terça-feira, 5 de novembro de 2013

A “DIALÉTICA DA TRAIÇÃO”, NO IMAGINÁRIO SOCIAL E POLÍTICO BRASILEIRO

Aluizio Alves Filho*

1. Introdução

Em 7 de abril de 2006, 175 anos após a abdicação de D. Pedro I, os principais jornais brasileiros – e quiçá os de todo o ocidente – publicaram, na primeira página, uma notícia tão
inusitada quando surpreendente. Notícia que, atentando para o fato de que há evidentes especificidades na linguagem de cada um deles, pode ser sintetizada quanto ao sentido que expressam, da seguinte maneira: “Judas não é Judas”.
Em um dos mais lidos matutinos cariocas a surpreendente notícia começava assim:

“O conteúdo de um manuscrito de 1700 anos encontrado em 1978 numa caverna do deserto no Egito foi revelado ontem dando um novo papel para Judas Iscariotes: ele não teria traído Jesus Cristo. Ao contrário, como seu discípulo mais fiel, teria seguido as instruções de Jesus que levaria a sua prisão e morte. ‘Você ira sacrificar o corpo do homem que eu encarno’, teria dito Jesus a Judas, de acordo com o texto intitulado ‘O Evangelho de Judas’.” (O Globo, 07/04/2006, p. 1).

         No corpo da bem redigida matéria há um conjunto de informações complementares que ajudam bastante a pensar e posicionar o impacto da notícia: o manuscrito – “autenticado como um trabalho genuíno da antiga literatura apócrifa” (Passos. O Globo, 07/04/2006, p. 46) - tem 26 páginas, foi escrito em copta, em folha de papiro e passou por vários testes científicos que atestaram a sua veracidade, como a análise de carbono 14, a prova contextual, a paleográfica, etc. O autor da matéria, com base em comentário de um especialista em idioma egípcio arcaico que teve acesso ao manuscrito, comenta: “Este texto não só desafia seriamente uma das crenças mais firmemente arraigadas na tradição cristã, mas também reduz a nada um dos temas favoritos do anti-semitismo” (idem).
          A querela que a divulgação da existência de tal manuscrito coloca  tende a dar panos para mangas, talvez produzindo mais paixão do que luz, a exemplo de outras querelas religiosas como a sobre a veracidade do Sudário de Turim e idem sobre os manuscritos do Mar Morto. De imediato, a questão de se Judas Iscariotes é um traidor ou não rendeu vários comentários e artigos na mídia. A respeito, um renomado colunista do já citado jornal O Globo,  cinco dias após o estampar da primeira notícia, manifestando apreensão,  considera:

“A descoberta do tal evangelho de Judas, um manuscrito de 1700 anos atrás mostrando que ele não traiu, que não foi o pior dos discípulos de Jesus, mas justamente o eleito para ajudá-lo a se libertar de seu corpo terrestre, soou para mim como se entre os autos da Devassa da Inconfidência Mineira alguém encontrasse um documento dizendo que Joaquim Silvério dos Reis não havia traído o seu xará Joaquim José da Silva Xavier, mas sim que, ao contrário, entregara o pescoço do amigo à forca a pedido do próprio Tiradentes”. (Ventura. O Globo, 12/04/2006).

         A traição de Judas, pela força simbólica e circunstâncias, é paradigmática do que faz da traição o procedimento mais execrável entre todos os procedimentos execráveis, segundo valoração da  cultura cristã ocidental. Judas traiu o que há de mais sagrado pelo que há de mais profano: entregou Cristo por 30 dinheiros. A coerção exercida  por sua própria consciência por ter praticado ato tão vil  levou-o a autodestruição, ao suicídio. Pode-se considerar que no exposto estão as linhas delineadoras que possibilitam falar de um tipo ideal do que socialmente se configura como “traição”. Essa ocorre quando um ou mais membros de um grupo social (primário ou secundário), cujo vínculo de solidariedade que os une é algo representado como sagrado, rompe com tal sacralidade, voltando às costas ao grupo em troca de algo profano, como algum benefício material ou prazer momentâneo. Existem traições de vários tipos e por diferentes razões. Entre as instituições ou sentimentos considerados sagrados, que costumam ser objeto de entrega (heroísmo) e traição, estão: a religião, a família, a pátria, os amigos, o amor e as causas nobres que só podem ser conquistadas com luta, dedicação e sacrifício de pessoas que estão unidas em torno dela.
          Nas linhas que se seguem, tendo por referencial analítico a noção de tipo ideal proposta e valendo-me de casos clássicos ou bem conhecidos, examino como a traição aparece configurada, sobretudo: em letras da MPB envolvendo questões relativas a família, ao casal e o amor;  em Calabar e Tiradentes – personagens marcantes da história colonial, o primeiro no sentido negativo e o segundo no sentindo amplamente positivo; em conhecido livro panfletário,  datado de medos do século XX e que tem o político udenista Carlos Lacerda como centro de ataques; (4) em recentes pronunciamentos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tendo por pano de fundo a crise de credibilidade que se abateu sobre a vida pública brasileira desde que, há cerca de um ano, o então deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) denunciou a existência do que chamou e ficou conhecido como “mensalão”. 

2. A traição na música popular brasileira.

         O propósito desta parte é o de brevemente analisar como aparece configurada a idéia da “traição” em três clássicos da MPB, a saber: O Ébrio (Vicente Celestino), Vingança (Lupicinio Rodrigues) e Vou Festejar (Jorge Aragão). 

2.1 Vicente Celestino: “O  Ébrio”, 1936.

         Em 1935, já desfrutando de imensa popularidade, o tenor e trovador Vicente Celestino disse a Gilda de Abreu, sua esposa: “Vou escrever uma coisa que está martelando minha cabeça faz algum tempo”(Machado, 1971). Quando o marido escreveu e ela ouviu pela primeira vez o que martelava a cabeça dele, assustou-se: “se você cantar isso vão dizer que você deu para beber” (idem). A previsão não se concretizou e “O Ébrio”, letra e música do esposo de Gilda de Abreu, tornou-se não apenas um grande sucesso que atravessa o tempo, mais um clássico da música que, sobre a designação de “dor de cotovelo”,  toma a traição como tema. Gravada pela primeira vez pelo próprio autor, os primeiros versos da canção são popularmente os mais relembrados: “Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer / Aquela ingrata que me amava e que me abandonou / apedrejado pelas ruas vivo a sofrer / Não tenho lar e nem parentes tudo terminou”.
         Os reproduzidos versos iniciais deixam bem claro a espinha dorsal da temática que a letra de “O Ébrio” narra, uma história trivial onde ocorre uma dupla traição, ou seja: traição à sacralidade do sentimento “amor” (“aquela ingrata me amava e me abandonou”) e a da família (“não tenho lar e nem parentes tudo terminou”). A razão do procedimento fica implícita: o triângulo amoroso, o velho jogo entre Arlequim, Pierrô e Colombina que acaba estourando no lado mais fraco, já que a carne é fraca. No caso, a resposta do traído é a auto degradação manifesta por haver caído no vício da bebida, talvez como forma de afogar as mágoas pela fuga na embriagues ou como mecanismo de vingança, para mostrar à “traidora” os malefícios a que sua conduta infame o levou, visando criar-lhe sentimento de culpa. É neste sentido que versos à frente, contrapondo a vida feliz de antes da traição à ruína pós-traição, dizem: “Já fui feliz e recebido com nobreza até / nadava em ouro e tinha alcova de cetim / E em cada passo um grande amigo que depunha fé / E nos parentes ... confiava sim / E hoje ao ver-me na miséria tudo vejo então / O falso lar que tanto amava e que a chorar deixei”.

