quinta-feira, 23 de maio de 2013

CARTA A UM AMIGO


                                                                          Texto de Luiz Carlos Facó


Soube do acidente que o acometeu e lamento o ocorrido. Privado de dedilhar as cordas do seu mágico violão presumo a enorme frustração, quiçá, decepção, que o abate. É uma pena! Consola-o, acredito, depois do ato de bravura que o vitimou, salvar uma begônia, o título que, por certo, os amigos lhes concederão: o de D. Quixote das begônias.

Honraria justa porque quem salva uma flor demonstra a admiração e o respeito às mulheres. Flores e mulheres são sinônimos. Seres, aparentemente franzinos que se fazem forte diante da dor. Graciosos e plenos de leveza, como as nuvens que pairam e passam por sobre as nossas cabeças, sob as mais diversas formas. Como se fossem esculturas produzidas por um Rodin. Pintadas por Botticelli ou Dali. Musicadas por Chiquinha Gonzaga. Descritas pela talentosa pena de um Machado de Assis (Capitu) ou de um Jorge Amado (D. Flor e Gabriela). Maliciosamente envolventes e sedutoramente atraentes, capazes de aquietarem a ansiedade dos nossos corpos sequiosos por prazeres e abrandarem as nossas mentes em permanente ebulição, graças às labaredas das preocupações que nelas insistem permanecer. Entes, tão perfeitos e belos, que os cercamos e, até a força, tentamos conquistá-los e tê-los sob a nossa permanente tutela, numa demonstração cabal do egoísmo masculino.

Sendo a mulher, obra mestra da criação, figura insubstituível sob todos os seus ângulos, quer físicos como a sinuosidade ímpar de suas formas, o brilhar dos seus olhos, os diversos matizes de suas peles, de suas carnes macias como flocos de algodão quer pelos dons espirituais e intelectuais que possuem, a bondade, a tolerância, o engenho criativo dirigido à música, à poesia, à literatura, à pintura.

Por tudo isso, ela deveria ser de domínio público. À disposição de todos sem vulgarizações, como os monumentos que se erguem em ruas e praças, para serem visualizados e desfrutados por toda sorte de transeuntes.

Pensava ser um experto da Bahia e da sua gente. Conhecê-las como as palmas das minhas mãos. Da primeira, do seu passado e presente - a História. Do povo, suas idiossincrasias, o misticismo, sua celebrada verve, a capacidade de criar. Quanta pretensão, hein? É verdade. Demasiada presunção. Agora acordei.

Sob o céu desta terra, nem tudo foi a tempo revelado. Há segredos por garimpar. Agora me dou conta de que do nosso chão e dos seus filhos pouco sei. Só conheço o verniz que os cobrem. Isso porque, caiu-me em mãos, incidentalmente, um livro de uma jovem mulher baiana, morta aos trinta anos, cujos predicados se assemelham àqueles que acima descrevi, com uma capacidade poética que a faz senão a melhor, no mínimo a coloca em pé de igualdade às melhores poetas nascidas, séculos afora, por estas bandas. Trata-se de Virgínia Andrade, editada post mortem pelo zelo dos seus pais, os cientistas Zilton e Sonia Andrade.

Como Castro Alves, Cassimiro de Abreu, Oscar Wilde, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, Felix Arvers, ela teve vida curta. Não sem antes ter deixado a sua marca na medicina, como pesquisadora, na pintura (autodidata), na poesia, cujos versos produzidos entre 1981 a 1983 os escondeu entre as páginas dos livros manuseados, cadernos, gavetas, armários, como se fossem segredos só seus e daqueles objetos familiares. Talvez, por medo de ver a sua intimidade esmiuçada, vasculhada, e devassada, sem permissão, por abelhudos, costumeiros censores da individualidade.

Num retrospecto do quanto escrevi, questiono? Por que os deuses, criadores das artes, nos enviam esses seres especiais, geniais, com prazo de validade tão curto? Será que por mera crueldade? Por sadismo?  Ou por acharem que, dali em diante, essa chama de talento com que ungiram esses protegidos se apagaria? Talvez, quem sabe, para poupá-los da aridez atacamenha que tomariam os seus espíritos a partir dali, desnudos do estro e da capacidade criativa? Mesmo que aceitássemos essa última hipótese como verdadeira, não seriam eles, os deuses, tiranos em relação aos parentes, aos amigos, aos admiradores daqueles obreiros aos quais amaram e amam desmedidamente ou a eles se afeiçoaram, determinando-os, por decisão deífica órfãos, prenhes de imensos vãos de lembranças e doídas saudades?

Esses questionamentos filosóficos eu os encontrei na poesia de Virgínia.

Através dela, Virginia nos conduz pela vida. Falava de partidas e chegadas, quando desejava ser recebida com flores. De caminhos tortuosos a percorrer. De lembranças. Do avô usando terno branco, indo e vindo, num passeio de poucos metros. Da filha, Isadora, que a empolga e que nela se reconhece. Dos amigos. Do amor dedicado à vida, consubstanciados em seus pais, dos quais seguiu o exemplo. Impertinente, ela se impõe. Da mesma forma que, submissa, ela se verga. Ademais ela mostra não se conduzir como Dulcinéia, mas como um D. Quixote de saías. Era valente. Não lutava contra moinhos de vento, mas contra a tirania dos costumes, a tibieza da vida. O morno acolher. As desventuras. Avisando, em cada verso, às vezes sub-repticiamente, suas intenções. Suas alegrias. Desolos, surdos e comoventes. Não vou compará-los aos de Florbela Espanca e aos de Anaïs Nin – sentimentos não se comparam –, mas eram tão fortes, nas entrelinhas, quanto os das duas. Surpreende-me em Virgínia Andrade, sua capacidade de transformar os elementos sobre os quais se debruçava em suas pesquisas científicas, nada líricos, e transformá-los em poesia da melhor qualidade: “Sigo em lenta autofagia/ Códigos, leis, sistemas/ Liofilizo e disseco/ A rótulos reduzo o meu tema. / E congelo e descongelo/ Faço de antígeno o poema.”

Falar dessa obra imensa e poderosa inserida em Casulo Azul (seu livro póstumo), dissecar sobre a autora e as suas canções versadas, seria necessário que eu escrevesse um alentado tomo. Mas não o farei atento ao seu desejo de hibernar. Ao trabalhador, o descanso prazeroso. Só o quebro dado à relevância do quanto tinha a revelar-lhe. Desculpe-me, pois, pela impertinência e pela importunidade.

Ao concluir, para matar a sua curiosidade de artista e poeta, transcrevo duas poesias, escolhidas a esmo, da musa que já se imortalizou em meu coração.

Ei-las:

ISADORA


No sono desta menina
Durmo por terras que nem conheço.
Dentro dos olhos fechados
Fica todo o meu começo.

Com esta menina percorro
Caminhos onde não cabem os meus pés
Mas é permitida a entrada
Em mundos de fadas e reis.

Na boca desta menina
Sei cantigas que não sei ouvir
Viajo por notas e rimas que nunca pensei sentir.

Na vida desta menina
Fica rica minha vida
De tesouros de piratas
E pequenas coisas lindas.

No ritmo desta menina
Pulsa meu coração necessário
Mesmo com pouco fôlego
Voa com leveza de pássaro.

Nas mãos desta menina
Sossega a melhor parte de mim
Que ela vai embalando
Com carinho sem fim.


DEVORO OS DIAS


Devoro os dias, linha após linha,
Com o ardor de quem procura um sonho,
Para enredar a dor.
Voraz eu espero,
Com o ardor dos que pressentem
Inútil a espera
Improvável o encontro.

Ah! Matreira a noite que nos engana
Mascara limites intransponíveis,
Como se o palpável esfarelasse em nossas mãos.
Por intransferível, se mede a dimensão da dor.
Por descuido, me faço feliz,
Como me penteio.

Pois que sejamos nossos limites mesmos.
Neles nos encontraremos ombro a ombro.
E, se é por acaso que sorrio,
É também por que preciso
Do riso e do seu inútil espanto.
Enfim este labirinto me fez mentir
Uma prece solitária.
Que sobreviva o encanto.

Receba meu abraço amigo e o meu desejo de: FELIZ REPOUSO, GUERREIRO.

Paz e Bem,

Facó.



       


Um comentário:

  1. Parabéns amigo! Você possui um jeito muito especial de retratar as coisas, parece até brincar com as palavras para nos encantar com seus escritos.

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