Texto de Luiz Carlos Facó
Soube do
acidente que o acometeu e lamento o ocorrido. Privado de dedilhar as cordas do
seu mágico violão presumo a enorme frustração, quiçá, decepção, que o abate. É
uma pena! Consola-o, acredito, depois do ato de bravura que o vitimou, salvar
uma begônia, o título que, por certo, os amigos lhes concederão: o de D.
Quixote das begônias.
Honraria
justa porque quem salva uma flor demonstra a admiração e o respeito às
mulheres. Flores e mulheres são sinônimos. Seres, aparentemente franzinos que
se fazem forte diante da dor. Graciosos e plenos de leveza, como as nuvens que
pairam e passam por sobre as nossas cabeças, sob as mais diversas formas. Como
se fossem esculturas produzidas por um Rodin. Pintadas por Botticelli ou Dali.
Musicadas por Chiquinha Gonzaga. Descritas pela talentosa pena de um Machado de
Assis (Capitu) ou de um Jorge Amado (D. Flor e Gabriela). Maliciosamente
envolventes e sedutoramente atraentes, capazes de aquietarem a ansiedade dos
nossos corpos sequiosos por prazeres e abrandarem as nossas mentes em
permanente ebulição, graças às labaredas das preocupações que nelas insistem
permanecer. Entes, tão perfeitos e belos, que os cercamos e, até a força,
tentamos conquistá-los e tê-los sob a nossa permanente tutela, numa
demonstração cabal do egoísmo masculino.
Sendo a
mulher, obra mestra da criação, figura insubstituível sob todos os seus ângulos,
quer físicos como a sinuosidade ímpar de suas formas, o brilhar dos seus olhos,
os diversos matizes de suas peles, de suas carnes macias como flocos de algodão
quer pelos dons espirituais e intelectuais que possuem, a bondade, a tolerância,
o engenho criativo dirigido à música, à poesia, à literatura, à pintura.
Por tudo
isso, ela deveria ser de domínio público. À disposição de todos sem
vulgarizações, como os monumentos que se erguem em ruas e praças, para serem
visualizados e desfrutados por toda sorte de transeuntes.
Pensava ser
um experto da Bahia e da sua gente. Conhecê-las como as palmas das minhas mãos.
Da primeira, do seu passado e presente - a História. Do povo, suas
idiossincrasias, o misticismo, sua celebrada verve, a capacidade de criar.
Quanta pretensão, hein? É verdade. Demasiada presunção. Agora acordei.
Sob o céu
desta terra, nem tudo foi a tempo revelado. Há segredos por garimpar. Agora me
dou conta de que do nosso chão e dos seus filhos pouco sei. Só conheço o verniz
que os cobrem. Isso porque, caiu-me em mãos, incidentalmente, um livro de uma
jovem mulher baiana, morta aos trinta anos, cujos predicados se assemelham
àqueles que acima descrevi, com uma capacidade poética que a faz senão a
melhor, no mínimo a coloca em pé de igualdade às melhores poetas nascidas,
séculos afora, por estas bandas. Trata-se de Virgínia Andrade, editada post mortem pelo zelo dos seus pais, os
cientistas Zilton e Sonia Andrade.
Como Castro
Alves, Cassimiro de Abreu, Oscar Wilde, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela,
Felix Arvers, ela teve vida curta. Não sem antes ter deixado a sua marca na
medicina, como pesquisadora, na pintura (autodidata), na poesia, cujos versos
produzidos entre 1981 a
1983 os escondeu entre as páginas dos livros manuseados, cadernos, gavetas,
armários, como se fossem segredos só seus e daqueles objetos familiares.
Talvez, por medo de ver a sua intimidade esmiuçada, vasculhada, e devassada,
sem permissão, por abelhudos, costumeiros censores da individualidade.
Num
retrospecto do quanto escrevi, questiono? Por que os deuses, criadores das
artes, nos enviam esses seres especiais, geniais, com prazo de validade tão
curto? Será que por mera crueldade? Por sadismo? Ou por acharem que, dali em diante, essa
chama de talento com que ungiram esses protegidos se apagaria? Talvez, quem
sabe, para poupá-los da aridez atacamenha que tomariam os seus espíritos a
partir dali, desnudos do estro e da capacidade criativa? Mesmo que aceitássemos
essa última hipótese como verdadeira, não seriam eles, os deuses, tiranos em
relação aos parentes, aos amigos, aos admiradores daqueles obreiros aos quais
amaram e amam desmedidamente ou a eles se afeiçoaram, determinando-os, por
decisão deífica órfãos, prenhes de imensos vãos de lembranças e doídas
saudades?
