Um
D. Quixote de la Mancha, baiano
Texto
de Luiz Carlos Facó
Admiram-me
as virtudes que dotam certos indivíduos. Espécimes raros. Tenacidade;
disposição para lutar por ideais; convicção e firmeza no decidir; acendrado
amor ao próximo; capacidade em ser fiel a princípios; renúncias pessoais, em
favor de causas nobres; coragem. São algumas delas, embora, muitas outras,
pudessem ser aqui elencadas. Todas, imanentes, em maior ou menor grau, nas
biografias dos que se fizeram mártires, herois, santos, líderes
revolucionários, estadistas, autores, pesquisadores, músicos, inventores, até,
em alguns políticos, os quais foram também audazes contribuintes, em todos os
vértices, da evolução humana.
Esse
prólogo remete-me a D. Quixote, imortal obra criada por Miguel de Cervantes,
que, segundo o autor “... es una invecticva contra los libros de
caballerias... No mira más que a deshacer la autoridad y cabida que en nel mundo
y en el vulgo tienem los libros de caballerias...”
Pelo
visto, sua intenção era escrever uma sátira aos livros de cavalaria, tão em
voga na Espanha, dos idos do século XVII, por volta dos tenros anos de 1600.
Mas aconteceu brotar da sua pena, obra edificante que é marco do romance
moderno. Cujos protagonistas ganharam vida própria e andam pelo mundo inundando
de sonhos e emoções a quem deles se aproxima. Dentre tantos, o mais festejado,
sem dúvida, é D. Quixote de la Mancha. Fidalgo, cuja fortuna não era
constituída de bens materiais, mas de sentimentos, intenções de levar justiça a
quem dela se achasse deserdado numa determinação paradigmática.
Acho,
no íntimo do meu eu, salvo melhor conceito, foi nessa figura emblemática,
cultuada universalmente, que se plasmou o caráter do meu amigo Hélio
Contreiras. Explico os porquês. Ambos, quer o vulto ficcional, quer o real, têm
corações enormes, derramadeiros de bondades. Experimentados em vicissitudes de
toda sorte. Sempre, colocados a serviço dos mais fracos a ponto de tornarem-se
peregrinos da ousadia, melhor dizendo, da audácia.
Se
hoje vivesse, D. Quixote seria um socialista. Não por debater-se a honrar o
nome de Dulcineia, seu grande amor. Mas, pela disposição em defender fracos e
oprimidos. Impediu-lhe ser o desconhecimento da doutrina ainda não gestada.
Hélio
Contreiras, nascido no século XX, na cidade de Rio de Contas, no coração da
Chapada Diamantina, era novidadeiro. Encantado com Tomas Morus, com ao autores
ligados ao anarquismo, o Das Kapital, de Karl Marx, a Revolução Chinesa ou
caminhada de Mao Tsé-Tung, em 1911, nas lonjuras do Oriente. A Revolução Russa,
de outubro de 1917. A Revolução Cubana e o respeito por Che Guevara, com quem
esteve mais de uma vez, a estada na RDA, República Democrática Alemã, antiga
Alemanha Oriental, onde teve a oportunidade de observar a construção do
socialismo, após a derrota do nazismo, com suas virtudes e erros, fez-se
socialista.
Tais
coincidências cessam aí. D. Quixote, na hora da morte, renunciou a cavalaria.
Sobre tal episódio, relembra-nos Manuel Bandeira, de forma exemplar: “Nada, nem os conselhos de Sancho, glutão,
egoísta, terra-a-terra, mas no fundo bom homem e sempre fiel ao patrão
aloucado, nem os desmentidos mais evidentes e mortificantes da realidade, logram
convencer as ilusões generosas do herói, que só na hora da morte renega a
cavalaria.”
Conhecendo,
como conheço o caráter do amigo Hélio, mesmo na hora da morte jamais abjurará
seus princípios políticos e filosóficos. Todo autor prima pela criatividade. Dá
ao seu texto, algumas vezes, clima lírico, melodramático – melodrama, gênero
cuja origem se deu na França, no limiar do século XVIII – por vezes trágico.
Foi o que fiz em parágrafos anteriores, para dizer das convicções de Hélio. Na
verdade, apodando os excessos, elas são firmes, jamais sectárias. Como poderia
sê-lo se é um sonhador, influenciado pela obra A Utopia, uma ilha cujos habitantes abominavam a intransigência,
opositores que eram de quaisquer tipos de ditadura, fossem elas brandas ou não,
gestadas pela direita ou esquerda?
Desde
criança, Hélio, quando aprendeu a escala musical, ao olhar o céu, sempre o viu
como uma grande partitura, cujos dós, rés, mis, fás, sóis, lás, sis, eram as
estrelas. E as claves de sol, fá e dó, as constelações. Intrigava-o, contudo,
só conhecer poucos compositores que houvessem copiado algumas daquelas criações
divinais. Será que delas só se aperceberam Haydn, Mozart, Bach, Schubert,
Chopin, Debussy, Mendelssohn, Vivaldi, Verdi, Pixinguinha, Tom Jobim, Dorival
Caymmi, Cole Porter, e outros, por sinal, pouquíssimos? Será, indagava
baixinho, por preguiça de erguerem os olhos? Por considerarem a terra a
materialidade, o centro da vida e o éter, o intangível? Ou por simples receio
de embarcarem num veleiro espacial, rumo ao desconhecido, mesmo sabedores de
que lá fariam descobertas inacreditáveis, veriam universos oníricos, paragens
inconcebíveis? Ou por temerem imiscuir-se onde não foram convidados, receosos
de que, com suas presenças, pudessem embaçar a luz da lua e afrouxar o brilho
das estrelas? Ou intimidados pela polifonia que ele abriga, desde o estrondear
dos trovões aos sussurros das brisas e aos angustiantes gritos das ventanias?
Ou por ficarem paralisados ante a grandiosidade da policromia que nele existe,
desde o azul água ao azul mais escuro, o arco-íris com as suas diversas cores,
o cinza chumbo das nuvens carregadas, o vermelho, o amarelo em seus matizes
mais variados deixados pelo rastro do sol a caminho do recolhimento?
Por
essa aguda curiosidade, pertencentes aos mais sensíveis espíritos, por não se
amedrontar em olhar o infinito e encontrar, até no trivial tanta beleza da qual
tira acordes transcendentes, Hélio não se fez socialista caricato, daqueles
descritos, indignamente, “comedores de criancinhas”. Seu espírito libertário
não o permitiria. Na verdade, ele está mais para livre pensador do que apegado
a vãs filosofias políticas.
A bem
da verdade é importante se esclareça, ser do seu desejo, que quando do seu
féretro, a milhas de distância em acontecer, seja ouvido por todos o Bourrée de
Bach – composto em mi menor – músico que o inspira, de quem diz: “sou um apaixonado por este alemão, gênio do
barroco e da polifonia, mestre dos mestres”.
Não
partilhei da sua vida quando jovens éramos. Dele, à época, só ouvia das suas
histórias, tornadas folclore e difundidas boca a boca por toda Salvador, para
onde se transferiu com a família, da qual era o antepenúltimo de dez
irmãos.
Estudante
do Colégio da Bahia, o vetusto Central, teve como companheiros Glauber Rocha,
Fernando Perez, João Ubaldo, Joaci Góes, Calazans Neto, Ângelo Roberto,
Frederico Souza Castro. Turma da pesada, nata de uma juventude promissora, que
se distinguiria ao correr do tempo. E, entre eles e as mulheres, Hélio fazia
sucesso. No rol dos amigos, dado o seu espírito empreendedor, seu dinamismo e
inteligência aguçada. Dentre as mulheres pelo fascínio despertado pelo seu
charme, do dedilhar, à perfeição, o pinho, a voz de tenor soltada entre as
aulas, no entoar canções, composições suas, letra e música, rebuscadas de
romantismo e com raízes nordestinas. A tudo isso, somava-se a aura de idealista
contestador. Preso no governo Dutra e de haver levado ao fracasso, uma
convenção dos partidários integralistas. Ultraconservadores, ditos defensores
de Deus, Pátria e Família, no Cine Teatro Guarany, quando, da torrinha da casa,
entre os assistentes, soltou, para estupefação geral, uma galinha pintada de
verde. Registre-se: galinha verde era o apodo depreciativo dado àqueles
políticos.
