A
BAHIA NA
SEGUNDA GUERRA MUNDIAL**
O
encouraçado Minas Gerais (o anjo da guarda de Salvador), fundeado na Baía de
Todos os Santos, para protegê-la dos ataques da marinha de guerra alemã.
Consuelo Novais
Sampaio*
* Professora aposentada do Departamento de História da Universidade
Federal da Bahia
.
** Agradeço ao mestre Luiz Henrique Dias Tavares e ao amigo João
Falcão pela leitura e comentários esclarecedores, que influíram na versão
final deste artigo; ao confrade João Eurico Matta, pela indicação de fontes
valiosas; à professora Maria Conceição B. C. e Silva, por sua contribuição na
coleta de dados e à pesquisadora Niva Novais Asplund, pelo valioso auxílio na
organização dos documentos.
No momento em que se comemora o cinqüentenário do
fim da Segunda Guerra Mundial, vem-nos à mente a pergunta: como teriam os
baianos reagido ao conflito que abalou os alicerces da civilização europeia?
Através do rádio e dos jornais, ficaram sabendo que Hitler havia invadido a
Polônia (1o de setembro de 1939) e que, dois dias depois, a
Inglaterra e a França haviam declarado guerra à Alemanha. Acompanharam os
acontecimento à distância mas, aos poucos, foram-se aproximando do palco da
Guerra. A população foi mobilizada e muitos baianos partiram para lutar nos
campos da Itália. Esse foi um período conturbado e, sem dúvida, muitas
mudanças sofreram as sociedades da época. Na Bahia, que alterações teria a
Guerra provocado no quotidiano da população? No plano político, como teria a
mobilização para a Guerra contribuído para acelerar o fim do Estado Novo?
Estas são algumas das indagações que motivaram
este artigo. Para respondê-las, contudo, não nos deteremos na análise dos
anos difíceis da ditadura instituída por Vargas (10 de novembro de 1937), nem
tampouco no desenrolar da Guerra. Mas é preciso não esquecer que os anos do
Estado Novo foram de grande instabilidade política, o que se compreende,
posto que, despojadas dos canais institucionais de manifestação, as forças
vivas da sociedade foram contidas à força. Mas represadas, permaneceram em
ebulição. Antes da Guerra terminar, as constantes manifestações populares, em
prol dos Aliados e da Força Expedicionária Brasileira, provocaram fissuras no
bloco repressor, dando passagem à almejada democratização do país1. Surpreendentemente,
foi Vargas quem ordenou a mobilização popular. Mas não sabia que, assim
agindo, estava decretando não só o fim do regime político que criara, mas o
seu próprio fim.
Estimulam-se os
baianos
Até 1941, ou mais precisamente, até o ataque japonês
à base norte-americana de Pearl Harbor (7 de dezembro de 1941), foi fraca a
repercussão da guerra na Bahia. Não por falta de notícias, pois os jornais
registravam os acontecimentos na Europa, como chegados diretamente de
Washington. Contudo, o predomínio absoluto da sociedade rural sobre a urbana
(88%) e o elevado número de analfabetos (92%) limitavam o interesse pelo
conflito. Aos poucos, porém, a Guerra passou a ser discutida nas ruas, bares
e cafés da capital, pelos chamados "estrategistas de esquina" que,
em discussões animadas, mostravam estar a par dos acontecimentos que abalavam
a Europa. Não eram a favor dos Aliados, nem tampouco dos países do Eixo2.
Apoiavam a neutralidade assumida pelo governo brasileiro.
Esta situação, caracterizada por um interesse à
distância, começou a mudar a partir do número crescente de navios mercantes
brasileiros bombardeados pelos nazistas, e da contínua pressão dos Estados
Unidos para que o Brasil entrasse na Guerra. A política de indefinições, de
"equidistância pragmática" de Vargas, havia-se esgotado3. Em
janeiro de 1942, o Brasil rompeu relações diplomáticas com o Eixo. Mas Vargas
continuou vacilante em relação à tomada de medidas enérgicas, exigidas pelo
povo. Segundo João Falcão, líder comunista que viveu o período, foi da Bahia
"que partiu o primeiro grito de revolta contra o nazismo".
No dia 12 de março, os comunistas, que se haviam reorganizado na
clandestinidade, levaram "o povo às ruas, para demonstrar sua total
repulsa aos agressores". A indignação, ante a passividade do
governo, levou populares a depredarem a loja de charutos Dannemann &
Cia., de descendentes de alemães. Foi grande a repercussão dessa manifestação
no país4.
Sem escolha, ante as pressões que sofria — dos
Estados Unidos, da ala americanófila do seu ministério, e do povo —, Vargas
passou a promover várias medidas, voltadas para a eventualidade de uma
participação ativa dos brasileiros na Guerra. Pessoalmente, incumbiu o
General Estêvão Leitão de Carvalho, inspetor das Regiões Militares sediadas em
Recife e Salvador, de "levantar o espírito das populações do
Nordeste, cujo ânimo precisa ser esclarecido e estimulado"5. O
General deu conta da missão expressa que lhe fora confiada:
Falei aos oficiais, em todos os corpos e
estabelecimentos militares, às autoridades civis e ao povo, através de
numerosas entrevistas (...) Procurei
alertar todos contra a espionagem e o "quinta-colunismo" e
despertar o alvoroço patriótico contra uma agressão dos países do Eixo, com o
rememorar das gloriosas tradições da luta contra o invasor holandês6.
Exatamente assim, o General falou em Salvador.
Enalteceu a disposição dos baianos nas lutas em defesa da pátria e
relembrou-lhes o episódio da expulsão dos holandeses. Recebeu estrondosa
salva de palmas, ao afirmar: "se os inimigos vierem, serão rechaçados
à bala"7.
Teve, portanto, razão, quando garantiu a Vargas
que
... se pode contar inteiramente com o povo do
Nordeste para repelir qualquer agressão nazista. Todo ele vibrou de
entusiasmo (...), o terreno está preparado para receber o
trabalho militar8.
O General havia bem desempenhado o papel que lhe
fora confiado. Não sabia, porém, que o povo iria muito além do que ele e
Vargas haviam planejado.
