segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

DO CARROCEIRO DIODÉ NO LARGO DO OURO


                                                                                Crônica de Jehová de Carvalho *
                                                            (publicada em A Tarde - 1973)

         Me encontrei com Diodé. Quase não podia gritar seu cinquentenário “Oba"! à mula, na agulha da carroça. A voz quase sumida. Sem alento e sem vontade.
            - Ó Diodé, como vai, meu irmão?
            Ele amiudou os olhos sobre os quais fez uma pala à imitação das palas dos bonés anos quarenta. Fê-los correr de cima em baixo para concluir:

            - É você, Oduiê? Não fica velho. Acho que já não é mais menino. Puxa! Só fez engordar mais.
            Aí, encostou a mula num dos velhos arvoredos do Largo do Ouro. Acendeu o charuto. Folgou os arreios. No mercado próximo arrumou sal para a ração da besta. E foi falando da arcada que abre a vista para o Restaurante Juarez:
            - Veja como são as coisas da vida: se lembra, aqui, da Casa Magalhães? A gente era mais de cem, esperando carga de açúcar para distribuir. O frete era bom. E tinha muito carroceiro bom: Benzinho, Mané da Jega, Bento de Otília, Quarenta e Seis, Antônio Nove, Padilha (pai e filho), Memeu da Subida, Oito; e Abílio, um santo homem que foi assassinado por um guará civil, na Água de Meninos.
            Conheci Diodé no candomblé do Bogum. Senhor dos Cânticos e dos ritmos dos atabaques jejes. Um reencontro fiel com o momento dos seus antepassados. Uma digna figura guardando o mistério do seu culto. Certa feita, em frente à oficina de marcenaria do artista português Antonio Marcelino, entre Calçada e Roma, este, o entalhador das portas da Biblioteca Pública (já desaparecida) e do Gabinete Português de Leitura, reconheci, de longe, a voz vigorosa de Diodé, tocando a mula na direção da extinta fábrica dos refrigerantes Fratelli Vita:
            - Nininha vai ser sua afilhada. Não dou filha minha pra gente graúda batizar. Espero você, domingo, na Formiga, onde moro, fraco pelas graças de Deus, mas onde o pão ruim não falta no caixão de querosene nosso. Não precisa levar nada. Basta a conveniência de saber cochilar se ficar enramado com a minha cachaça curtida em angico, em casa mesmo.
            No quatro de dezembro, Nininha era levantada no Bogum por uma babalaô de Cachoeira, a fim de dar aos curiosos o nome do seu orixá. Estava rica de mulatismo em seu vestido esverdeado numa postura exigida por Badé, uma espécie de caboclo silencioso do território dos Marrins, caçador de flechadas certeiras, mais vaidoso de suas vestes e de seus apetrechos. Era de vê-la na disciplina dos passos, a  e negros à devoção do seu santo cabeça baixa, os olhos brilhantes.
            - Oduiê, não sabe de meu sentimento: Nininha viajou por aí com um cara que ninguém sabe quem seja e nunca mais deu notícia.
            - Gritou seu “oba”! à mula, para dizer na saída do Largo:
            - Apareça lá em casa. Tudo é igual. Pelo menos cê toma uma pinga.
            E sumiu na esquina do Mercado, o chapéu lhe engolindo a cabeça grisalha.

NR/ *  Jehová de Carvalho foi um dos mais brilhantes jornalistas com os quais topei, neste mundo de meu Deus. Além de brilhante, era cativante e erudito. Conheci-o nos anos cinquenta, na Redação do Diário de Notícias e do Estado da Bahia – jornais, matutino e vespertino, dos Diários Associados. Ele, à época, já era um renomado cronista, eu, um mero foca, mas ambos boêmios. Um motivo a mais para nossa aproximação. Com ele convivi por largo tempo, admirando-o pelo seu talento de fazer-se querido pela mulherada, e pela sua capacidade gregária: gostava de ter amigos. Contudo, sua maior virtude era saber conviver com a permanente falta de dinheiro que teimava apoderar-se dos seus bolsos e de sua conta bancária. Quando lhe sobrava algum, gastava, sem remorsos, com mulheres e as farras.
            Seu grande amigo Carlos Drummond de Andrade escreveu: “Seu livro. A Cidade Que Não Dorme, é a Bahia em toda a sua beleza luso-africana. A crônica “Do Carroceiro Diodé no Largo do Ouro” traz a leveza da prosa de Rubem Braga. Apenas os elementos ambientais são marcados pela cor do dendê e pelos mistérios dos Orixás.”
            A propósito, Jehová não se orgulhava em ser reconhecido e elogiado. Orgulho ele só demonstrava ter do seu mulatismo.
LCFACÓ       

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