvaldo Boaventura.
Havia
mais. A essas informações, consideradas corriqueiras, recebidas no dia a dia
deles, se juntavam outras de cunho extracurriculares: aulas particulares de
reforço, com a professora Maria da Conceição Gavazza, de francês, ministradas
por Cláudio Veiga, de inglês, por um jovem cujo nome está desaparecido do
escaninho da memória do meu perfilado, e de piano, cuja mestra Walquíria
Kennetel, acreditava pudesse transformá-lo num exímio concertista. Suposição
vazia, porquanto ele se considerava aluno medíocre, desprovido do predicado da
afinação, embora fosse apreciador da arte, porém, mais afeito e interessado na
história da música do que na execução de quaisquer dos instrumentos que a
compõe.
Submerge
e afoga-se no caos do julgamento apressado, quem porventura considere os seus
pais algozes por exigir-lhes, a ele e ao irmão, tanta dedicação, tanta
disciplina. Nada disso! Foram, isso mesmo, indutores importantes daquele
caminhar que não consideravam estafante ou áspero, pois, eles mesmos,
incumbiam-se em pavimentar suas rotas, com adequados amortecedores,
incentivando-os a fazer amigos. Tantos
quantos quisessem. Daí veio uma enxurrada deles: Carlinhos Espinheira, Ari
Filgueiras, o mais talentoso de todos quantos, notável narrador de casos
criados por sua mente, sempre em ebulição, em suma, um gênio criativo, Bosco e
Sávio Drummond, Orlando e Álvaro Nuñez, Carlinhos Almeida, Tery José Teixeira
de Andrade, o percussionista, os gêmeos Renatinho e Renavam Andrade, Gabriel e
Barris. Os dois últimos descendentes de libaneses, sobejos de uma colônia
assentada na rua onde moravam, Gabriel Soares. E, com eles, fruíram uma bela
infância e juventude: jogando “babás” com bola de borracha ou de meia, descendo
ladeiras com carrinhos de rolimãs – freio puxado – jogando botões – cada qual
com seu time – conduzindo velocípedes ou bicicletas, “piculando” até pedirem
água, quando esgotado o fôlego. Tomando banho de mar nas praias do Unhão ou na
do Farol da Barra. Na derradeira, acompanhados da mãe. Nos sábados, iam aos
cines Liceu, Excelsior, Glória, Art, Popular e Jandaia, assistir filmes de
aventuras: Capitão Blood, Quatro Penas Brancas, Cisne Negro, A Marca do Zorro,
Robin Wood, Scaramouche, Simbad, o Marujo e comédias estreladas por Bob Hope,
Bing Crosby e Dorothy Lamour, Red Skelton e Ester Williams, assim como as
séries Hopalang Cassid, Jim das Selvas, Cavaleiro Negro, das muitas que
encerravam às sessões cinematográficas vespertinas.
Demais,
freqüentavam o teatro. Assistiram a peça Narizinho, encenada sob a direção de
Adroaldo Ribeiro Costa, no Cine Teatro Guarany, no dia em que se encontrava na
platéia o criador da personagem: Monteiro Lobato. Ao Auto da Graça e Glória da
Bahia, em 1949, de Chianca de Garcia, dramaturgo e cineasta português radicado
no Brasil, em comemoração ao 4º Centenário da Bahia (1949), no Teatro do
Instituto Normal. A opereta A Viúva Alegre, cujo protagonismo era divido entre
a viúva e o príncipe Danilo, que foi encarnado pelo amigo deles Geraldo Coelho,
além de outras, levadas à cena, pela perseverante teimosia do grupo de teatro
amador do Clube Fantoches da Euterpe.
Foram
essas duas artes, o teatro e o cinema (essa considerada a sétima), que os
levaram ao delírio. Transportavam-nos a pagos inimagináveis, a histórias
inconcebíveis, a frustrações, dores, recompensas, sucessos, atos de coragem,
covardias, renúncias, amores, ódios. Sentimentos expostos por Sheakespeare em a
Megera Domada, Rei Lear, Hamelet, de modo geral em toda a sua bibliografia.