2.2.           Lupicinio Rodrigues. “Vingança”, 1951.

         Outro clássico da MPB que tem por tema “traição, vingança e culpa” é o samba-canção Vingança, de autoria de Lupicínio Rodrigues.  Samba-canção que encontrou em Linda Batista sua primeira grande intérprete, tendo gravado a composição em 29 de maio de 1951. Inversamente a “O Ébrio”, de Vicente Celestino, na “Vingança”, de Lupicínio Rodrigues, não é o traído que se torna um pau-d’água em função da traição, e sim a traidora, provavelmente atormentada pelo sentimento de culpa que o ato de trair lhe causou. A respeito, alguns versos da composição esclarecem: “o remorso / talvez seja a causa do seu desespero / você deve estar bem consciente do que praticou / me fazer passar esta vergonha com um companheiro...”. Os versos iniciais da composição indicam um aparente regozijo do traído pela culpa que a traidora está sentindo: “Eu gostei tanto / tanto quando me contaram / que te encontraram / chorando e bebendo / na mesa de um bar / e que quando os amigos do peito por mim perguntaram / um soluço cortou sua voz / não lhe deixou falar”.
         Interessante observar que nos dois casos o sentimento de culpa que se segue à traição do sagrado (amor e família) por razão meramente material (prazer sexual) conduz à vingança com base da degradação pela bebida, mas por caminhos de mão dupla: no primeiro caso (O Ébrio) o traído tornando-se “pinguço” não apenas esconde suas mágoas embriagando-se, mas também, ao fazer isto, procura (implicitamente, como destacamos) inculcar o sentimento de culpa na “traidora”; no segundo, o traído sente prazer em saber que a traidora se autoflagela “chorando e bebendo na beira de um bar”.  Na letra do paradigmático samba-canção de Lupicínio Rodrigues o sentimento (algo magoado) que o traído sente ao saber da degradante situação de sua ex-companheira é de vingança: “mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada / só vingança, vingança aos santos clamar”. A letra da música termina com uma espécie de rogação de praga: “você há de rolar como as pedras que rolam na estrada / sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar”.
         Nesta parte da análise vale ainda destacar que numa rápida consulta a diversas coleções de discos e CDs do tipo “Os Melhores Compositores  da MPB”, pude constatar que no que tange a temática “denuncia de traição” provocando sofrimento e destruindo o sentimento de amor que une o casal ou a família,  a regra é a mulher aparecer como agente culpada e pecaminosa, não o homem. Neste sentido são inúmeras as letras de músicas que tratam do assunto e incidem no considerado ponto de vista. O prevaricar masculino não costuma ser tratado, na MPB, como “traição”, na forma aqui considerada, isto porque numa sociedade machista  tal tipo de procedimento é entendido como um pequeno desvio, como malandragem, produto da “alma boêmia”, mero pecadilho que pode ser resolvido com beijinhos e pelo jeitinho brasileiro. É, por exemplo, com o sentido de  “pequeno pecadilho” masculino que a questão é tratada na letra de “Boemia”, de autoria de Adelino Moreira, e um dos maiores clássicos da MPB, entre os clássicos que  foram imortalizados  pelo vozeirão de Nelson Gonçalves.
         Nos primeiros versos da conhecida letra de “Boemia”, o “boêmio” anuncia o prazer que sente por ter voltado para a madrugada, ficando implícito que a deixara por algum tempo em função de ter se “casado”. A continuidade dos versos explicitam que a felicidade do “boêmio” é total, pois a “companheira” entendeu, desculpou e aprovou seu másculo “pecadilho”: “acontece que a mulher que floriu meu caminho / de ternura meiguice e carinho, sendo a vida do meu coração / compreendeu e abraçou-me dizendo a sorrir / meu amor você pode partir, não esqueça o seu violão”. Nesta parte a letra da composição indica que a mulher atenciosa como é,  mostrando imensa compreensão, ainda o  lembrou  que ele não esquecesse de levar “o seu violão”. É claro que o “boêmio” não o esqueceria, pois o violão funciona – metaforicamente no interior da composição -  como um instrumento fundamental de aproximação do “rouxinol” de outras mulheres. Nos últimos versos, a abnegada mulher do boêmio diz (abraçada a ele): “Vá embora, pois me resta o consolo e alegria / de saber que depois da boemia / é de mim que você gosta mais”.    

2.3. Jorge Aragão. “Vou Festejar”.

         A terceira música destacada incidindo sobre a temática “traição” é o samba “Vou Festejar”, letra do compositor Jorge Aragão e grande  sucesso da cantora Beth Carvalho. Escolhemos este samba, entre muitas outras opções possíveis, por se tratar de música bem conhecida e contemporânea e por ter a particularidade de ter se consagrado na voz de uma mulher. Isto não chega a contrariar  a regra para a qual chamamos a atenção anteriormente ao analisarmos “boemia”, ou seja, que a traição do homem é algo de “desculpável” numa sociedade machista. O fato e ser do sexo masculino o autor da letra e do sexo feminino a cantora que consagrou a composição deixa evidente que tanto pode denotar “traição” masculina ou feminina, e ser cantada por homem ou por mulher.
 Quanto a estrutura e ao significado sociológico da letra, “Vou Festejar” guarda forte similitude com “O Ébrio” e "Vingança, significado que encontra decodificação à luz do tipo ideal inicialmente construído: o pecado de traição ao amor (sagrado) é seguido pelo castigo (pela sentimento de culpa) e pelo desprezo (por parte de quem foi traído). Assim sendo, a letra do samba começa pela alusão a alguém que, arrependido por ter traído, chora, enquanto o traído anuncia o desprezo, a indiferença e a vingança: “Chora não vou ligar / chegou a hora / Vai me pagar”. Versos à frente dizem: “você pagou com traição / a quem sempre te deu a mão / Vou festejar, vou festejar / o teu sofrer o teu penar”. A letra da música termina pela repetição do refrão, como quem - meio ressentido - despreza, denuncia e se vinga do “traidor” ou “traidora” martelando: “você pagou com traição / a quem sempre te deu a mão”.
         Os exemplos de letras de MPB que giram em torno de amor, casal e traição, construídas com referencial na explicitada forma de pensar poderiam ser multiplicados muitas vezes, o que é desnecessário fazer. Acredito também que um exame da crônica policial referente a crimes passionais publicados em jornais e semanários evidenciaria a existência de casos reais estruturados à luz da mesma matriz tipológica especificada.
Em um trabalho de maior fôlego os traços constitutivos do tipo ideal que estamos utilizando também poderiam confirmar a excelência de tal tipo como instrumento de compreensão. Sem que seja meu propósito fazer uma análise acurada nesta direção, apenas cito  entre os textos nacionais consagrados pela crítica que abordam o tema “amor/traição” o conto A Morte da Porta-Estandarte, de Aníbal Machado e um dos mais célebres romances entre os quantos já foram escritos: Dom Casmurro, de Machado de Assis.

