Crônica de Jehová de Carvalho *
(publicada
em A Tarde - 1973)
Me encontrei com Diodé. Quase não
podia gritar seu cinquentenário “Oba"! à mula, na agulha da carroça. A voz
quase sumida. Sem alento e sem vontade.
- Ó Diodé, como vai, meu
irmão?
Ele amiudou os olhos
sobre os quais fez uma pala à imitação das palas dos bonés anos quarenta. Fê-los
correr de cima em baixo para concluir:
- É você, Oduiê? Não fica
velho. Acho que já não é mais menino. Puxa! Só fez engordar mais.
Aí, encostou a mula num
dos velhos arvoredos do Largo do Ouro. Acendeu o charuto. Folgou os arreios. No
mercado próximo arrumou sal para a ração da besta. E foi falando da arcada que
abre a vista para o Restaurante Juarez:
- Veja como são as coisas
da vida: se lembra, aqui, da Casa Magalhães? A gente era mais de cem, esperando
carga de açúcar para distribuir. O frete era bom. E tinha muito carroceiro bom:
Benzinho, Mané da Jega, Bento de Otília, Quarenta e Seis, Antônio Nove, Padilha
(pai e filho), Memeu da Subida, Oito; e Abílio, um santo homem que foi
assassinado por um guará civil, na Água de Meninos.
Conheci Diodé no
candomblé do Bogum. Senhor dos Cânticos e dos ritmos dos atabaques jejes. Um
reencontro fiel com o momento dos seus antepassados. Uma digna figura guardando
o mistério do seu culto. Certa feita, em frente à oficina de marcenaria do
artista português Antonio Marcelino, entre Calçada e Roma, este, o entalhador
das portas da Biblioteca Pública (já desaparecida) e do Gabinete Português de
Leitura, reconheci, de longe, a voz vigorosa de Diodé, tocando a mula na
direção da extinta fábrica dos refrigerantes Fratelli Vita:
- Nininha vai ser sua
afilhada. Não dou filha minha pra gente graúda batizar. Espero você, domingo,
na Formiga, onde moro, fraco pelas graças de Deus, mas onde o pão ruim não
falta no caixão de querosene nosso. Não precisa levar nada. Basta a conveniência
de saber cochilar se ficar enramado com a minha cachaça curtida em angico, em
casa mesmo.
No quatro de dezembro,
Nininha era levantada no Bogum por uma babalaô de Cachoeira, a fim de dar aos
curiosos o nome do seu orixá. Estava rica de mulatismo em seu vestido
esverdeado numa postura exigida por Badé, uma espécie de caboclo silencioso do
território dos Marrins, caçador de flechadas certeiras, mais vaidoso de suas
vestes e de seus apetrechos. Era de vê-la na disciplina dos passos, a e negros à devoção do seu santo cabeça baixa,
os olhos brilhantes.
- Oduiê, não sabe de meu
sentimento: Nininha viajou por aí com um cara que ninguém sabe quem seja e
nunca mais deu notícia.
- Gritou seu “oba”! à
mula, para dizer na saída do Largo:
- Apareça lá em casa.
Tudo é igual. Pelo menos cê toma uma pinga.
E sumiu na esquina do
Mercado, o chapéu lhe engolindo a cabeça grisalha.
NR/ * Jehová de Carvalho foi um dos mais
brilhantes jornalistas com os quais topei, neste mundo de meu Deus. Além de
brilhante, era cativante e erudito. Conheci-o nos anos cinquenta, na Redação do
Diário de Notícias e do Estado da Bahia – jornais, matutino e vespertino, dos Diários
Associados. Ele, à época, já era um renomado cronista, eu, um mero foca, mas
ambos boêmios. Um motivo a mais para nossa aproximação. Com ele convivi por
largo tempo, admirando-o pelo seu talento de fazer-se querido pela mulherada, e
pela sua capacidade gregária: gostava de ter amigos. Contudo, sua maior virtude
era saber conviver com a permanente falta de dinheiro que teimava apoderar-se
dos seus bolsos e de sua conta bancária. Quando lhe sobrava algum, gastava, sem
remorsos, com mulheres e as farras.
Seu
grande amigo Carlos Drummond de Andrade escreveu: “Seu livro. A Cidade Que Não
Dorme, é a Bahia em toda a sua beleza luso-africana. A crônica “Do Carroceiro
Diodé no Largo do Ouro” traz a leveza da prosa de Rubem Braga. Apenas os
elementos ambientais são marcados pela cor do dendê e pelos mistérios dos
Orixás.”
A
propósito, Jehová não se orgulhava em ser reconhecido e elogiado. Orgulho ele
só demonstrava ter do seu mulatismo.
LCFACÓ
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