Multímodo,
abandonou o primeiro ano do curso de direito para viajar à Europa, com o
"Trio Abaeté". A finalidade: participar do Festival Mundial da
Juventude, em Viena, evento organizado pelo socialismo, juntando assim, à
paixão política a musical. Quedou-se por lá. Radicando-se, posteriormente, na
antiga Alemanha Oriental, onde estudou, casou, trabalhou e teve filhos. Em
1968, quando do retorno ao Brasil, deparou-se com o AI5. Período duro, tirado
de letra como quem “..(aceita) o tempo, os homens e as coisas tais como são. Deus
não poderia fazê-los diferentes só por (sua)
minha causa...” (Bismark).
Hélio
Cezar Contreiras de Almeida, esse seu nome completo, meu amigo há mais de dez
anos, continua compondo e cantando. Seus álbuns, Esturro da Onça e Sonho de
Criança, inserem-se entre os mais importantes monumentos da música popular
brasileira. Ademais, escreve como gente grande. Seu livro, Conto um Conto e Aumento um Ponto, é particularíssimo. Tem prosa redonda, enxuta, carregada de
raízes baianas e histórias hilárias. Tão gostosas de se ler quanto sua música
de se ouvir.
Irrequieto,
meu amigo não para. Agora, prepara o lançamento do seu primeiro romance: Terra Bruta. Como já o li, arrisco
dizer: é um épico comparável aos amadianos, na força das suas personagens, das
situações descritas e conduzidas com uma visão própria. Visão utópica, de
eterno sonhador. Do humanista de fé, meu irmão camarada. Embora lance mão de
uma carrada de personagens, a exemplo de Tolstoi.
A
vida deu-lhe seis filhos. Uma mulher amantíssima, Ana Luiza Fernandes,
intelectual, poeta, contista, designer-gráfica,
a quem delego o epílogo desta crônica, reverenciando-a, pelo poema de sua
autoria para homenagear o companheiro de tantas batalhas e de tantos feitos,
tão pobre quanto eu. Não pobre de espírito. Nesse aspecto, somos milionários.
Somos pobres, pecuniariamente. Ele, talvez, por suas convicções filosóficas e
confessa inaptidão para ganhar dinheiro, eu, por ser um capitalista frustrado.
Sabor
das Marés
Reconheço a
melodia
da tua voz
na sonoridade dos
ventos.
No marulhar das
ondas,
num doce acalanto
a
segredar carinhos.
De pronto, toda
amargura
se dissipa na
brancura
de trêmulas
espumas.
E se desmancha,
arrastada .
pelo infindável
refluir
da
maré vazante.
Tua boca salgada
me afoga de beijos. .
Bebo em teus
lábios
o sol das manhãs,
para saciar a
imensa sede
que
tenho de ti.
Teu cheiro de
maresia
desperta em mim
um amor oceânico.
Espraias o teu
desejo
em suaves ondas
no meu ventre.
Enlaças meus
ombros frágeis
sobre o lençol acetinado da areia.
Tuas mãos em concha
cobrem meus seios.
Conquistas as
dunas tépidas
do meu corpo.
Solto as amarras,
enfuno as velas
ao vento.
Singro teus
mares,
flutuo em teus
braços.
Livre, sem leme,
ao sabor das
marés.
Mergulho em ti e
emerjo
cristalina, inteira.
Como a luminosa
aurora
que se levanta no
horizonte,
descerrando as
pálpebras
azuis do oceano.
Quero, amor,
lançar âncora
em tuas águas
mornas.
Fundear na
calmaria
serena do teu
mar,
meu porto-seguro.
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