3. Pátria e traição: os casos Calabar e Tiradentes

         O que se pode dizer que há de mais comum entre Domingos Fernandes Calabar e Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes)? O que há de comum e o que diferencia estes dois personagens históricos
 que, partícipes de dramas reais, possibilitaram que em torno de suas biografias fossem engendradas  representações que povoam o imaginário social brasileiro? O primeiro citado, Calabar, tem seu nome ligado a invasão holandesa, em Pernambuco, nos século XVII. E, o segundo, Tiradentes a Inconfidência Mineira, no século XVIII. Os dois viveram no período colonial de nossa história.  Além desta generalidade o que a biografia de Calabar e a de Tiradentes tem de mais comum é o fato de que ambos foram acusados de “traição”, condenados a morte e esquartejados. Tiradentes por haver conspirado contra a coroa portuguesa e Calabar por ter desertado das forças ligadas a colonização ibérica e passado para o lado dos invasores holandeses. Tiradentes foi preso, julgado e condenado à forca em praça pública, Calabar caiu nas garras de seus antigos aliados e foi sumariamente passado nas armas, sem maiores formalidades. Acontecimentos ulteriores possibilitaram com que Tiradentes fosse concebido como herói máximo da República brasileira e Mártir da independência; quanto a Calabar, ronda-o o estigma de “traidor”, embora exista tensão a respeito.     

3.1. Calabar

         Como pode alguém trair uma pátria que não era a sua? Pois Domingos Fernandes Calabar, que viveu no século XVII,  passou para a posteridade sob o estigma de “traidor”, embora  não se sabe bem de que. Os acontecimentos que mancharam o seu nome estão presentes em livros didáticos de História do Brasil. A “traição” de Calabar teria ocorrido em 1632, durante o que ficou conhecido como “Invasão Holandesa”.
         De uma maneira muito alinhavada, os acontecimentos que importam por em evidência  para o bom entendimento do “caso Calabar” são apresentados a seguir.
Com a União Ibérica (1580 -1640) Portugal ficou sob o domínio da coroa espanhola durante o largo período de 60 anos. Em decorrência, os comerciantes holandeses que, parceiros dos portugueses mas não dos espanhóis, haviam financiado a construção de engenhos no nordeste e eram mestres na arte do refino do açúcar, ficaram marginalizados do lucrativo empreendimento. A resposta viria em diversas incursões holandesas visando conquistar espaços na região açucareira, agora sob domínio da Espanha.  Depois de algumas tentativas logo abortadas, em 1630 cerca de 3.000 soldados holandeses, a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, desembarcaram de umas três dúzias de navios, sitiando, atacando e ocupando Recife, levando Mathias de Albuquerque, governante da província,  a bater em retirada e estabelecer o núcleo central da resistência aos invasores no Arraial do Bom Jesus, na periferia do local invadido. Nos primeiros anos as escaramuças provocavam baixas dos dois lados, mas uma esmagadora vitória de um lado sobre o outro parecia estar longe de ocorrer. No contexto existente, a deserção e mudanças de lados era algo de corriqueiro. A barafunda reinante, o medo, as emboscadas e a concessão de vantagens imediatas faziam com que soldados, índios, livres e escravos, servissem ora a um ora a outro senhor.
Em 1632, Domingos Fernandes Calabar virou casaca. Ele, que fora ferido lutando nas tropas de Mathias de Albuquerque, evadiu-se para o lado holandês. Alguns estudiosos referem-se  a Calabar como major, outros como soldado. Consensualmente dizem tratar-se de homem de boas posses e destacam sua qualidade de guia. Nesse caso, um dos crimes de Calabar parece ter sido a competência. Acredita-se que a sua passada para o lado holandês foi vital para o avanço dos batavos que, em 1637, após muitas vitórias, reinavam na região, estendendo seus domínios por grande parte dos atuais estados nordestinos de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas.
         A posição que Calabar ocupava na hierarquia das armas  é confusa, uns o alinham  entre os comandantes, outros entre os meros soldados rasos. Quase tudo que se tem escrito sobre a identidade de Calabar é bem confuso. Mas há algo dito sobre ele que tem uma certa constância: as seguidas referências  a Calabar como “mulato”. Suspeito que a construção da identidade racial de Calabar, não como mestiço, mameluco ou coisa do gênero, mas sobretudo como “mulato”, tem relação com determinados aspectos do "inconsciente coletivo nacional" tipicamente racista, que associa mulato e fragilidade de caráter - mas aqui não é o espaço para desenvolver essa instigante questão.
         Em 1634, quando as forças leais a Mathias de Albuquerque batiam em retirada, defrontaram-se em Porto Calvo, em Alagoas, com um pequeno batalhão holandês comandado por um certo Picard, conseguindo vencê-lo.

“Calabar militava no pequeno batalhão  de Picard que, refugiado em Porto Calvo, pediu para capitular. Renderam-se 380 homens que tiveram livre passagem, exceto um que Albuquerque não consentiu, o Calabar, que disse ele ‘devia ficar à mercê del-rei’. Imediatamente foi enforcado e esquartejado, por prêmio de deserção”. (Ribeiro; 1964, p. 152).

