quinta-feira, 25 de abril de 2013

UMA FAMÍLIA TEIMOSA


Texto de Luiz Carlos Facó (Do livro Garimpando Lembranças)

OS FACÓS

Conta-nos Anna Facó, uma tia avó de meu pai, há muito desaparecida, teatróloga, poetisa ou poeta, como dizem os mais modernos, romancista, educadora, membro da Academia de Letras do Ceará, que Francisco Baltazar Ferreira Facó, seu pai, casado com Maria Adelaide Queiroz Facó, teve o Facó aditado ao nome quando foi registrado em cartório, fato que ocorreu 20 anos após seu nascimento. O registro tão tardio era costume na época. O nome Facó, segundo a autora citada, pura invenção de uma tia materna, Maria Ferreira, lhe foi dado por esta desde sua mais tenra idade e em tão boa hora que dentro de pouco tempo ninguém o conhecia senão através do apelido. Facó o chamavam seus pais, Facó o chamavam todos.
Já Esperidião de Queiroz Lima, no seu livro Antiga Família do Sertão, Livraria Agir Editora, 1946, que trata da genealogia da família, num estilo romanceado, dá outra versão ao episódio.

Segundo ele, Francisco, ao nascer, foi entregue aos cuidados de uma antiga escrava com pouquíssima afinidade com a língua portuguesa. Por isso mesmo, chamar o menino pelo prenome lhe era extremamente difícil. Assim, Francisco, através de uma feliz corruptela, adotada por aquela negra, dócil e muito dedicada aos seus deveres de cuidadora, quase maternais, transformou-se em Facó, apelido assimilado pelo clã e por toda gente da região, acabando por transformar-se em nome familiar.
De uma ou outra maneira, nascia aí uma família que sempre se orgulhou de manter rigorosa tradição de honradez e veracidade, justamente pelo excesso de intransigência de princípios e de exatidão de afirmações. Adquirindo por isso mesmo fama de exagero e teimosia.
A propósito dos Facós, há um caso ocorrido há mais de cento e cinquenta anos, com dois irmãos do primitivo Francisco Facó, os quais, apesar de muito amigos e unidos, por mais paradoxal que pareça, viviam às turras, em contínuas discussões, procurando dirimir tolas questiúnculas.
Eram eles Severino Severiano Lopes Ferreira e Balthazar Ferreira do Vale Biá, que moraram sempre juntos em companhia da tia Dindinha, D. Maria da Penha Teixeira, morrendo ambos solteirões, sem descendentes.
Numa bela noite de lua cheia, Biá e Severino partiram a cavalo de Beberibe, vila onde moravam, no Estado do Ceará, para Cascavel, localidade vizinha, onde haveria uma tradicional festa religiosa, seguida de manifestações profanas, cujo ponto alto se concentrava num famoso “arrasta pés” e numa concorridíssima quermesse.. Ao chegarem perto da passagem do Rio Choró, divisa entre as duas povoações, avistaram à frente uma vasta superfície branca, reluzente aos raios do luar. Diante daquela visão assombrosa e belíssima observou Severiano:
- O rio está cheio; a água está alagando o caminho!
- Aquilo não é água, é areia! Respondeu Biá.
- Só um cego não vê que é água.
- Cego é quem não enxerga que é areia!
- É água!
- É areia!
Contenda Arida e vazia que se arrastou por bom tempo sem que houvesse vencido ou vencedor.
Havia realmente lugar para dúvida, pois algumas vezes a ilusão é quase perfeita. Sobremodo, em noites de lua cheia como aquela, quando os seus raios espargidos sobre aquelas superfícies emprestam-lhes aparências inusitadas, às vezes tão fantasmagóricas que só a nossa imaginação pode concebê-las ou decifrá-las.
Quando os cascos dos cavalos tocaram a areia fofa e crepitante, exclamou Biá vitorioso:
- Não te dizias que era areia?!
- Bem estás vendo que é água! Retrucou o obstinado Severino.
Biá, na ânsia de provar a veracidade da sua afirmativa, apeou do animal resfolegante que o transportava, dado o extenso caminho percorrido, abaixou-se, pegou um punhado de areia entre as mãos e arremessou-a no irmão, que exclamou:
- Não me molhes! Que brincadeira de mau gosto! Não posso ir a festa deste jeito.
Amuado, Severino voltou à sua casa para trocar de roupa, convencido de que a usada estava irremediavelmente imprestável. Além de molhada, segundo ele, toda enlameada.
Com a morte de Severino Severiano, aos 54 anos de idade, em 1883, surgiu uma anedota:
Chegando à porta do céu, Severiano quis entrar sem maiores formalidades. São Pedro, porém, embargou-lhe o passo, dizendo que tinha de consultar primeiro seus assentamentos. Feita a verificação, voltou pouco depois o venerando porteiro, que lhe disse de maneira alvissareira:
- Podes entrar, meu filho; teu único defeito é a teimosia, que não esta na lista dos pecados mortais. Tens direito a participar das delícias do paraíso. Assim está escrito nas Escrituras e assim será cumprido.
- Pois agora não entro! Retrucou Severiano, acrescentando a seguir, com firmeza e disposição, fico aqui fora esperando o Biá!
Se assim fora, teria Severiano passado 28 anos no aguardo do irmão, que só veio a falecer em 1911, aos 82 anos.


  

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