Esses
questionamentos filosóficos eu os encontrei na poesia de Virgínia.
Através dela,
Virginia nos conduz pela vida. Falava de partidas e chegadas, quando desejava
ser recebida com flores. De caminhos tortuosos a percorrer. De lembranças. Do
avô usando terno branco, indo e vindo, num passeio de poucos metros. Da filha,
Isadora, que a empolga e que nela se reconhece. Dos amigos. Do amor dedicado à
vida, consubstanciados em seus pais, dos quais seguiu o exemplo. Impertinente,
ela se impõe. Da mesma forma que, submissa, ela se verga. Ademais ela mostra
não se conduzir como Dulcinéia, mas como um D. Quixote de saías. Era valente.
Não lutava contra moinhos de vento, mas contra a tirania dos costumes, a
tibieza da vida. O morno acolher. As desventuras. Avisando, em cada verso, às
vezes sub-repticiamente, suas intenções. Suas alegrias. Desolos, surdos e comoventes.
Não vou compará-los aos de Florbela Espanca e aos de Anaïs Nin – sentimentos
não se comparam –, mas eram tão fortes, nas entrelinhas, quanto os das duas.
Surpreende-me em Virgínia Andrade, sua capacidade de transformar os elementos
sobre os quais se debruçava em suas pesquisas científicas, nada líricos, e
transformá-los em poesia da melhor qualidade: “Sigo em lenta autofagia/
Códigos, leis, sistemas/ Liofilizo e disseco/ A rótulos reduzo o meu tema. / E
congelo e descongelo/ Faço de antígeno o poema.”
Falar dessa
obra imensa e poderosa inserida em Casulo Azul (seu livro póstumo), dissecar
sobre a autora e as suas canções versadas, seria necessário que eu escrevesse
um alentado tomo. Mas não o farei atento ao seu desejo de hibernar. Ao
trabalhador, o descanso prazeroso. Só o quebro dado à relevância do quanto
tinha a revelar-lhe. Desculpe-me, pois, pela impertinência e pela importunidade.
Ao concluir,
para matar a sua curiosidade de artista e poeta, transcrevo duas poesias,
escolhidas a esmo, da musa que já se imortalizou em meu coração.
Ei-las:
ISADORA
No sono desta
menina
Durmo por
terras que nem conheço.
Dentro dos
olhos fechados
Fica todo o
meu começo.
Com esta
menina percorro
Caminhos onde
não cabem os meus pés
Mas é
permitida a entrada
Em mundos de
fadas e reis.
Na boca desta
menina
Sei cantigas
que não sei ouvir
Viajo por
notas e rimas que nunca pensei sentir.
Na vida desta
menina
Fica rica
minha vida
De tesouros
de piratas
E pequenas
coisas lindas.
No ritmo
desta menina
Pulsa meu coração
necessário
Mesmo com
pouco fôlego
Voa com
leveza de pássaro.
Nas mãos
desta menina
Sossega a
melhor parte de mim
Que ela vai
embalando
Com carinho
sem fim.
DEVORO
OS DIAS
Devoro os
dias, linha após linha,
Com o ardor
de quem procura um sonho,
Para enredar
a dor.
Voraz eu
espero,
Com o ardor
dos que pressentem
Inútil a
espera
Improvável o
encontro.
Ah! Matreira
a noite que nos engana
Mascara
limites intransponíveis,
Como se o
palpável esfarelasse em nossas mãos.
Por
intransferível, se mede a dimensão da dor.
Por descuido,
me faço feliz,
Como me
penteio.
Pois que
sejamos nossos limites mesmos.
Neles nos
encontraremos ombro a ombro.
E, se é por
acaso que sorrio,
É também por
que preciso
Do riso e do
seu inútil espanto.
Enfim este
labirinto me fez mentir
Uma prece
solitária.
Que sobreviva
o encanto.
Receba meu
abraço amigo e o meu desejo de: FELIZ REPOUSO, GUERREIRO.
Paz e Bem,
Facó.
Parabéns amigo! Você possui um jeito muito especial de retratar as coisas, parece até brincar com as palavras para nos encantar com seus escritos.
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