Na sequência de medidas adotadas pelo governo, a
Rádio Sociedade da Bahia, única então existente no Estado, passou a irradiar
músicas inglesas de guerra, e iniciou um programa intitulado A Marcha
para a Vitória, com discos recebidos da Inglaterra, contando as aventuras
das esquadrilhas de bombardeiros e a bravura dos aviadores da RAF (Royal
Air Force) que, embora inferiores em número, fizeram Hitler desistir de
invadir aquele país9.
O Dia Panamericano (14 de abril)
foi outro estímulo na mobilização dos baianos. Organizou-se uma sessão
solene, no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, todo ornamentado com
flores e bandeiras dos países americanos. O interventor Landulfo Alves, os
cônsules dos Estados Unidos e da Argentina e os secretários de Estado
estiveram presentes à cerimônia, descrita como "de grande pompa".
Após as falas oficiais, cheias de vibração e patriotismo, colocaram-se, numa
das paredes da velha instituição, lado a lado, os retratos dos Presidentes
Getúlio Vargas e Franklin Roosevelt10.
Ainda em comemoração a essa grande data, os
estudantes desfilaram pelas ruas da Capital, empunhando grande cartaz com a
caricatura de Hitler e a legenda "O Monstro". Várias faixas
traziam inscrições de condenação às ideologias de direita: "Ser
integralista é ser traidor; O fascismo é contra Deus, contra a
pátria, contra a família". Ao mesmo tempo, manifestaram apoio à
França livre, com uma explosão de vivas ao General De Gaulle11.
Estimulados por mecanismos diversos e submetidos
aos meios de propaganda da época, os baianos foram-se aproximando do palco da
guerra. Ninguém melhor para estabelecer essa aproximação que os estudantes.
Possuíam o entusiasmo próprio da juventude e conhecimento suficiente para
defender com ardor a causa que se desejava que fosse defendida. Tornaram-se
alvo preferido das autoridades. Mas estas pareciam haver esquecido que, atrás
dos estudantes, estavam professores, médicos, advogados, engenheiros e outros
profissionais de formação liberal ou tendência esquerdista, que abraçaram com
entusiasmo a causa dos Aliados. Entre os muitos que deram o melhor de si em
defesa da liberdade e da democracia, nas praças públicas ou nos jornais,
lembramos: Mário Alves de Souza Vieira, estudante de Filosofia; Edgard Matta,
grande criminalista e orador aclamado, professor da Faculdade de Ciências
Econômicas; Nestor Duarte, Jaime Junqueira Ayres, Aloísio de Carvalho Filho,
Orlando Gomes, Gilberto Valente, Aliomar Baleeiro, Nelson Sampaio e Luiz
Viana Filho, professores da Faculdade de Direito; Estácio de Lima, Eduardo de
Morais, Álvaro Rubim de Pinho, Luis Rogério e Rui Santos, professores da
Faculdade de Medicina; Almir Matos, jornalista; Wilson Lins, diretor do
matutino O Imparcial; Josaphat Marinho e Jaime Baleeiro, jovens
advogados; João Falcão, Jacob Gorender e Dante Leonelli, estudantes de
Direito, sendo que João era o dirigente do Comitê Regional do Partido
Comunista; Fernando Santana, estudante de Engenharia; Heron Alencar, Orlando
Moscozo Barreto de Araujo, Álvaro Rubim de Pinho e Wilson Falcão, estudantes
de Medicina, sendo que Orlando era presidente da Comissão Central Estudantil
Pela Defesa Nacional e Pró-Aliados; major Cosme de Farias, rábula a serviço
dos pobres e fundador da Liga Baiana Contra o Analfabetismo; Edith da Gama e
Abreu, líder feminista e membro da Academia de Letras da Bahia e muitos
outros. Ao retornar do exílio em setembro de 1942, Jorge Amado foi mais uma
voz a serviço da liberdade. Aceitou convite de Wilson Lins para trabalhar na
redação de O Imparcial. Escrevia crônicas e assinava a coluna
"Hora da Guerra".
Infelizmente, os limites deste artigo não nos
permitem alongar esta lista, nem comentar a atuação de cada um desses
democratas, "lutadores de muitas lutas pela liberdade"12.
Entre eles, alguns comunistas que, agindo na clandestinidade, haviam-se
infiltrado nos diversos setores da sociedade. O Comitê Regional havia sido
reconstituído e uma ala do partido, destacada para atuar junto ao movimento
estudantil13. Acima de tudo, a Bahia, como o Brasil, mobilizava-se por uma
causa justa, que terminou por ganhar os operários e demais categorias da
sociedade. As Faculdades de Direito, de Medicina e de Ciências Econômicas, a
Escola Politécnica e o Ginásio da Bahia foram centros irradiadores do
movimento pró-Aliados, no qual estava embutida a luta contra o Estado Novo.
Mobilizam-se os
estudantes
Integrados ao movimento nacional de apoio à luta
contra o fascismo e o nazismo, e estimulados pelos comunistas, os estudantes
baianos organizaram comissões de defesa nacional nas
faculdades de Salvador, com o objetivo de atrair adesões. Assim, foi
instalada na Faculdade de Direito (2 de maio de 1942), em sessão solene
presidida pelo diretor Aloísio de Carvalho Filho, e ante a presença das mais
altas autoridades civis e militares, dos cônsules da Inglaterra e dos Estados
Unidos, a Comissão Central Estudantil pela Defesa Nacional e Pró-Aliados,
órgão deliberativo e coordenador da mobilização que se desejava
desencadear14.
Um sentimento de que os alemães preparavam-se
para invadir o Brasil — e poderia ser pela Bahia — permeava a sociedade. Os
secundaristas partilhavam este sentimento e fizeram do Ginásio da Bahia o seu
quartel general. Aí promoveram sessões cívicas e organizaram muitas
passeatas, coroadas por inflamados comícios. Em geral, percorriam a Avenida
Sete de Setembro, principal artéria da Cidade, cantando o Hino Nacional, ou a
Marselhesa, em direção à Praça da Sé, local preferido para a instalação de
palanques. Oradores escolhidos, ou improvisados, em falas vibrantes,
prestavam solidariedade às medidas tomadas contra os países do Eixo; rendiam
homenagem às Forças Armadas, em especial à FAB, responsável maior pelo
afundamento de navios nazistas em costas do Brasil.
O comício do dia 14 de julho de 1942 é um exemplo
dessas muitas manifestações cívicas. Foi antecedido pela fundação de uma
organização que se chamou União da Bahia pela Defesa Nacional. A cerimônia,
conduzida pelos jovens advogados Josaphat Marinho e Jaime Ayres, e pela líder
feminista Edith Mendes da Gama e Abreu, teve lugar no Campo Grande, aos pés
do monumento ao Caboclo, no dia da Independência da Bahia (2 de Julho).
Combinaram-se os mais significativos símbolos históricos para estimular o
patriotismo dos baianos o Campo Grande, o Caboclo, o 2 de Julho, a queda da
Bastilha, marco maior na luta contra a opressão e o autoritarismo. Tudo
parecia perfeito para a grande manifestação que se desejava realizar. Nesse
dia, a recém-criada União da Bahia pela Defesa Nacional aliou-se à Comissão
Central Estudantil pela Defesa Nacional e Pró-Aliados e, juntas, promoveram
um "desfile monstro" pelas ruas da Cidade15. O evento
culminou com grande comício, que se desdobrou em dois momentos. O primeiro
teve lugar na Praça da Sé, num coreto todo iluminado e decorado com um grande
V de vitória. De um lado, o retrato de Getúlio Vargas; de outro, o de
Franklin Roosevelt. A banda de música da Força Pública tocou a Marselhesa,
dando início à manifestação. Apesar da chuva renitente, o povo encheu a
praça. Falaram, com "vibração e entusiasmo cívico", os
professores Nestor Duarte e Solon Guimarães, o bacharel Raimundo Brito, o
consul britânico, o estudante Renato Ribeiro, representando o Bureau
Antinazista da Faculdade Nacional de Direito, o francês Roger Souvestre, que
em Salvador arregimentava os partidários do General Charles De Gaulle, e o
major Cosme de Farias, grande orador popular. Terminada essa primeira etapa,
a multidão desceu a avenida Sete de Setembro, portando estandartes,
bandeiras, faixas com letreiros hostís às potências do Eixo e cartazes com
charges ridicularizando Hitler e os quintas-colunas. Pararam em frente ao
palácio do governo, de cuja sacada falou o interventor Landulfo Alves,
reafirmando sua solidariedade ao movimento patriótico dos jovens e exaltando
a atitude do Presidente da República, ao lado das Nações Unidas. Ao chegarem
à Praça da Piedade, teve lugar a segunda parte do comício. Então, vários
oradores sucederam-se ao microfone, entre eles o Secretário de Segurança,
Urbano Pedral Sampaio, o estudante de Direito, Raimundo Schawn, e o jornalista
Humberto de Alencar16.
As manifestações não se restringiram à Capital.
Em grupos — as famosas "embaixadas" —, os estudantes já haviam
percorrido várias cidades do interior, promovendo palestras e conclamando o
povo a unir-se contra o inimigo comum. Em Vitória da Conquista, por exemplo,
fizeram um "imponente comício", marcado por "intensa
vibração popular". À noite, no cine local, organizaram uma "hora
de arte", na qual fez-se o elogio à democracia e condenou-se o
nazi-fascismo. Mobilização semelhante teve lugar nas cidades de Itabuna e
Ilhéus, liderada pela "Embaixada Landulfo Alves". Em Feira de
Santana, a segunda mais importante cidade do Estado, também foi realizado
amplo comício, para a instalação da União de Feira de Santana pela Defesa
Nacional e da Comissão Estudantil pela Defesa Nacional e Pró-Aliados17.
Os estudantes baianos estavam com todos os
sentidos na Guerra. Assumiram o dever de mobilizar a população. Nem os
trabalhadores escaparam-lhes. Foram buscá-los nos principais sindicatos e
associações da classe, instando-os a aderir à campanha pela defesa nacional.
Quando o México declarou guerra aos países totalitários, realizaram uma
grande festa cívica, no Teatro Guarani, "aplaudindo a coragem"
daquele país, ao tempo em que conclamavam o Brasil a seguir-lhe os passos18.
Dois meses após, em agosto de 1942, depois de muito titubear, o governo
Vargas declarou guerra ao Eixo. Em seguida, a diretoria regional do Serviço
de Defesa Passiva foi ampliada, com a formação de nove comissões, integradas
por membros da alta classe e da alta classe média; diversos setores da
sociedade organizaram-se em "legiões patrióticas" e muitas
campanhas voltadas para o sucesso da Guerra mobilizaram a sociedade19.
A Campanha dos Metais e a Campanha da Borracha
Usada são exemplos. Estavam sob a direção da Capitania dos Portos, mas foram
conduzidas pelos estudantes, sempre com a colaboração anônima dos comunistas.
Frequentes notícias jornalísticas, como a que segue, exageravam os resultados
dessas campanhas, induzindo os jovens a trabalhar:
A mocidade das nossas escolas percorreu as nossas
ruas, onde receberam todo tipo de objetos de metais, que ajudará a nossa
Marinha de Guerra a construir os seus navios e a forjar as suas armas. A
quantidade coletada, de ontem para hoje, atinge cerca de 10 toneladas. Os
estudantes devem percorrer todos os bairros da Capital20.
E assim fizeram. Sacudiram a Cidade, coletando
metais de todos os tipos, na crença de estar alimentando fornos que
fabricavam armamentos destinados a salvar o Brasil.
Com objetivo idêntico, seguiu-se a Campanha de
Borracha Usada. Incansáveis, os estudantes foram, de casa em casa, em busca
de qualquer objeto de borracha — o pneumático estragado ou a chapa de
borracha de um salto de sapato servia. Acreditavam trabalhar para acelerar a
vitória dos Aliados. Como em todos os outros movimentos, o Colégio da Bahia
esteve na vanguarda. Dele partiu o primeiro contingente de jovens para a luta
nas ruas. O diretor, professor Francisco Conceição Menezes, encarregou-se de
organizar as turmas. Dizia-se que o material arrecadado seria recolhido em
depósitos, a fim de ser enviado a centros manufatureiros, especializados no
fabrico de armas de guerra21.
Animados pela ideologia liberal, que lhes era
transmitida nas escolas e nas instituições de ensino superior, os estudantes
baianos declararam luta aberta contra o nazi-fascismo. Quando da detenção de
brasileiros em campos de concentração nazista, comunicaram ao Presidente
Getúlio Vargas e ao Ministro do Exterior, Osvaldo Aranha, que "aguardavam
ansiosamente o instante de tomar armas para vingar os brasileiros,
assassinados e ofendidos, vítimas do nazismo"22.
Esse desejo de participação ativa foi reiterado
diversas vezes, inclusive quando um grupo de militares reformados do Exército
lançou manifesto, no Rio de Janeiro, pedindo a criação de um exército
pan-americano. Então, os estudantes telegrafaram ao líder do grupo, assumindo
o compromisso de pronto alistamento23.
Em fins de 1942, atingiu-se o auge da
mobilização, com a realização do IV Congresso dos Universitários em
Salvador. O objetivo desse encontro era traçar planos de ajuda ao governo, no
combate ao que se passou a chamar de "nazi-nipo-fasci-quinta
colunismo". Foi encerrado com um grande almoço de confraternização no
Palace Hotel, o de maior destaque na época. Cobrindo o evento, o jornal A
Tarde registrou que, "durante a sobremesa, foi entoado o
Hino da Mocidade, erguendo-se vivas ao Brasil, às Nações Unidas e morras ao
inimigo". Muito aplaudido foi o acadêmico Jacob Gorender, que leu
mensagem de sua autoria, exaltando os valores da democracia e da liberdade
humana24.
Também os escoteiros foram mobilizados. O
presidente da Federação Baiana de Escoteiros, Isaías Alves — chefe
integralista, secretário da Educação e irmão do interventor — recebeu
instruções no sentido de "declarar inativos os chefes, dirigentes
pioneiros, escoteiros e lobinhos nascidos nos países do Eixo ou descendentes
diretos de naturais destas nações, mesmo naturalizados". Recomendou
que o escoteiro se mantivesse alerta. Era sua obrigação "ver, ouvir,
suspeitar e informar às autoridades competentes" a existência de
qualquer elemento suspeito25.
No esforço de mobilização da sociedade, nem as
crianças escaparam. Delas se ocupou a Legião Brasileira de Assistência que,
percorrendo as escolas primárias, procurou atrair os pequeninos, mediante a
concessão de prêmios, que iam de entradas de cinema a passeios de avião26.
Em resumo, todos as camadas e categorias da
sociedade foram estimuladas a viver a Guerra. Para homenagear os brasileiros
mortos em ataques nazistas, a Associação Baiana de Imprensa reuniu-se,
decidindo dirigir um manifesto à Nação, para cuja redação foi indicado o
jornalista Jorge Calmon27.
Acirram-se os
ânimos
O sentimento de indignação que tomou conta dos
brasileiros com a notícia da prisão de nacionais, em campos de concentração
na França ocupada, ganhou maior intensidade com o afundamento do Tamandaré,
o décimo-segundo navio mercante brasileiro torpedeado pelos nazistas28. Os
comícios de protesto, voltados para a mobilização popular, intensificaram-se.
Na tarde de 8 de agosto de 1942, a União da Bahia
pela Defesa Nacional e a Comissão Estudantil pela Defesa Nacional e Pró-Aliados
que, como já vimos, eram as principais organizações à frente da "campanha
de preparação moral do povo baiano para a guerra", promoveram um
comício que reuniu cerca de dez mil pessoas, na Praça da Sé. Eram estudantes,
operários, intelectuais, homens e mulheres de todas as classes sociais que
exigiam a declaração de guerra. À noite, realizaram-se mais dois comícios:
um, na Praça Municipal; outro, ao pé da estátua do Barão do Rio Branco29.
O sentimento de indignação que se apoderou da
multidão atingiu o auge com o torpedeamento de cinco navios brasileiros,
próximos à costa da Bahia: o Itagibá e o Arara,
ao Sul do Morro de São Paulo; o Baependi, o Araraquarae
o Anibal Benevolo, na foz do rio Real. Estimou-se em mais de 550
o número de mortos. A notícia divulgada pelo DIP (Departamento de Imprensa e
Propaganda) provocou profunda ira na população. Casas comerciais de alemães,
espanhóis e italianos foram depredadas. Os súditos das nações do Eixo
tornaram-se alvo fácil da fúria popular30.
Os ânimos haviam-se exacerbado. Quando a notícia
dos afundamentos chegou a Cachoeira e São Félix, houve uma violenta
manifestação anti-nazista, com a invasão e depredação do Clube Alemão local.
Em Ilhéus, a indignação foi maior, pois o Anibal Benévolo fazia
a linha Ilhéus-Salvador-Aracaju. Foram presos 35 "súditos do Eixo"
e integralistas. O comércio fechou suas portas, em sinal de protesto. "Ouviram-se
brados de guerra aos totalitários, aos quintas-colunas e aos integralistas".
Vários oradores, entre eles Demóstenes Berbert de Castro, Heitor Dias e Mário
Alves, dirigiram-se ao povo exaltado, conclamando-o à luta. Em Salvador,
muitos alemães foram recolhidos ao Quartel dos Aflitos. Nem aqueles que se
diziam pastores protestantes escaparam da polícia e das agressões de populares31.
A exaltação do povo, promovendo inclusive o
ataque a propriedades particulares, havia ultrapassado os limites do
desejável. Foi censurada. A interventoria exigiu a manutenção da ordem e
advertiu:
A exaltação de ânimos não deve chegar ao extremo
da depredação, que é o limite entre a ordem e a desordem, porque aí a
autoridade é atingida, uma vez que a ela compete assegurar a integridade da
propriedade, que não se deve desprezar.
A Secretaria de Segurança Pública recomendou
calma e serenidade à população, anunciando que não permitiria "reuniões,
manifestações ou agrupamentos nas vias públicas ou em casas particulares".
Assegurou que estava "perfeitamente aparelhada para garantir o
trabalho e o ritmo normal da vida da cidade"32.
Mas o povo já estava em movimento. Ginasianos,
acadêmicos e populares, ao som do Hino Nacional, fizeram uma passeata de
protesto, parando em frente ao monumento de Castro Alves, o Poeta da
Liberdade, onde "exigiram que fossem vingados os mortos e lavada
a honra do Brasil". Daí seguiram para a Faculdade de Medicina, onde
professores e estudantes criticaram a passividade do governo. Mais adiante,
na sacada do jornal O Imparcial, o professor Arnaldo Silveira —
orador vibrante, que já se havia destacado na Revolução de 1930 — levantou a
ira popular ao denunciar que, no Palácio da Aclamação, o interventor "brindava
com champanhe, ao lado de sua esposa de origem alemã, os afundamentos dos
navios brasileiros". Instava o povo a depor o governo. E tal não
aconteceu porque a multidão, que se deslocava célere em direção ao Palácio,
"foi detida por uma barreira de tropas da Polícia Especial, que tomou
as ruas por onde o cortejo devia prosseguir"33.
A denúncia do professor era descabida, mas teve o
efeito desejado. Tudo indica que Arnaldo Silveira trabalhava a favor do
comandante da VI Região Militar, coronel Renato Onofre Pinto Aleixo que,
estimulado por militares americanófilos, desejava assumir o posto de
interventor federal. Em carta dirigida a Vargas, através do Ministro da
Guerra, Pinto Aleixo traça um quadro de grande perturbação social e de
instabilidade política na Bahia. Destaca a agitação estudantil com a
participação dos comunistas, a prisão do professor Arnaldo Silveira e do
jornalista Wilson Lins de O Imparcial, e diz ser "francamente
observável a má vontade de grande parte da população contra o governo".
Entre as causas dessa impopularidade, acentua "a preferência quase
acintosa com que o governo distingue elementos integralistas, quase todos
simpatizantes da causa do Eixo"34.
Não se há de estranhar, em vista do exposto que,
menos de dois meses depois, o Coronel Pinto Aleixo tenha substituído Landulfo
Alves na interventoria da Bahia.
Reprimem-se
alemães, italianos e integralistas
A cólera popular levou muitos súditos de países
do Eixo a procurarem a polícia, manifestando desejo de serem recolhidos à
prisão — medida preventiva de segurança pessoal. Do Interior, chegaram vários
alemães e italianos. Na capital, a classe estudantil intensificou a caça aos
nazi-fascistas. A Comissão Central Estudantil criou o Comitê de Vigilância
que, posto em ação, realizou diligências, farejou e identificou suspeitos.
Quando do rompimento de relações diplomáticas e
comerciais do Brasil com os países do Eixo, o então interventor federal,
LandulfoAlves, estimulou os baianos a denunciar qualquer suspeito:
Cada cidadão deve se constituir num guarda,
sempre vigilante, sempre atento (...) não
lhe assiste o direito de transigir, nesse terreno, nem com o mais íntimo
amigo, de vez que ninguém pode lhe merecer maior consideração do que a pátria35.
Depois que o Brasil declarou guerra ao Eixo
(agosto de 1942), a repressão recrudesceu. Todo suspeito deveria ser
denunciado. "Não confiar", foi a palavra de ordem que
permeou a sociedade. Qualquer cidadão poderia ser denunciado, mesmo
anonimamente. A arbitrariedade de que muitos foram vítimas foi assim
justificada pelo interventor:
É natural que, na ânsia de evitar a sabotagem,
estrangeiros pacíficos sejam atingidos pelas medidas da polícia, pois a
verdade é que o quinta-coluna não traz a marca na testa. Nesta hora, o
que cumpre em primeira linha é suspeitar, seguindo-se a isto um
exame sereno e criterioso da conduta do estrangeiro preso, ou mesmo do
cidadão brasileiro que, pelas suas atitudes, justifique averiguações policiais.
Na cidade de Cairu, por exemplo, foram presos
quatro frades alemães, acusados de exercerem atividades contrárias à
segurança nacional, inclusive de "disseminarem, entre o povo daquela
região, o veneno da doutrina hitlerista"36.
A situação se tornou mais séria quando o
Ministério da Justiça deu ordens para que se redobrasse a fiscalização de
elementos suspeitos. Alemães e súditos de outras nações do Eixo, ainda que
naturalizados no Brasil ou em outro país, não mais poderiam sair do
território nacional. Para nele se locomoverem, precisavam de salvo-conduto e
eram obrigados a comunicar qualquer mudança de domícilio. Também não poderiam
ter embarcações, aviões ou aparelhos transmissores de rádio37.
O Clube Alemão e a Casa de Itália, onde
funcionavam os consulados dos respectivos países, foram fechados; da mesma
forma, o "Colégio Alemão, um dos estabelecimentos de
ensino mais conceituados de Salvador"38. Porém, os bancos e
estabelecimentos comerciais daqueles países ficaram, temporariamente, sob
"vigilância discreta". Alegava-se que, para eles, "não
se tornava necessário um policiamento mais rigoroso". Na verdade,
essa tolerância havia sido ditada por fortes interesses comerciais que,
então, uniam a Bahia à Alemanha. Mas não demorou muito para que o governo
federal também mandasse fechar o Banco Alemão Transatlântico e o Banco
Francês-Italiano que operavam em Salvador39. A xenofobia havia tomado conta
da sociedade. Associações de classe e beneficentes, inclusive o Círculo
Operário da Bahia, promoveram reuniões extraordinárias, a fim de expurgar de
seus quadros todo aquele que tivesse algum vínculo com países do Eixo40.
As diligências policiais recrudesceram. Casas
particulares e estabelecimentos considerados suspeitos foram vasculhados por
todos os cantos. Nem a Igreja escapou. Um exemplo está no Convento de São
Francisco, que teve o seu claustro invadido por policiais, orientados por
denúncias feitas à Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS). Na gaveta de
uma grande cômoda de estilo colonial, foram encontrados vários exemplares do
almanaque Mensageiro da Fé, impresso naquele convento. Era
distribuído aos fiéis e nas associações operárias, com o objetivo de
disseminar a palavra do Cristo e registrar os últimos acontecimentos. Mas os
policiais viram nele um instrumento de propaganda nazista, porque um de seus
artigos, "Guerra Moderna", estampava fotos de tanques, lanchas
torpedeiras e aviões da Alemanha, com legendas que foram consideradas "muito
elogiosas"41.
Os integralistas também não escaparam à ação
repressiva do DOPS. Entre os que haviam sido presos, estava Romulo Mercuri,
de origem italiana. A sua casa foi vasculhada, sem que nela se encontrasse
algo incriminador. Porém uma denúncia dizia que, no quintal da casa, existia
um garrafão, no qual estariam guardados importantes documentos. A área
correspondente foi escavada e, depois de muito esforço, encontrou-se um
garrafão a dois metros de profundidade, "hermeticamente fechado por
uma rolha de vidro". Dentro, estavam fichas com dados biográficos de
vários integralistas e a missão que caberia a cada um desempenhar. Havia,
porém, "muita gente boa apontada no misterioso garrafão, e a polícia
resolveu que tudo se procedesse em sigilo..."42
Os policiais varreram todo o Estado. Na cidade de
Itabuna, por exemplo, apreenderam dezenas de camisas-verdes,
livros de propaganda fascista, além de fotografias dos principais chefes do
movimento. Foi surpreendente a eficiência dessas diligências, dada a
precariedade das condições materiais da corporação policial43.
Não se têm dados precisos a respeito do número de
detidos. Mas sabe-se que, no mês de janeiro de 1943, foram ouvidos 110
indiciados, subindo o número de presos para 156, dos quais 141 eram alemães,
dez italianos, um japonês, dois austríacos, um húngaro e um alemão
naturalizado brasileiro. O número de detidos cresceu de tal modo no decorrer
da guerra, que se tornou necessário "escolher um local para o
recolhimento dos mesmos"44.
Com o objetivo de reduzir o perigo da espionagem,
e em obediência a determinação do governo federal, o DOPS ordenou que todos
os alemães e italianos existentes em Salvador e em outras cidades litorâneas
fossem transferidos para o interior do Estado. Temia-se que, através de
sinais luminosos ou outros, pudessem se comunicar com navios inimigos.
Foi-lhes dado o prazo de dez dias para a mudança. Poderiam fixar residência
nos municípios de Andaraí, Caetité, Maracás, Mucugê ou Seabra. Aqueles que,
por qualquer razão, se recusassem a viajar, ficariam concentrados na Vila
Militar da Força Policial dos Dendezeiros. De imediato, Maracás e Caetité
receberam cerca de 100 "eixistas", que passaram a trabalhar sob
regime de vigilância45. A medida, de caráter coletivo, abrangia mesmo aqueles
que haviam chegado a este país no século passado, como Vicente Masselli, de
72 anos, que havia constituído família na Bahia. Seus filhos e netos eram
brasileiros. Contudo, como os demais, teve de mudar-se para o interior do
Estado46.
Em abril de 1944, calculou-se em mais de mil o
número de pessoas remanejadas para aqueles municípios. Tal medida atingiu em
cheio o comércio e a indústria, cujas atividades eram animadas,
principalmente, por firmas italianas e alemãs. A reação desses setores da
sociedade foi muito forte, tão forte que obrigou o Secretário de Segurança
Pública a suspender a execução da medida47.
Mas a caça aos "eixistas" continuou até
o fim da guerra. Muitos foram presos pelo simples fato de haverem nascido na
Alemanha ou na Itália. Outros, por terem livros, retratos ou qualquer outro
material que pudesse ser considerado propaganda nazista.
Aproxima-se a
Guerra
A quebra do Eixo, com a saída da Itália fascista,
foi vivamente comemorada na Bahia, como em todo o mundo. Logo no início da
tarde do dia 8 de setembro de 1943, passaram a circular rumores de que a
Itália havia-se rendido e pedido a paz. Dias antes, Edgard Matta havia
encerrado grandioso comício, "em gongórico vaticínio: Flagelo de
Satanás, Besta do Apocalipse, Hitler rastejará na lama da derrota"48.
O jornal A Tarde afixou a grande notícia num placard,
em frente ao seu edifício, atraindo multidões que explodiram em gritos de
alegria. Em todos os lugares, o povo comemorou o desejado evento:
Nos restaurantes e bares da Cidade, grupos
entusiasmados mandavam abrir cerveja à vontade e muitas garrafas de champanhe
espoucaram, em meio à alegria incontida dos baianos. O tradicional e
aristocrático clube Baiano de Tenis promoveu um retumbante sarau que se
prolongou até alta noite. Muitos italianos residentes em Salvador juntaram-se
ao povo nas ruas, em demonstrações de alegria49.
Sabe-se, porém, que Monte Cassino, baluarte
alemão, só se rendeu em maio de 1944. Pracinhas brasileiros, inclusive
baianos, participaram da batalha decisiva que ali teve lugar. No mês
seguinte, tropas americanas ocuparam Roma, mas a Itália só foi liberada com a
invasão da Europa pelas tropas aliadas.
Como todos os componentes da sociedade, as
mulheres da chamada "alta sociedade baiana" mobilizaram-se em
atividades destinadas a apoiar o brasileiro em luta. Uma dessas foi a organização
da Cantina do Combatente, no Belvedere da Sé, sob a direção da
Legião Brasileira de Assistência (LBA). Seu objetivo era arrecadar fundos
para os difíceis dias da guerra. Funcionava diariamente, das 17:30 às 20:30
horas, sendo frequentada por "praças convocados, de bom comportamento",
que recebiam, mediante a apresentação de um cupom, refeições, cigarros,
fósforos, refrescos e leite. Havia também diversões, como jogo de damas,
pingue-pongue, snooker, radio, vitrola, revistas e jornais do
dia. Atendia-se, diariamente, a cerca de 200 soldados50.
Mulheres baianas também trabalharam, como
voluntárias, no Hospital da Cruz Vermelha Brasileira, onde eram recolhidos
marujos do Brasil e da Marinha Mercante Americana. Dedicavam-se às tarefas
hospitalares e, também, à arrecadação de fundos para a manutenção do
hospital. Com esse objetivo, saíam pelas ruas da Cidade, angariando donativos
e roupas51.
Através da Campanha de Ajuda à Força
Expedicionária, surgiram vários movimentos de apoio aos soldados da FEB que,
desde o dia 17 de julho de 1944, haviam desembarcado em Nápoles. A Campanha
do Agasalho, como o nome indica, pretendia conseguir meias e suéteres de lã,
para soldados brasileiros que enfrentavam o frio do "rude inverno
europeu". As mulheres engajaram-se, corpo e alma, nessa campanha.
Organizaram muitas sessões no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, para
ensinar "senhoras e senhorinhas da sociedade" a tricotar meias e
agasalhos de lã. Os clubes sociais também participaram intensamente. No Iate
Clube da Bahia, frequentado por membros da alta classe, realizou-se a Festa
da Lã para os Expedicionários. No Fantoches da Euterpe, da baixa classe
média, a Legião Feminina promoveu um "chá dançante, em homenagem à
FEB, que se prolongou até às 24 horas"52.
Com a mobilização para a guerra, nem os
adolescentes foram poupados. A fim de iniciá-los na rotina pré-militar,
organizou-se a Juventude para a Defesa da Pátria. Atendendo a determinações
do Decreto-Lei que regulava a instrução pré-militar no país, o comandante da
VI Região Militar convocou os diretores de todas as escolas com mais de 50
alunos, entre 12 e 16 anos. Depois de explicar a necessidade de preparar o
jovem para a guerra, fez, de modo ritualístico, a chamada das escolas
presentes, que era respondida por seus diretores. Estes, acompanhados de um
aluno, dirigiam-se à mesa, onde o comandante fazia-lhes entrega solene de um
fuzil Mauzer, um sabre e cinco cartuchos de manejo. Diretor e
aluno, portando armas, retornavam orgulhosos aos seus lugares. A instrução
pré-militar, que tinha por objetivo familiarizar o jovem com o armamento da
infantaria, seria ministrada por um sargento, em cada estabelecimento de
ensino53.
Os acontecimentos na Europa foram tomando conta
dos baianos que, sem perceberem, já estavam sendo convocados para a guerra.
Num abrir e fechar de olhos, sucederam-se o voluntariado, o sorteio, a
convocação. Em maio de 1944, haviam seguido para o Rio de Janeiro cerca de
600 voluntários, entre os quais os comunistas Jacob Gorender e Ariston
Andrade54. Depois, com grande solenidade, com a presença do interventor
federal e altas autoridades civis e militares, foram sorteados os baianos que
deveriam ser incorporados à FEB (Força Expedicionária Brasileira). O discurso
oficial enfatizava a honra que estava sendo conferida ao cidadão sorteado
para servir à pátria nas forças armadas e enaltecia "a fibra e o
patriotismo do caboclo nordestino, suas qualidades físicas e
morais, sua robustez e bravura"55. Em seguida, os reservistas
passaram a ser compulsoriamente convocados.
Deterioram-se as
condições de vida
Entrementes, a qualidade de vida do baiano
deteriorava-se rapidamente. Como em todo o país, as atividades econômicas do
Estado haviam sido orientadas para atender às necessidades da guerra. Em
abril de 1943, o interventor Pinto Aleixo visitou municipios próximos do rio
São Francisco, com o objetivo de melhorar as condições da região, a fim de
que os trabalhadores pudessem intensificar a produção voltada para a
Guerra56. A escassez de gêneros alimentícios levou o governo a intensificar
as importações do Sul do país, o que contribuiu para aumentar o custo de
vida, devido à velha dificuldade de transportes, agora agravada pelo péssimo
estado das estradas e pelo racionamento da gasolina. Estimou-se que, do
início da Guerra até 1944, o índice geral de preços havia subido de 100 para
230; nos Estados Unidos, no mesmo período, a variação havia sido de 100 para
130 e, no Canadá, de 100 para 120. O quilo do feijão, que no Rio de Janeiro
custava um cruzeiro e sessenta centavos, era vendido na Bahia a dois
cruzeiros e quarenta centavos57. A chegada de norte-americanos a Salvador,
com o objetivo de inspecionar bases e executar outras missões militares,
contribuiu para inflacionar mais ainda a economia, pois, com moeda forte, costumavam
pagar acima do preço solicitado58.
O racionamento da gasolina, as obrigações de
guerra e o black-out foram fatores adicionais
que tornaram a vida quotidiana do baiano insuportável. A eles nos referiremos
a seguir.
O racionamento de gasolina chegou à Bahia no dia
1o de junho de 1942. Cada veículo tinha direito a uma quota de
dez litros e, para comprá-los, era preciso um cartão de autorização. Em
princípio, formaram-se longas filas nos postos de abastecimento mas, com o
agravamento da situação, o presidente da Comissão de Distribuição de
Combustíveis Líquidos ordenou o fechamento de todas as bombas existentes no
Estado, com exceção de duas localizadas na Capital uma na Praça Castro Alves
e outra, no Comércio. Ao racionamento da gasolina seguiu-se o da carne, do
acúçar e do leite. Cada família tinha direito a uma cota semanal. Filas
alongavam-se, como tentáculos de polvo, por todas as direções, sufocando o
baiano59.
Outro pesadelo foram as obrigações de guerra,
subscrições compulsórias, baseadas no imposto de renda. Lançadas no dia 2 de
janeiro de 1943, foram divididas em cotas mensais, a serem pagas na Delegacia
do Imposto de Renda, onde também eram preparadas as obrigações cobradas nos
diversos municípios do Estado. Estimou-se em 18 mil o número de subscritores
na Bahia, e em 26 milhões de cruzeiros, a contribuição dos baianos, no
decorrer do período60.
O black-out parcial da costa
brasileira foi medida preventiva, que o governo federal estendeu a todos os
estados. Em Salvador, os bairros situados na orla atlântica, como Barra,
Amaralina e Pituba, passaram a ser fracamente iluminados. A Comissão de
Fiscalização do Escurecimento espalhou policiais pelos vários pontos da
Cidade. Deveriam alertar a população para não se deixar que nem uma fresta de
luz fosse percebida do exterior das casas. Se qualquer morador fosse suspeito
de não cooperação, a Comissão ordenava o corte de energia elétrica na sua
casa. Muitos moradores queixaram-se do excesso de zelo dos policiais, que
"partiam em direção à casa infratora como se quisessem arrombar a
porta"61.
Também a Linha Circular mandou apagar a luzes dos
bondes que trafegavam próximo à costa, inclusive as que iluminavam o letreiro
indicador da direção do veículo — fato que provocou grande confusão, pois os
passageiros não sabiam que destino estavam tomando. Depois de muitas
reclamações, decidiu-se que os bondes trafegariam com fraca luz azul.
Comentou-se, na época, que, nem na Londres bombardeada, nem na São Francisco
de após Pearl Harbor, o black-out havia chegado ao rigor
alcançado na Bahia, onde se havia "enveredado pelo exagero".
A escuridão era atenuada apenas durante alguns minutos pela luz da lua e das
estrelas. "Precisava-se ter olhos de gato para enxergar nas trevas"62.
Felizmente, após pouco mais de um mês, o black-out foi
amenizado. As luzes voltaram à cidade, tornando-a mais alegre. Não mais se
receava sair à noite. A principal avenida da capital foi iluminada, embora só
se acendesse uma lâmpada em cada poste. Os bondes passaram a trafegar
iluminados e os automóveis a circular à noite. Os cinemas voltaram a ficar
cheios, assim como os clubes e as casas de diversões.
Carnaval do Povo,
Carnaval da Vitória
Naquela circunstância, em que todos se preparavam
para a eventualidade de uma guerra, a realização ou não do tradicional
Carnaval tornou-se uma questão difícil de resolver. O problema cresceu depois
que o Brasil declarou guerra ao Eixo. Então, a pergunta — "deve ou
não deve haver Carnaval em 1943?" — pairava no ar. Para a maioria
dos baianos, que já sofriam os horrores da guerra, na escassez e no alto
custo dos generos alimentícios, a realização da grande festa popular era um
despropósito. Mas, a distância oceânica que os separava da Europa e a
tradição cultural muito pesaram na formação de opinião contrária, assim
expressa pelo jornalista baiano Joel Presídio:
Proibir o Carnaval, não me parece acertado!
Será mesmo desigual, proibir o Carnaval...
Porque não há nenhum mal
Em se viver mascarado...
Proibir o Carnaval, não me parece acertado...
Se é por causa da guerra, aqui meu protesto deixo
Quem pensa assim é que erra
Se é por causa da guerra...
Em chegando à nossa terra, Momo já quebrou o Eixo
Se é por causa da guerra, aqui meu protesto
deixo!
Daremos fim ao nazismo "cantando o samba em
Berlim"!
Ao cangaço, ao banditismo, um dia não demos fim?
Elogiou-se o inglês
Por, nos "abrigos" dançar, sempre
honrado e cortês
Elogiou-se o inglês!...
Quando chega a nossa vez, é que devemos chorar?63
Depois de muito pensar e discutir, a festa maior
do povo brasileiro sobrepôs-se ao zelo patriótico. O Prefeito de Salvador,
Elísio Lisboa, tentou contemporizar, recomendando ao povo que se divertisse
"sem esquecer a guerra". Os três dias consagrados a Momo foram
discretamente comemorados. Mas a falta de ânimo dos foliões baianos estava
menos ligada à tragédia da Guerra do que ao racionamento da gasolina, que
reduziu os préstitos nas ruas da cidade, e ao alto custo das fantasias,
confetes e lança-perfumes que costumavam animar os bailes carnavalescos. Além
do mais, proibiu-se o uso de máscaras64.
A queda de Berlim (02 de maio de 1945), principal
reduto do nazismo, foi comemorada com grande passeata cívica, promovida pelo
Fantoches e demais clubes carnavalescos, culminando com um comício na Praça
da Sé, organizado pela União dos Estudantes da Bahia (UEB), seção estadual da
recentemente criada União Nacional dos Estudantes (UNE)65.
Mas foi no dia da vitória (08 de maio de 1945)
que o povo extravasou toda a tensão contida nos anos da Guerra, expandindo
alegria nas ruas da Capital. O comércio fechou suas portas, as repartições
públicas não funcionaram, a fim de que todos pudessem festejar o fim do
grande conflito. Nos prédios principais, a bandeira nacional foi hasteada ao
lado da das Nações Unidas. Assim, o jornal A Tarde registrou
o Carnaval da Vitória:
A rua Chile apresentava aspecto de um dos mais
animados dias carnavalescos. O trânsito de bondes teve de ser interrompido à
noite, tamanha a multidão que ali se comprimia, dançando e cantando,
brincando a valer ao som de músicas populares66.
As classes média e alta festejaram nos clubes
sociais a vitória das forças democráticas. Nas praças públicas, falaram
representantes das organizações patrióticas, estudantis e trabalhistas.
Quando a rendição do Japão (02 de setembro de 1945) selou o fim da guerra, os
cônsules da Inglaterra e dos Estados Unidos promoveram grandiosa festa no
Clube Inglês, à qual compareceram a "nata da sociedade" e as mais
altas autoridades do Estado. Sirenes, sinos, buzinas de automóveis
anunciavam, em alegre sinfonia, que a Guerra havia terminado67.
Indiretamente, através do verbo falado e escrito,
das obrigações de guerra, de doações espontâneas, de campanhas como a dos
metais e a da borracha, da confecção de meias e agasalhos de lã, o baiano
participou da guerra. Diretamente, lutando nos campos de batalha, contribuíu
para a vitória dos Aliados. Mobilizando a população, através de desfiles e
comícios plenos de fervor patriótico, deu expansão à liberdade reprimida,
abrindo caminho para o ansiado processo de democratização, que coroou o fim
da Segunda Guerra Mundial, pondo fim a oito anos de cruenta ditadura.
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