         Bem, após a execução de Calabar muito peixe continuou passando por baixo da ponte. Os holandeses tiveram o seu período áureo de domínio entre 1637 e 1644, quando a Companhia das Índias Ocidentais mandou para governar as terras conquistadas o Príncipe Maurício de Nassau (um autêntico “mauricinho”), que muito modernizou a região, tendo inclusive remodelado Recife. O movimento conhecido por Insurreição Pernambucana (1645 – 1644), comandado por senhores de engenho, tem sido tomado como marcante na formação de um sentimento de brasilidade e independência. A Insurreição Pernambucana é diretamente responsável pelo fim do domínio holandês e expulsão da Companhia das Índias Ocidentais do nordeste brasileiro. Os holandeses foram fragorosamente derrotados, pelos insurretos,  nas duas batalhas de Guararapes (1648-1649). Empalidecidos por estas derrotas e por seguintes acabaram definitivamente deixando as terras que ainda permaneceram ocupando  após 1649, com a capitulação do Campo da Taborda, em 1654. Mais tarde, em 1661, o Tratado de Paz de Haia, ratificou a soberania portuguesa na região.
         As batalhas de Guararapes foram erigidas pela historiografia oficial como marco fundamental do irromper do sentimento nativista brasileiro. Considera que lutando contra os invasores holandeses e vencendo-os, a Insurreição Pernambucana constituída pela união, bravura e coragem  dos homens da terra – brancos, índios e negros – evitou que a unidade territorial da então colônia fosse cindida entre Portugal e Holanda, dividindo-se em duas partes. Desta forma, os invasores da Companhia das Índias Ocidentais teriam sido detidos em sua expansão pelas terras brasileiras pelo  sentimento nacional que tipifica a Insurreição Pernambucana e foi claramente   expresso no “espírito de Guararapes” que libertou a região, não derivando tal libertação de socorro providencial enviado de além mar pela metrópole.
         Como construção simbólica da identidade nacional a Insurreição Pernambucana fornece basilares elementos norteadores. Entre os que foram sacralizados como heróis da Insurreição Pernambucana  estão André Vidal de Negreiros (branco), Felipe Camarão  (índio) e Henrique Dias (negro). Esses três heróis formam a tríade básica sobre a qual repousa o que um antropólogo definiu como “a fábula das três raças formadoras” (DaMatta, 1987). E onde entra Calabar nisso? Ora Calabar é o inverso. Calabar é apresentado na historiografia tradicional como um mestiço, um mulato, que passou para o lado dos calvinistas da Companhia das Índias Ocidentais ajudando-os (em muito pela sua competência como guia) a fundar domínio, durante bom tempo, no nordeste do Brasil. Calabar virou a casaca, traiu...
          Mas a traição de Calabar é bastante cercada por uma angustiosa dúvida. Calabar era brasileiro, é o Brasil no século XVII era uma simples colônia portuguesa, melhor espanhola, em função da União Ibérica. Que vínculo de solidariedade poderia compromissar um “mazombo” com uma pátria ibérica? Como poderia trair uma pátria que não era a dele?  Talvez Calabar tivesse apostado na colonização holandesa por considerá-la melhor que a ibérica.
          Muitas luas e luas depois, na segunda metade do século XX, em 1973, num contexto inteiramente diferente daquele que engendrara as ditas invasões holandesas no período colonial, mas não menos estarrecedor, Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra escreveram Calabar, o elogio da traição  - uma peça de teatro. É bem sabido que, em 1973, o Brasil encontrava-se sob o domínio de uma ditadura e numa fase, conhecida nos dias presentes, como “anos de chumbo”.
          Após meses de ensaio a peça Calabar, o elogio da traição teve a sua encenação proibida pela censura, causando grandes prejuízos.

“Os censores promoviam um exame minucioso na peça, detendo-se nos mínimos detalhes. Uma das censoras chegou a ressaltar o caráter polêmico do espetáculo por este propor uma releitura do personagem histórico Calabar. Para ela, ‘de acordo com a visão dos militares, a história oficial que consagrava Calabar como um traidor não deveria ser discutida, pois poderia propiciar uma reflexão crítica no público, além de despertar o debate dos temas que sugeririam um paralelo com o momento presente (...) Em outro parecer observamos que o mesmo tema, ou seja, a traição de Calabar, inquietava os censores que argumentavam que tal discussão despertaria uma reflexão no público sobre qual seria o melhor governo no país’.” (Freitas e Ramos).      
       
3.2. O segredo da “Exaltação a Tiradentes"

          Na historiografia oficial Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes) e  Domingues Fernandes Calabar ocupam posições diametralmente opostas. Vejamos, acusados de traição, ambos pagaram com a vida; entretanto, na posteridade, Calabar manteve a pecha infamante de “traidor”, enquanto Tiradentes foi elevado à qualidade de mártir da Independência, herói da República e da  nacionalidade brasileira. Os dois deram as costas aos colonizadores ibéricos. Calabar por obtenção de vantagem pessoal ou por julgar que a colonização holandesa era superior a lusitana e, portanto, melhor para os colonizados – qual a razão real de Calabar, provavelmente nunca se saberá com certeza. Quanto a Tiradentes, foi por sonhar alto que rompeu com a obediência devida ao governo lusitano. Participou muito ativamente de um movimento inconfidente que tinha por propósito fundar a pátria, desvencilhando a terra brasileira dos grilhões coloniais. Denunciado, preso, humilhado, torturado, condenado a morte, enforcado e esquartejado, Tiradentes não perdeu a razão. Resistiu a tudo em nome da pátria que haveria de vir: “Libertas quae sera tamen.
          O alferes de cavalaria Joaquim José da Silva Xavier não é um traidor, longe disso, é um herói. Simbolicamente, o alferes deu a vida por amor a pátria que o porvir acabaria trazendo. Mas há uma peculiaridade nesse heroísmo que aqui tenho por propósito colocar em evidência: peculiaridade que faz de Tiradentes mais do que um simples herói construído  pela historiografia oficial, e sim um herói  respaldado por valor típico da cultura brasileira. Para esclarecer o meu ponto de vista a respeito, reflito sobre as razões que fizeram de um samba-enredo dedicado a Tiradentes o primeiro a extrapolar o dia do desfile e obter grande sucesso popular. Refiro-me a Exaltação a Tiradentes, apresentado no Rio de janeiro no carnaval, em 1949, pela Escola de samba Império Serrano. Samba-enredo composto por Mano Décio da Viola, Penteado e Estanislau Silva.
          Qual o segredo de “Exaltação a Tiradentes” que, em meio de tantos outros sambas-enredo que eram simplesmente esquecidos após o desfile, encontrou condições de permanência, tendo sido diversas vezes gravado e é sempre lembrado como o primeiro clássico do gênero?
          Importante observar que, em 1949, a imprensa pouco se interessava por escolas de samba. Jornais e revistas de grande circulação, preocupados com os bailes em clubes de elite, com os concursos de fantasia do Teatro Municipal, com o carnaval de rua, como os desfiles dos ranchos e das grandes sociedades, pouco noticiavam sobre as Escolas de Samba. O rádio, principal veículo de comunicação da época, caitituava, nos meses que precediam a folia, sambas e marchinhas de consumo carnavalesco. Quanto aos sambas-enredo, eram mal divulgados e não era costumeiro gravá-los. As próprias Escolas que ainda estavam longe de se transformarem em indústrias culturais, procuravam mantê-los em segredo até a hora do desfile.
          O samba-enredo “Exaltação a Tiradentes”, dividido em duas partes, possui apenas 13 versos: “(I) Joaquim José da Silva Xavier / Morreu a 21 de abril / Pela independência do Brasil / Foi traído / E não traiu jamais / A inconfidência de Minas Gerais / (II) Joaquim José da Silva Xavier / Era o nome de Tiradentes / Foi sacrificado / Pela nossa liberdade / Esse grande herói / Para sempre há de ser / Lembrado”.
          Na letra em questão há uma parcimônia de informações. Os 13 versos de “Exaltação a Tiradentes”, esclarecem: o nome completo do homenageado (Joaquim José da Silva Xavier), o apelido (Tiradentes), a data incompleta da morte (21 de abril) e faz menção a algumas generalidades, tais como: inconfidência, independência e liberdade. As informações esgotam-se no universo de dados contidos em manuais de ensino primário ou nos das primeiras séries do ensino secundário. É o próprio Mano Décio da Viola quem explica:

