Texto de Luiz Carlos Facó (Do livro Garimpando Lembranças)
OS FACÓS
Conta-nos Anna Facó, uma tia avó de meu
pai, há muito desaparecida, teatróloga, poetisa ou poeta, como dizem os mais
modernos, romancista, educadora, membro da Academia de Letras do Ceará, que
Francisco Baltazar Ferreira Facó, seu pai, casado com Maria Adelaide Queiroz
Facó, teve o Facó aditado ao nome quando foi registrado em cartório, fato que
ocorreu 20 anos após seu nascimento. O registro tão tardio era costume na
época. O nome Facó, segundo a autora citada, pura invenção de uma tia materna,
Maria Ferreira, lhe foi dado por esta desde sua mais tenra idade e em tão boa
hora que dentro de pouco tempo ninguém o conhecia senão através do apelido.
Facó o chamavam seus pais, Facó o chamavam todos.
Já Esperidião de Queiroz Lima, no seu
livro Antiga Família do Sertão, Livraria Agir Editora, 1946, que trata da
genealogia da família, num estilo romanceado, dá outra versão ao episódio.
Segundo ele, Francisco, ao nascer, foi
entregue aos cuidados de uma antiga escrava com pouquíssima afinidade com a
língua portuguesa. Por isso mesmo, chamar o menino pelo prenome lhe era
extremamente difícil. Assim, Francisco, através de uma feliz corruptela,
adotada por aquela negra, dócil e muito dedicada aos seus deveres de cuidadora,
quase maternais, transformou-se em Facó, apelido assimilado pelo clã e por toda
gente da região, acabando por transformar-se em nome familiar.
De uma ou outra maneira, nascia aí uma
família que sempre se orgulhou de manter rigorosa tradição de honradez e
veracidade, justamente pelo excesso de intransigência de princípios e de
exatidão de afirmações. Adquirindo por isso mesmo fama de exagero e teimosia.
A propósito dos Facós, há um caso
ocorrido há mais de cento e cinquenta anos, com dois irmãos do primitivo
Francisco Facó, os quais, apesar de muito amigos e unidos, por mais paradoxal
que pareça, viviam às turras, em contínuas discussões, procurando dirimir tolas
questiúnculas.
Eram eles Severino Severiano Lopes
Ferreira e Balthazar Ferreira do Vale Biá, que moraram sempre juntos em
companhia da tia Dindinha, D. Maria da Penha Teixeira, morrendo ambos
solteirões, sem descendentes.
Numa bela noite de lua cheia, Biá e
Severino partiram a cavalo de Beberibe, vila onde moravam, no Estado do Ceará,
para Cascavel, localidade vizinha, onde haveria uma tradicional festa
religiosa, seguida de manifestações profanas, cujo ponto alto se concentrava
num famoso “arrasta pés” e numa concorridíssima quermesse.. Ao chegarem perto
da passagem do Rio Choró, divisa entre as duas povoações, avistaram à frente
uma vasta superfície branca, reluzente aos raios do luar. Diante daquela visão
assombrosa e belíssima observou Severiano:
- O rio está cheio; a água está alagando
o caminho!
- Aquilo não é água, é areia! Respondeu
Biá.
- Só um cego não vê que é água.
- Cego é quem não enxerga que é areia!
- É água!
- É areia!
Contenda Arida e vazia que se arrastou
por bom tempo sem que houvesse vencido ou vencedor.
Havia realmente lugar para dúvida, pois
algumas vezes a ilusão é quase perfeita. Sobremodo, em noites de lua cheia como
aquela, quando os seus raios espargidos sobre aquelas superfícies
emprestam-lhes aparências inusitadas, às vezes tão fantasmagóricas que só a
nossa imaginação pode concebê-las ou decifrá-las.
Quando os cascos dos cavalos tocaram a
areia fofa e crepitante, exclamou Biá vitorioso:
- Não te dizias que era areia?!
- Bem estás vendo que é água! Retrucou o
obstinado Severino.
Biá, na ânsia de provar a veracidade da
sua afirmativa, apeou do animal resfolegante que o transportava, dado o extenso
caminho percorrido, abaixou-se, pegou um punhado de areia entre as mãos e
arremessou-a no irmão, que exclamou:
- Não me molhes! Que brincadeira de mau
gosto! Não posso ir a festa deste jeito.
Amuado, Severino voltou à sua casa para
trocar de roupa, convencido de que a usada estava irremediavelmente
imprestável. Além de molhada, segundo ele, toda enlameada.
Com a morte de Severino Severiano, aos
54 anos de idade, em 1883, surgiu uma anedota:
Chegando à porta do céu, Severiano quis
entrar sem maiores formalidades. São Pedro, porém, embargou-lhe o passo,
dizendo que tinha de consultar primeiro seus assentamentos. Feita a
verificação, voltou pouco depois o venerando porteiro, que lhe disse de maneira
alvissareira:
- Podes entrar, meu filho; teu único
defeito é a teimosia, que não esta na lista dos pecados mortais. Tens direito a
participar das delícias do paraíso. Assim está escrito nas Escrituras e assim
será cumprido.
- Pois agora não entro! Retrucou
Severiano, acrescentando a seguir, com firmeza e disposição, fico aqui fora
esperando o Biá!
Se assim fora, teria Severiano passado
28 anos no aguardo do irmão, que só veio a falecer em 1911, aos 82 anos.
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