quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A ARTE GÓTICA

Autoria do Prof. Pierre Santos


Não é sem razão que muitos autores, referindo-se às técnicas de construção equacionadas pela arte que encerra o ciclo medieval, falam em milagre gótico. De fato, como que do dia para a noite, num passe de
mágica, vemos alijar-se o peso maciço da igreja românica e do edifício brotarem verdadeiros tentáculos de aranha rendados a impelirem-no para cima, como se o templo estivesse tentando a libertação das amarras de pedra de seus alicerces, para ascender ao encontro do céu. Eis, afinal, satisfeito o anseio de enlevo e êxtase que, dominando e superando a materialidade do instrumental de construção, leva o elemento síntese de suas ansiedades, a Catedral, a se transformar toda ela numa contrita prece de pedra e de argamassa.
Sem dúvida, não foram nada fáceis as soluções que o engenho do arquiteto gótico obteve. Se o ponto de partida era aparentemente simples, como seja a visão estrutural do conjunto, seu equacionamento estava longe de ser um “ovo de Colombo”, como querem acreditar alguns historiadores; ao contrário, demandou muito esforço e concentração. Coroados de êxito o raciocínio, o planejamento e a execução, o arquiteto gótico inaugurou imprevistas possibilidades para o estilo, que dominou durante mais de três séculos toda a Europa, em cuja visão estrutural (à qual, se alguém, por analogia, tivesse dado o nome depedra armada, teria estado absolutamente correto) encontramos o legítimo ancestral da moderna estrutura de cimento armado.
O ponto de partida foi a retomada de um elemento arquitetônico existente desde havia muito – o arco ogival ou quebrado – de cujas possibilidades estruturais os arquitetos anteriores não souberam tirar partido. Esta retomada foi, sem dúvida, um “ovo de Colombo”, que acionou e acelerou o processamento da revolução operada pelo estilo gótico. Mas, como uma coisa puxa outra, seu emprego devido numa conjuntura necessariamente complexa exigiria do arquiteto, como um desafio, outros achados agora originais, que perfizessem em seu conjunto a ambicionada harmonia expressiva e simbólica. Aceitando o desafio, esse arquiteto, como se diz, agarrou com unhas o bloco pétreo, e, subjugando-o aos caprichos de sua inteligência, replicou desafiando, por sua vez, as leis da gravidade, com o emprego dos princípios que agiram sobre a articulação entre os vários elementos de que lançou mão.
O objetivo primordial era um equilíbrio ideal para as forças que agem sobre a construção, neutralizando-as em suas pressões, não simplesmente através da sustentação do peso vertical da gravidade, mas atacando-as por oposição a todos os sentidos para os quais se distribuem desde as perpendiculares às inclinadas, nas direções transversal, longitudinal e oblíqua, por intermédio de elementos que confirmassem esses sentidos, recebendo-lhes os pesos e remetendo-os simultaneamente ao apoio do solo. A gravidade tem as suas forças e o material tem o seu peso. Tratava-se, neste impasse, de encontrar medidas de equilíbrio e neutralidade para todos os elementos empregados.
E aqui se nos revela em toda a sua plenitude o milagre gótico: o objetivo foi conseguido. Primeiro, pelo cruzamento dos seis arcos ogivais em cada conjunto de quadro colunas, de forma que cada uma apoiava três meios arcos do primeiro lance e mais dois do lance seguinte, a que se articulava, numa sucessão de lances modulados desde a entrada à abside da igreja, sem falar no apoio que dava também aos arcos das abóbadas laterais; segundo, pela repetição do mesmo sistema, em menores proporções, em naves laterais, uma ou duas de cada lado da principal conforme o tamanho do templo, colaborando estas no embate contra os empuxos oblíquos; terceiro, e aqui está uma das mais significativas criações do estilo, pelo uso do arcobotante que, amarrado também ao ponto de união dos vários arcos da abóbada central ou das imediatamente laterais, conforme se trate de igreja de três ou de cinco naves, se lançava por cima da última nave, como elemento externo dessa estrutura, indo apoiar-se em leves escoras que contornavam o edifício, neutralizando, assim, as forças inclinadas e constituindo-se num todo altamente decorativo do exterior, em sua elegante volta por detrás da abside, a lembrar uma coroa preciosa, e em sua passagem nas laterais, acima das naves; além disso, colaborava ainda na expulsão das águas pluviais, lançando-as para longe da base e evitando o comprometimento dos alicerces que, assim, não se deixariam minar por infiltrações de chuva. Ora, esta era o grande terror de todos os arquitetos anteriores, pois a chuva caindo ano após ano, muitas vezes com incalculável intensidade, sempre se infiltrava diretamente nos alicerces, os quais, constantemente, corriam o risco de ceder à falta da terra deslocada pelas águas, exigindo após cada estação chuvosa cuidados permanentes, que nem sempre conseguiam ser eficazes. Com os novos recursos técnicos e achados revolucionários introduzidos na arquitetura, estava vencido esse grande fantasma que sempre ameaçava a arquitetura de então.
  

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