“Peguei um livro do primeiro ano ginasial de minha filha e foi nascendo o samba Tiradentes. Faltava a segunda parte. Aí me lembrei do Penteado. Ele tinha um samba com a primeira parte fraca, mas a segunda muito boa [...] Penteado foi chegando todo ressabiado e quando encostou cantamos a primeira parte do samba que eu tinha feito. Ele escutou, nós repetimos. Quando ele foi tomando gosto, eu joguei a pedra em cima dele: ‘se você jogar aquela segunda, vê se casa com a primeira’. Ele tremeu, cantei, mandei cantar outras vezes e, de repente perguntei: ‘Pode ficar esta segunda, não pode?’. Quando ele autorizou, eu falei: ‘Está pronto o samba’.” (Citado por Cabral, 1974, p. 79).

         Mais do que “casar” com as informações da primeira parte, as da segunda limitavam-se a confirmá-las. Mesclando as duas partes, a letra do samba-enredo pode ser lida numa ordem mais direta, da seguinte forma: Joaquim José da Silva Xavier / Era o nome de Tiradentes / Morreu a 21 de abril / pela independência do Brasil / Foi sacrificado / Pela nossa liberdade / Foi traído / E não traiu jamais / A inconfidência de Minas Gerais / (assim sendo) Esse grande herói / Para sempre há de ser / Lembrado.
          Entre as prováveis razões do sucesso de “Exaltação a Tiradentes” é possível mencionar: tratar-se de samba harmônico e bem cadenciado, ter letra curta e linear, ser fácil de guardar – uma vez que contém informações encontráveis até mesmo em manuais de ensino básico. Portanto, informações que – grosso modo - “todo mundo” já sabia. Acrescente-se às informações citadas uma que me parece ser determinante da razão do sucesso de “Exaltação a Tiradentes” e que, qualitativamente, diferencia este samba-enredo de outros sambas-enredo que, alicerçados em literatura didática, haviam sido compostos e passados despercebidos.
          Joaquim José da Silva Xavier – alferes de cavalaria, mascate e tira-dentes – é personalidade histórica de forte identificação popular, inclusive porque sua imagem foi construída na pintura de Pedro Américo (1843 – 1905), e na de outros artistas, como uma espécie de “Cristo barroco”. Tiradentes é um dos raros personagens históricos classificados como herói pela literatura didática que é também identificável por anseios e valores populares. Não se trata de um homem rico que os livros contam, fez isso e aquilo para o bem do país. Trata-se de um militar subalterno que foi condenado à morte por envolver-se numa conspiração que almejava a independência do Brasil. Tiradentes foi preso, enforcado  e esquartejado, nada de concreto podendo fazer. Por que então, afirma que “esse grande herói , para sempre há de ser lembrado?”. Dois versos anteriores da mesma letra respondem à indagação: “Foi traído / e não traiu jamais”. Quer dizer, Tiradentes foi alcaguetado e não alcaguetou jamais. O Alferes é um verdadeiro herói na acepção popular. O homenageado deve para ser sempre ser lembrado (por todos), por ser um exemplo. Alguém, identificado com o princípio popular, o código de honra que diz: “ninguém, por motivo nenhum, nem sob tortura ou ameaça de morte, deve entregar o outro”. Foi assim que procedeu Tiradentes, mesmo traído, não entregou ninguém, não alcaguetou, mantendo-se fiel ao decantado sentimento de liberdade do homem brasileiro. Pagou com a vida.
          No samba de breque, “Na Subida do Morro”, composto por Moreira da Silva e Silva Ribeiro Cunha, há menção ao referido código de honra. Na letra da composição, seus autores citam o conhecido adágio popular que diz: “Malandro que é malandro não entrega o outro, espera para tirar a forra”. E convenhamos, levando em conta que a Independência do Brasil ocorreu cerca de três décadas após a “Inconfidência Mineira”, Tiradentes, que não entregou ninguém, “soube esperar” e tirar um grande forra histórica.
          A genialidade dos autores de “Exaltação a Tiradentes” está no fato de que, reproduzindo, deixam a desnudo a pobreza das informações contidas em livros didáticos, colocando em evidência o único fator que possibilita pensar o “mártir da independência” como um verdadeiro herói popular, símbolo do homem brasileiro: Tiradentes era um cabra macho, um bamba, e não um desprezível dedo-duro, um traidor. Acreditamos que é esta faceta que diferencia “Exaltação a Tiradentes” de outros sambas-enredo anteriores , daí o sucesso e a permanência.             
              
4. A traição na Política (2ª República)

4.1. O Carreirista da traição

          No início dos anos 60 o jornalista Epitácio Caó publicou “Carreirista da Traição”, livro  que tem Carlos Lacerda como protagonista. Trata-se de uma retaliação e, salvo erro, o primeiro livro brasileiro sobre política que traz a palavra “traição” no título.
Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1914 – 1977), jornalista, político, editor, escritor e tradutor, líder carismático (amado e odiado), mestre na arte da polêmica, demolidor de presidentes, tido como “o maior tribuno que passou pela Câmara dos Deputados”, tornou-se também bastante conhecido por constantes mudanças de opinião em reação a partidos políticos, doutrinas e personalidades públicas.
 Em “Carreirista da Traição”, Epitácio Caó apresenta uma seleção de textos extraídos de matérias escritas e publicados por Lacerda na “Tribuna da Imprensa”, entre 1950 e 1959, colocando em evidência o caráter intrinsecamente contraditório de tais escritos. Nas passagens selecionadas por Caó, Lacerda, que foi comunista na juventude e ferrenho anticomunista enquanto político profissional, com pequena diferença no tempo, elogia e critica as mesmas instituições, doutrinas e atores políticos, fazendo as duas coisas com linguajar igualmente agressivo e apaixonado, típico de quem escreve um panfleto do qual depende a salvação de alguma causa sagrada. Assim sendo, o nacionalismo um dia é definido por Lacerda como “um sentimento, uma exigência de respeito próprio” (14/9/1957) e, no outro, como “um mero instrumento ideológico e um pretexto político para dar cobertura à expansão do comunismo em todas as fileiras, em todos os campos, em todos os setores” (1/7/58). Epitácio Caó vai alinhando pontos de vista emitidos por Lacerda na Tribuna da Imprensa; pontos de vista que primam pela contradição interna: o endeusado de hoje pode ser o satanizado de amanhã e vice-versa. Entre os deuses/diabos de Lacerda estão Juarez Távora, Assis Chateaubriand, Afonso Arinos, o marechal Lott e muitos outros. Entre as instituições, ora atacadas ora defendidas, estão o jornal  O Globo e a  União Democrática Nacional (UDN), partido pelo qual Lacerda obteve os seus mandatos, se elegendo vereador (1947) e deputado federal (1954) e  governador do antigo Estado da Guanabara  (1960).
Epitácio Caó fez a seleção em 1959, período próximo a escolha de Jânio Quadros, pela UDN,  como candidato a presidência da República na eleição de 1960, escolha que acabaria se confirmando, tendo Jânio sido sufragado presidente na referida eleição.   São as posições contraditórias de Lacerda em relação a Jânio Quadros que ocupam o maior número de páginas do “Carreirista da Traição”. A exemplo de outros, Jânio é apresentado ora como símbolo ora do bem, ora do mal. Num dos primeiros textos que Caó destaca, Lacerda refere-se a Jânio Quadros, na ocasião governador de São Paulo, eleito sobre a sigla do Partido Democrático Cristão (PDC), como alguém “capaz de dar a vida pelo que promete” (22/4/1953). Cerca de dois anos Lacerda escreve: “Tenho todos os motivos para não confiar no Sr. Jânio Quadros”(4/4/1955).  Ainda em 1955 Caó destaca textos de Lacerda onde Quadros é apresentado como “paranoico” (6/4/1955), “charlatão” (11/4/1955) e “traidor contumaz” (4/7/1955). A reviravolta não demora, e antes que a década terminasse Lacerda escreve nas páginas do mesmo jornal: “entendo que a UDN deve apoiar a candidatura de Jânio Quadros” (17/2/1959); ou ainda: “sustento a candidatura de Jânio Quadros como soldado dessa candidatura” (25/3/1959). Em outra passagem selecionada por Caó, considera: “O sr. Jânio Quadros é o homem capaz de criar um regime no qual haja confiança na autoridade” (10/3/1959). E para concluir, um dia Lacerda escreveu sobre Jânio: “O sr. Jânio Quadros é a versão brasileira de Adolph Hitler” (20/5/1955), e, em outro: “Se a UDN quer defender o destino da democracia deve apoiar imediatamente a candidatura de Jânio Quadros” (13/4/1959).
 Em 1977, Carlos Lacerda deu uma longa entrevista ao Jornal da Tarde (SP). Indagado sobre o livro de Caó, comentou:
   
‘Nunca li o livro todo. As coisas que li são verdadeiras. Agora, se quisesse não lhe dar uma resposta direta, eu repetiria Ruy Barbosa: ‘só os burros não cometem incoerência. Só os burros não mudam de opinião’. Mas prefiro justificar com palavras minhas. O que acontece é o seguinte: os acontecimentos mudam, a coisas mudam de aspecto. E só realmente uma pessoa obstinada ou vaidosa é que não reconhece quando as coisas mudam. O que peço a Deus e que me conserve exatamente essa capacidade de parecer incoerente, quer dizer, de elogiar o sujeito quando o sujeito me parece que está fazendo coisa certa e, amanhã, espinafrá-lo quando me parece que ele está fazendo a coisa errada. Agora, se você juntar as duas coisas, você é que parece incoerente. O incoerente é ele! Nesse livro (o livro de Epitácio Caó) há muitas coisas desse gênero. Jânio Quadros, por exemplo: o Jânio apareceu como um sujeito disposto à vassoura, disposto a fazer um grande governo. Depois mostrou o contrário. Quem é o incoerente? Eu que o elogiei quando ele parecia bom e o ataquei quando ele ficou ruim? Ou foi ele, que parecia bom e ficou ruim? Incoerente seria eu se continuasse a elogiá-lo.(Citado por Cunha Júnior: O Estado de São Paulo, 20/05/2001).

Para os propósitos do presente estudo não vem ao caso analisar algumas incongruências existentes na entrevista-depoimento de Lacerda, como por exemplo o fato de ele provavelmente haver ”esquecido” que o livro de Caó foi publicado cerca de anos antes do seu desentendimento com Jânio Quadros, quando o político paulista ocupava a presidência da República (entre janeiro e agosto de 1961), e lhe ter feito novas críticas. As críticas a Jânio  que Caó seleciona e publica, como constatamos, estão compreendidas entre 1953 e 1959. Além disso, as criticas feitas – transcritas no livro de Caó – dizem respeito a caráter e não a meros desentendimentos derivados do fato de em momentos determinados, Jânio e Lacerda terem seguido caminhos cruzados.
 Concretamente, do livro “Carreirista da Traição” que tem mais de duzentas páginas, Caó escreveu, contando como o ordenamento do “índice dos capítulos”, apenas 11 páginas. Escreveu “Flagrante do Brasil”, como uma espécie de “introdução”. Nesta, refere-se ao Maracanã não apenas como o maior Estádio de Futebol do mundo, mas também como o “maior mictório do mundo”. Em seguida a irônica observação, acrescenta: “Quem quiser ver, vá lá e leve lenço para por no nariz” (Caó: s/d1, p. 9). O Maracanã era, na época, além de palco de partidas de futebol, o local onde o egrégio Superior Tribunal Eleitoral escolhera para a apuração das eleições realizadas no então Distrito Federal. Numa dessas apurações, Caó descreve uma situação de balbúrdia infernal, num local fétido, impróprio para a atividade, com parca segurança e por onde se espalhavam 60 Juntas apuradoras.

“Em algumas Juntas arranjaram uma tábua cheia de pregos onde eram espetados os votos; noutras, havia caixinhas de charutos, cada qual correspondente a um partido político, para coleta das preciosas cédulas; em quase todas as Juntas apuradoras viam-se pratos com sanduíches, copos com garrafas de refrigerantes, saquinhos de biscoitos, tudo de mistura com envelopes, sobrecartas, cédulas-únicas, urnas e milhares de cédulas”. (Caó: s/d1, p. 13).    

Em nenhum momento de seu livro Caó explicita porque classifica Carlos Lacerda como “carreirista da traição”. Limita-se apenas a destacar sérias incongruências  presentes no que o “tribuno” da Tribuna da Imprensa escreve sobre as mesmas instituições ou atores sociais, com pequeno intervalo de tempo. Lacerda não é ao menos o centro que ordena as palavras críticas de Caó na “introdução” Flagrante do Brasil; mas tais palavras  recaem sobre ele. Lacerda só surge nos dois últimos parágrafos da introdução. Surge no penúltimo parágrafo como primeiro patrono da candidatura de Jânio, precedido de sarcástico comentário de que “nem tudo está perdido, porém, pois o ‘Jânio vem ai’... como diz a propaganda dos muros” (Caó: s/d1,p. 19) . E no último, não com menor sarcasmo, onde Caó considera que está no fato de ter composto o livro com seleção de textos de Lacerda “a razão por que seu nome figura também na autoria desta obra, que é muito mais sua, e por isso com ele estamos dispostos a dividir, igualmente, os direitos autorais respectivos”. (Caó: s/d1, p. 19)
 Numa livre interpretação do título do livro de Epitácio Caó pode se dizer que o autor insinua que o mandato popular deveria ser algo de sagrado, com o sentido do  conhecido  ditado que diz “a voz do povo é a voz de Deus”. No caso de Lacerda, ele é insinuado como um “carreirista”, como alguém que não respeita a sacralidade do mandato popular e ascende no campo político pela constante prática da traição, ou seja: a prática de elogiar e atacar os mesmos atores políticos, dependendo de seu interesse imediato. Tal proceder o permitia abraçar a mobilidade no campo político e não uma bandeira de luta. Mas afinal de contas, foi o próprio Lacerda quem disse : “Não gosto de política (...) Gosto é do poder”. (citado por Cunha Junior: 20/05/2001).
        
4.2. “Eu me senti traído” : presidente Luis Inácio Lula da Silva, em 12/08/2005

         Em pronunciamento a nação, numa reunião ministerial realizada em 12/08/2005 e transmitida ao vivo pelas redes de TV para todo o país, o presidente Lula abordou o tema “traição”, quanto em linguagem coloquial, como quem estivesse sussurrando a velhos “companheiros”, disse para milhares de olhos e ouvidos: “Quero dizer a vocês com toda a franqueza, eu me sinto traído”.
 O referido pronunciamento do presidente pode ser entendido como constituído por duas partes. Na primeira, o presidente dá um rápido balanço no seu governo, avaliando que “apesar de todas as dificuldades ”ocorre a retomada do “progresso e da justiça social”. A razão da otimista avaliação é ilustrada pela menção a três circunstâncias: (1) volta do crescimento econômico com inflação baixa (“voltamos a crescer, mas desta vez de maneira sustentável com inflação baixa”), (2) recorde nas exportações (“melhor resultado da nossa história”) e (3) a criação de novos empregos (“Em 30 meses já criamos 3 milhões, 135 mil empregos com carteira assinada”). O que a fala presidencial não fez foi relacionar a inflação baixa com a estratosférica e abusiva taxa de juros que provoca uma fantástica concentração de  renda pelo mecanismo perverso de transferência de renda de assalariados para os já e sempre abarrotados cofres dos banqueiros e demais agiotas oficializados. A fala oficial também não informa que o aumento das exportações é feito em detrimento da priorização do mercado interno e que o crescimento do número de empregos é muito aquém ao prometido durante a campanha eleitoral e da necessidade real do aumento de ofertas de oportunidade de trabalho, sendo incapaz de evitar a proliferação do desemprego pela absorção de parcela substantiva de brasileiros na pindaíba.
 Na segunda parte, o presidente Lula enfrenta o real problema que motivara o  pronunciamento: dar uma satisfação aos brasileiros sobre qual era a posição do governo  em relação a grave crise política em curso, em função do espantoso e arrepiante  chorrilho de denúncias de corrupção. Chorrilho de denúncias que, enlameando a vida pública nacional, eram trombeteadas pela indignação da imprensa, não só pelo Brasil, mas por todos os costados do mundo. Situação apopléctica que de tão insustentável acabou forçando a formação de diversas CPIs. Denúncias que, embora envolvendo políticos de vários partidos, apontavam os do PT como centro, tanto petistas portadores de mandatos políticos, como membros do primeiro, segundo e terceiros escalão governamental, assim como a própria cúpula dirigente do partido no poder.
 Foi ao enfrentar o citado problema, na segunda parte do pronunciamento, que o presidente Lula “confidenciou”, “com toda a franqueza”, aos milhares de ouvidos eleitorais:  “eu me sinto traído”. O presidente Lula não disse: “eu fui traído” – de forma imperativa. Ora, “Sentir-se traído”,  sem dúvida, é uma possibilidade de traição, uma suspeita, uma questão de foro íntimo, de natureza subjetiva.
 Entre outras afirmações sobre “traição” que constam do pronunciamento do presidente, destacamos: (1) observar sentir-se traído “por práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento”, (2) estar “indignado pelas revelações que aparecem a cada dia e que chocam o país”.
 Pouco antes de encerrar o pronunciamento, o presidente Lula, mesclando governo e partido, pondera:

“Queria, neste final, dizer ao povo brasileiro que eu não tenho nenhuma vergonha de dizer ao povo brasileiro que nós temos que pedir desculpas. O PT tem que pedir desculpas. O governo, onde errou, tem que pedir desculpas, porque o povo brasileiro, que tem esperança, que acredita no Brasil e que sonha com um Brasil com economia forte, com crescimento econômico e distribuição de renda, não pode, em momento alguma, estar satisfeito com a situação que o nosso país está vivendo”. 
O presidente Lula voltaria a falar publicamente sobre “traição” apenas mais uma vez. Foi em entrevista concedida ao jornalista Pedro Bial e exibida em 1 de janeiro de 2006, no programa Fantástico, da Rede Globo. Quando o jornalista lhe perguntou: “O senhor já se disse traído e depois se solidarizou com aqueles que foram acusados de corrupção. O senhor foi traído, ou é solidário? Por exemplo, o José Dirceu o traiu?”; o presidente respondeu:    