Foi
no teatro, depois de assistir a Deus lhe Pague e O Avarento, interpretado por
Procópio Ferreira, As Árvores Morrem de Pé e A Chuva, por Dulcina de Morais e
Odilon, As Mãos de Eurídice, monólogo de Pedro Bloch, encenação magistral de
Rodolfo Mayer, que o mais velho dos irmãos, sempre preocupado com questões
filosóficas, decidiu conhecer, mais fundamente, a obra teatral e, por via de
consequência, a cinematográfica.
Arrematavam
essa orgia de estudos e divertimentos suas férias. Benditas e bem-vindas, de
três meses inteirinhos, passadas na Ilha de Itaparica – Mar Grande, fazendo
novos amigos e exercitando novas atividades.
Resultaram
todos esses cuidados dispensados pelos pais à educação dos filhos não em
gênios, mas, em homens comuns; os gênios nascem feitos:
A UM LIVREIRO
Por que entre livros correu tua vida,
Supões-te um Ruy Barbosa?
Se fosse assim – a traça,
A traça nem por ti fora vencida.
Mas,
com certeza, deram origem a dois homens bem formados. Capazes de enfrentar suas
inquietações, afloradas desde a meninice e que se avolumavam a medida do tempo
passando, com aguda sensibilidade e intensa segurança. Preparados para vencer
os obstáculos que a vida a todos impõe, com menos dificuldades para os
habilitados do que para aqueles desprovidos da educação cultural familiar –
grande subsídio da educação formal – sem a qual, o mais competente professor
que exista, dispondo da maior boa vontade, não pode e não tem capacidade em
supri-la.
O
irmão humanista – o outro era um cartesiano - ao formar-se em (1960), pela
Faculdade de Direito da Bahia, tornou-se professor titular, na Academia
Superior de Polícia Civil da Bahia – Escola Nelson Pinto – das cadeiras de
História, Geografia, Política e Organização e Técnica Policial e Judiciária,
dando aulas a delegados, alguns bem mais velhos que o mestre. Um simples
detalhe, pois sempre se saiu bem, sendo dignamente ouvido e respeitado.
Contudo,
dessa experiência entusiasmante – ensinar – verificou que, a cada geração
sucessora da anterior, o nível de preparação do alunado caía. Haveria um causa.
Seria a má qualidade do ensino, indagou-se?
Nada
disso. Descobriu que, as deficiências verificadas, tinham origens remotas: no
desleixo dos pais em prover seus filhos do acompanhamento escolar e cultural
que necessitavam. Fato que confessavam, veladamente, quando indagados, alegando
que suas necessidades profissionais e sociais abortavam maiores cuidados com os
filhos, principalmente no tocante a esses tópicos. E, em contraposição, do
professor ouviam: por isso seus filhos não progridem, marcam passo.
Vivam
Alice e Zecarlos. Deram a Luiz Carlos e a Jorge, barba, cavanhaque e bigode, numa
antevisão dos tempos atuais.
Esse
relato não se constitui numa apologia à visão daqueles pais zelosos, trata-se
de uma pesquisa feita pelo professor junto aos seus alunos em mais de quarenta
anos de magistério, cujos resultados levam-no a advertir os pais de hoje. Só a
escola não é capaz de gerar bons profissionais, bons mestres, escritores, se o
alicerce da construção não for erguido na ambiência do lar. À falta dele,
resultará sempre no que Lula pregou nos seus dois mandatos presidenciais: a
consagração da ignorância – “disse ser a leitura entediante” – e implicância
aos títulos acadêmicos – “o (título) de torneiro mecânico é suficiente para se
chegar à Presidência da República”.
A
propósito, ele e seu irmão foram bem-nascidos! Assim como todas as crianças,
ricas ou pobres, negras, amarelas ou brancas, pertencentes a castas ou a
quaisquer religiões, que tenham nascidos entre graças, sorrisos e bem-querer. Reafirma,
ainda hoje, meu perfilado.
Iniciada
em janeiro de 2012 e concluída em fevereiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário