terça-feira, 14 de maio de 2013

HÉLIO CONTREIRAS



Um D. Quixote de la Mancha, baiano

                                                                               Texto de Luiz Carlos Facó

Admiram-me as virtudes que dotam certos indivíduos. Espécimes raros. Tenacidade; disposição para lutar por ideais; convicção e firmeza no decidir; acendrado amor ao próximo; capacidade em ser fiel a princípios; renúncias pessoais, em favor de causas nobres; coragem. São algumas delas, embora, muitas outras, pudessem ser aqui elencadas. Todas, imanentes, em maior ou menor grau, nas biografias dos que se fizeram mártires, herois, santos, líderes revolucionários, estadistas, autores, pesquisadores, músicos, inventores, até, em alguns políticos, os quais foram também audazes contribuintes, em todos os vértices, da evolução humana.

Esse prólogo remete-me a D. Quixote, imortal obra criada por Miguel de Cervantes, que, segundo o autor “... es una  invecticva contra los libros de caballerias... No mira más que a deshacer la autoridad y cabida que en nel mundo y en el vulgo tienem los libros de caballerias...”
Pelo visto, sua intenção era escrever uma sátira aos livros de cavalaria, tão em voga na Espanha, dos idos do século XVII, por volta dos tenros anos de 1600. Mas aconteceu brotar da sua pena, obra edificante que é marco do romance moderno. Cujos protagonistas ganharam vida própria e andam pelo mundo inundando de sonhos e emoções a quem deles se aproxima. Dentre tantos, o mais festejado, sem dúvida, é D. Quixote de la Mancha. Fidalgo, cuja fortuna não era constituída de bens materiais, mas de sentimentos, intenções de levar justiça a quem dela se achasse deserdado numa determinação paradigmática.
Acho, no íntimo do meu eu, salvo melhor conceito, foi nessa figura emblemática, cultuada universalmente, que se plasmou o caráter do meu amigo Hélio Contreiras. Explico os porquês. Ambos, quer o vulto ficcional, quer o real, têm corações enormes, derramadeiros de bondades. Experimentados em vicissitudes de toda sorte. Sempre, colocados a serviço dos mais fracos a ponto de tornarem-se peregrinos da ousadia, melhor dizendo, da audácia.
Se hoje vivesse, D. Quixote seria um socialista. Não por debater-se a honrar o nome de Dulcineia, seu grande amor. Mas, pela disposição em defender fracos e oprimidos. Impediu-lhe ser o desconhecimento da doutrina ainda não gestada.
Hélio Contreiras, nascido no século XX, na cidade de Rio de Contas, no coração da Chapada Diamantina, era novidadeiro. Encantado com Tomas Morus, com ao autores ligados ao anarquismo, o Das Kapital, de Karl Marx, a Revolução Chinesa ou caminhada de Mao Tsé-Tung, em 1911, nas lonjuras do Oriente. A Revolução Russa, de outubro de 1917. A Revolução Cubana e o respeito por Che Guevara, com quem esteve mais de uma vez, a estada na RDA, República Democrática Alemã, antiga Alemanha Oriental, onde teve a oportunidade de observar a construção do socialismo, após a derrota do nazismo, com suas virtudes e erros, fez-se socialista.
Tais coincidências cessam aí. D. Quixote, na hora da morte, renunciou a cavalaria. Sobre tal episódio, relembra-nos Manuel Bandeira, de forma exemplar: “Nada, nem os conselhos de Sancho, glutão, egoísta, terra-a-terra, mas no fundo bom homem e sempre fiel ao patrão aloucado, nem os desmentidos mais evidentes e mortificantes da realidade, logram convencer as ilusões generosas do herói, que só na hora da morte renega a cavalaria.”
Conhecendo, como conheço o caráter do amigo Hélio, mesmo na hora da morte jamais abjurará seus princípios políticos e filosóficos. Todo autor prima pela criatividade. Dá ao seu texto, algumas vezes, clima lírico, melodramático – melodrama, gênero cuja origem se deu na França, no limiar do século XVIII – por vezes trágico. Foi o que fiz em parágrafos anteriores, para dizer das convicções de Hélio. Na verdade, apodando os excessos, elas são firmes, jamais sectárias. Como poderia sê-lo se é um sonhador, influenciado pela obra A Utopia, uma ilha cujos habitantes abominavam a intransigência, opositores que eram de quaisquer tipos de ditadura, fossem elas brandas ou não, gestadas pela direita ou esquerda?
Desde criança, Hélio, quando aprendeu a escala musical, ao olhar o céu, sempre o viu como uma grande partitura, cujos dós, rés, mis, fás, sóis, lás, sis, eram as estrelas. E as claves de sol, fá e dó, as constelações. Intrigava-o, contudo, só conhecer poucos compositores que houvessem copiado algumas daquelas criações divinais. Será que delas só se aperceberam Haydn, Mozart, Bach, Schubert, Chopin, Debussy, Mendelssohn, Vivaldi, Verdi, Pixinguinha, Tom Jobim, Dorival Caymmi, Cole Porter, e outros, por sinal, pouquíssimos? Será, indagava baixinho, por preguiça de erguerem os olhos? Por considerarem a terra a materialidade, o centro da vida e o éter, o intangível? Ou por simples receio de embarcarem num veleiro espacial, rumo ao desconhecido, mesmo sabedores de que lá fariam descobertas inacreditáveis, veriam universos oníricos, paragens inconcebíveis? Ou por temerem imiscuir-se onde não foram convidados, receosos de que, com suas presenças, pudessem embaçar a luz da lua e afrouxar o brilho das estrelas? Ou intimidados pela polifonia que ele abriga, desde o estrondear dos trovões aos sussurros das brisas e aos angustiantes gritos das ventanias? Ou por ficarem paralisados ante a grandiosidade da policromia que nele existe, desde o azul água ao azul mais escuro, o arco-íris com as suas diversas cores, o cinza chumbo das nuvens carregadas, o vermelho, o amarelo em seus matizes mais variados deixados pelo rastro do sol a caminho do recolhimento?
    
Por essa aguda curiosidade, pertencentes aos mais sensíveis espíritos, por não se amedrontar em olhar o infinito e encontrar, até no trivial tanta beleza da qual tira acordes transcendentes, Hélio não se fez socialista caricato, daqueles descritos, indignamente, “comedores de criancinhas”. Seu espírito libertário não o permitiria. Na verdade, ele está mais para livre pensador do que apegado a vãs filosofias políticas.
A bem da verdade é importante se esclareça, ser do seu desejo, que quando do seu féretro, a milhas de distância em acontecer, seja ouvido por todos o Bourrée de Bach – composto em mi menor – músico que o inspira, de quem diz: “sou um apaixonado por este alemão, gênio do barroco e da polifonia, mestre dos mestres”.  
Não partilhei da sua vida quando jovens éramos. Dele, à época, só ouvia das suas histórias, tornadas folclore e difundidas boca a boca por toda Salvador, para onde se transferiu com a família, da qual era o antepenúltimo de dez irmãos.     
Estudante do Colégio da Bahia, o vetusto Central, teve como companheiros Glauber Rocha, Fernando Perez, João Ubaldo, Joaci Góes, Calazans Neto, Ângelo Roberto, Frederico Souza Castro. Turma da pesada, nata de uma juventude promissora, que se distinguiria ao correr do tempo. E, entre eles e as mulheres, Hélio fazia sucesso. No rol dos amigos, dado o seu espírito empreendedor, seu dinamismo e inteligência aguçada. Dentre as mulheres pelo fascínio despertado pelo seu charme, do dedilhar, à perfeição, o pinho, a voz de tenor soltada entre as aulas, no entoar canções, composições suas, letra e música, rebuscadas de romantismo e com raízes nordestinas. A tudo isso, somava-se a aura de idealista contestador. Preso no governo Dutra e de haver levado ao fracasso, uma convenção dos partidários integralistas. Ultraconservadores, ditos defensores de Deus, Pátria e Família, no Cine Teatro Guarany, quando, da torrinha da casa, entre os assistentes, soltou, para estupefação geral, uma galinha pintada de verde. Registre-se: galinha verde era o apodo depreciativo dado àqueles políticos.
Multímodo, abandonou o primeiro ano do curso de direito para viajar à Europa, com o "Trio Abaeté". A finalidade: participar do Festival Mundial da Juventude, em Viena, evento organizado pelo socialismo, juntando assim, à paixão política a musical. Quedou-se por lá. Radicando-se, posteriormente, na antiga Alemanha Oriental, onde estudou, casou, trabalhou e teve filhos. Em 1968, quando do retorno ao Brasil, deparou-se com o AI5. Período duro, tirado de letra como quem “..(aceita) o tempo, os homens e as coisas tais como são. Deus não poderia fazê-los diferentes só por (sua)  minha causa...” (Bismark).

Hélio Cezar Contreiras de Almeida, esse seu nome completo, meu amigo há mais de dez anos, continua compondo e cantando. Seus álbuns, Esturro da Onça e Sonho de Criança, inserem-se entre os mais importantes monumentos da música popular brasileira. Ademais, escreve como gente grande. Seu livro, Conto um Conto e Aumento um Ponto, é particularíssimo.  Tem prosa redonda, enxuta, carregada de raízes baianas e histórias hilárias. Tão gostosas de se ler quanto sua música de se ouvir.

Irrequieto, meu amigo não para. Agora, prepara o lançamento do seu primeiro romance: Terra Bruta. Como já o li, arrisco dizer: é um épico comparável aos amadianos, na força das suas personagens, das situações descritas e conduzidas com uma visão própria. Visão utópica, de eterno sonhador. Do humanista de fé, meu irmão camarada. Embora lance mão de uma carrada de personagens, a exemplo de Tolstoi.

A vida deu-lhe seis filhos. Uma mulher amantíssima, Ana Luiza Fernandes, intelectual, poeta, contista, designer-gráfica, a quem delego o epílogo desta crônica, reverenciando-a, pelo poema de sua autoria para homenagear o companheiro de tantas batalhas e de tantos feitos, tão pobre quanto eu. Não pobre de espírito. Nesse aspecto, somos milionários. Somos pobres, pecuniariamente. Ele, talvez, por suas convicções filosóficas e confessa inaptidão para ganhar dinheiro, eu, por ser um capitalista frustrado.

Sabor das Marés
Reconheço a melodia
da tua voz
na sonoridade dos ventos.
No marulhar das ondas,
num doce acalanto
a segredar carinhos.

De pronto, toda amargura
se dissipa na brancura
de trêmulas espumas.
E se desmancha, arrastada                                 .
pelo infindável refluir
da maré vazante.

Tua boca salgada
me  afoga de beijos.                                             .
Bebo em teus lábios
o sol das manhãs,
para saciar a imensa sede
que tenho de ti.
Teu cheiro de maresia
desperta em mim
um amor oceânico.
Espraias o teu desejo
em suaves ondas
no  meu ventre.
Enlaças meus ombros frágeis
sobre o lençol acetinado da areia.
Tuas mãos em concha
cobrem meus seios.
Conquistas as dunas tépidas
do meu corpo.

Solto as amarras,
enfuno as velas ao vento.
Singro teus mares,
flutuo em teus braços.
Livre, sem leme,
ao sabor das marés.

Mergulho em ti e
emerjo cristalina, inteira.
Como a luminosa aurora
que se levanta no horizonte,
descerrando as pálpebras
azuis do oceano.

Quero, amor,
lançar âncora
em tuas águas mornas.
Fundear na calmaria
serena do teu mar,
meu porto-seguro.


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