“Veja, eu me considero traído por duas coisas. Porque eu dediquei parte de minha vida para construir esse partido. Eu, com minha mulher, com as crianças. As crianças dormiam na calçada  para ajudar a construir esse partido, e não era uma vez, eram muitas vezes. Dormiam na calçada vendendo camiseta, fazendo filiação. Eu me sinto traído porque alguns companheiros meus fizeram práticas que não condiziam com aquela que era a história do PT. No caso do José Dirceu, diferente do Delúbio que assumia a responsabilidade, o Zé Dirceu ainda não definiu o seu processo, ele foi cassado, vai ter o relatório da CPI, vamos aguardar o que vai acontecer. Mas eu não quero nem julgar se fui traído por A ou por B. É que eu acho que o conjunto dos acontecimentos, pra mim, soou como se fosse uma facada nas costas de alguém que junto com outros milhões de brasileiros dedicou parte de sua vida pra construir um instrumento político que pudesse ser diferente de tudo que estava ai”. 
Como pode ser constatado na citação acima, o presidente Lula dá duas razões para se “considerar traído” ou “se sentir traído” (“eu me considero traído” e “eu me sinto traído”).  A primeira razão que apresenta, está associada à idéia de sacrifico: “eu dediquei parte de minha vida para construir esse partido”. Sacrifício que o presidente enfatiza ter sido compartilhado por familiares, observado que seus filhos vendiam camisetas e faziam filiações enquanto dormiam na calçada. A segunda razão que apresenta se relaciona com ética. O presidente Lula sente-se traído “porque alguns companheiros meus fizeram práticas que não condiziam com aquela que era a história do PT”.
 Segundo as duas razões apresentadas a traição teria sido feita ao PT – partido pelo qual o presidente Lula argumenta ter dedicado parte da vida e que considera ter sido vítima (por parte dos que “traíram”) de procedimentos eticamente em desacordo com a trajetória da organização. Portanto, nos dois casos, a sacralidade que teria sido objeto de traição está no PT. Mas como nas situações anteriormente estudadas, envolvendo religião, família, pátria etc. – instituições concretamente sacralizadas nos valores da nossa cultura, teria o PT algo de sagrado? Defenderia uma causa sagrada? Qual causa? Penso que nenhuma. Se não, vejamos. Seria o PT um “instrumento político que pudesse ser diferente de tudo que estava ai” – como observa o presidente Lula ao explicitar uma das razões de ter dedicado parte de sua vida, “junto com outros milhões de brasileiros”,  a construção de tal partido? Não, no exercício do poder o PT demonstrou não ter qualquer diferença qualitativa em relação aos partidários da política de concentração de renda, juros altos,  política de arrocho salarial etc. Primaria a trajetória do PT pela coerência e pela ética? Ora, basta recordar que em 14/12/2003 o PT expulsou e seus quadros a senadora Heloísa Helena e os deputados federais Luciana Genro e Babá por manifestarem,  publicamente, sérias discordâncias com a política econômica e social posta em curso pelo bloco petista encastelado no poder, cobrando-lhe respeito aética partidária e, portanto,  coerência com bandeiras defraudadas no passado.
 No trecho reproduzido da entrevista no Fantástico, o presidente Lula explicou, parecendo querer por fim a questão: "não quero julgar se fui traído por A ou por B”. Em suma, trata-se de uma “traição” não se sabe bem a o quê e muito menos quem são os traidores. Posteriormente, em reunião do PT largamente noticiada pela imprensa, a cúpula do PT decidiu que apurações internas dos acusados pela bandalheira só depois das próximas eleições presidenciais...
          Uma última questão que julgamos importante destacar na entrevista do presidente Lula, de 2 de janeiro do ano em curso, é o fato do presidente haver considerado: “Se três, quatro, meia dúzia, dez, quinze ou vinte pessoas de uma organização política cometem erros não significa que o partido todo está cometendo o mesmo erro”. Desta forma o presidente, procurando minimizar a crise que se abatia (e se abate)  sobre a vida pública brasileira e especialmente sobre o PT, tentava tapar o sol com a peneira, observa que os que “cometeram erros” eram em número insignificante, em relação ao número total de filiados e militantes do PT.  Ocorre que os poucos petistas citados na pergunta de Bial, que motivou a resposta do presidente “minimizando a crise”, eram José Genuíno (presidente do PT), José Dirceu (chefe da Casa Civil da Presidência da República) e Sílvio Pereira (secretário geral do PT) - os três já em desgraça. Quer dizer, “o pequeno número” de petistas que na avaliação presidencial “tinham cometido erros” (e que “erros”) eram membros da cúpula do PT. E além dos nomes citados por Bial os outros que estavam na berlinda também eram altos quadros partidários, membros do bloco no poder. Os abnegados, combativos e admiráveis militantes do PT, que iam para a rua defender e divulgar o partido em cujo projeto acreditavam, sem ganhar centavo, muitas vezes xingados pelos segmentos mais truculentos da imprensa, ofendidos com racismos impunes e estereótipos do tipo “barbudinhos da CUT”, não sujaram as mãos com nenhuma moeda do Judas. Não foram eles que cometeram os tais “erros” a que se refere o presidente da República,  quem sujou as mãos foram membros da cúpula.  Muitos dos abnegados militantes da massa petista, que faziam vibrar as ruas de capitais e de numerosas outras cidades com suas manifestações coletivas e pacíficas por justiça social,  decepcionados com o medo surrando a esperança, deixaram as fileiras do PT e passaram a receber o presidente, ao som de uma música já aqui analisada. Se Juscelino Kubitschek, onde chegava ouvia o povo cantado “como pode o peixe vivo /  viver fora da água fria /  não poderei viver / sem a sua, sem a sua / companhia”, e o último, Getulio Vargas, o que chegou ao Catete nos braços do povo, era recebido ao som do “bota o retrato do velho outra vez / bota no mesmo lugar”, o ex-lider sindical e atual presidente da República , que se tornou tão conhecido e respeitado pela coragem e audácia no combate à ditadura, começa a escutar o coro que vem de antigos adeptos: “você pagou com traição / há quem sempre te deu a mão”.

5. Breve conclusão

         Tomando a traição de Judas como paradigmática da noção de trair na cultura ocidental, elaborando um tipo ideal com os rasgos mais providos de significados sociológicos presentes na referida traição e  à luz da metodologia da chamada sociologia compreensiva de corte weberiano,  examinei várias formas de traição presentes no imaginário brasileiro, mormente na MPB, na historiografia e na vida pública. Todas estas questões que tem grandes e complexos desdobramentos e práticos e teóricos foram tratados com rigor mas nos limites de um artigo. 



Nenhum comentário:

Postar um comentário