Aluizio Alves Filho*
1. Introdução
Em 7 de abril de 2006, 175 anos após a abdicação de D.
Pedro I, os principais jornais brasileiros – e quiçá os de todo o ocidente –
publicaram, na primeira página, uma notícia tão
inusitada quando surpreendente. Notícia que, atentando para o fato de que há evidentes especificidades na linguagem de cada um deles, pode ser sintetizada quanto ao sentido que expressam, da seguinte maneira: “Judas não é Judas”.
inusitada quando surpreendente. Notícia que, atentando para o fato de que há evidentes especificidades na linguagem de cada um deles, pode ser sintetizada quanto ao sentido que expressam, da seguinte maneira: “Judas não é Judas”.
Em um dos mais lidos matutinos cariocas a
surpreendente notícia começava assim:
“O conteúdo de um manuscrito de 1700 anos encontrado
em 1978 numa caverna do deserto no Egito foi revelado ontem dando um novo papel
para Judas Iscariotes: ele não teria traído Jesus Cristo. Ao contrário, como
seu discípulo mais fiel, teria seguido as instruções de Jesus que levaria a sua
prisão e morte. ‘Você ira sacrificar o corpo do homem que eu encarno’, teria
dito Jesus a Judas, de acordo com o texto intitulado ‘O Evangelho de Judas’.” (O Globo, 07/04/2006, p. 1).
No corpo da bem redigida matéria há um conjunto de informações
complementares que ajudam bastante a pensar e posicionar o impacto da notícia:
o manuscrito – “autenticado
como um trabalho genuíno da antiga literatura apócrifa” (Passos. O Globo, 07/04/2006, p. 46) -
tem 26 páginas, foi escrito em copta, em folha de papiro e passou por vários
testes científicos que atestaram a sua veracidade, como a análise de carbono
14, a prova contextual, a paleográfica, etc. O autor da matéria, com base em
comentário de um especialista em idioma egípcio arcaico que teve acesso ao
manuscrito, comenta: “Este
texto não só desafia seriamente uma das crenças mais firmemente arraigadas na
tradição cristã, mas também reduz a nada um dos temas favoritos do
anti-semitismo” (idem).
A querela que a divulgação da
existência de tal manuscrito coloca tende a dar panos
para mangas, talvez produzindo mais paixão do que luz, a exemplo de outras
querelas religiosas como a sobre a veracidade do Sudário de Turim e idem sobre
os manuscritos do Mar Morto. De imediato, a questão de se Judas Iscariotes é um
traidor ou não rendeu vários comentários e artigos na mídia. A respeito, um
renomado colunista do já citado jornal O
Globo, cinco
dias após o estampar da primeira notícia, manifestando apreensão,
considera:
“A descoberta do tal evangelho de Judas, um manuscrito
de 1700 anos atrás mostrando que ele não traiu, que não foi o pior dos
discípulos de Jesus, mas justamente o eleito para ajudá-lo a se libertar de seu
corpo terrestre, soou para mim como se entre os autos da Devassa da
Inconfidência Mineira alguém encontrasse um documento dizendo que Joaquim
Silvério dos Reis não havia traído o seu xará Joaquim José da Silva Xavier, mas
sim que, ao contrário, entregara o pescoço do amigo à forca a pedido do próprio
Tiradentes”. (Ventura. O
Globo, 12/04/2006).
A traição de Judas, pela força
simbólica e circunstâncias, é paradigmática do que faz da traição o
procedimento mais execrável entre todos os procedimentos execráveis, segundo
valoração da cultura cristã ocidental. Judas traiu o que há de mais sagrado
pelo que há de mais profano: entregou Cristo por 30 dinheiros. A coerção
exercida por sua própria consciência por ter praticado ato tão vil
levou-o a autodestruição, ao suicídio. Pode-se considerar que no exposto
estão as linhas delineadoras que possibilitam falar de um tipo ideal do que socialmente
se configura como “traição”. Essa ocorre quando um ou mais membros de um grupo
social (primário ou secundário), cujo vínculo de solidariedade que os une é
algo representado como sagrado, rompe com tal sacralidade, voltando às costas
ao grupo em troca de algo profano, como algum benefício material ou prazer
momentâneo. Existem traições de vários tipos e por diferentes razões. Entre as
instituições ou sentimentos considerados sagrados, que costumam ser objeto de
entrega (heroísmo) e traição, estão: a religião, a família, a pátria, os
amigos, o amor e as causas
nobres que só podem ser
conquistadas com luta, dedicação e sacrifício de pessoas que estão unidas em
torno dela.
Nas linhas que se seguem, tendo por
referencial analítico a noção de tipo
ideal proposta e valendo-me
de casos clássicos ou bem conhecidos, examino como a traição aparece
configurada, sobretudo: em letras da MPB envolvendo questões relativas a família, ao casal e o amor; em
Calabar e Tiradentes – personagens marcantes da história colonial, o primeiro
no sentido negativo e o segundo no sentindo amplamente positivo; em conhecido
livro panfletário, datado de medos do século XX e que tem o político
udenista Carlos Lacerda como centro de ataques; (4) em recentes pronunciamentos
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tendo por pano de fundo a crise de
credibilidade que se abateu sobre a vida pública brasileira desde que, há cerca
de um ano, o então deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) denunciou a existência
do que chamou e ficou conhecido como “mensalão”.
2. A traição na música popular brasileira.
O propósito desta parte é o de
brevemente analisar como aparece configurada a idéia da “traição” em três
clássicos da MPB, a saber: O Ébrio (Vicente Celestino), Vingança (Lupicinio Rodrigues)
e Vou Festejar (Jorge Aragão).
2.1 Vicente Celestino: “O Ébrio”, 1936.
Em 1935, já desfrutando de imensa popularidade, o tenor e trovador Vicente Celestino disse a Gilda de Abreu, sua esposa: “Vou escrever uma coisa que está martelando minha cabeça faz algum tempo”(Machado, 1971). Quando o marido escreveu e ela ouviu pela primeira vez o que martelava a cabeça dele, assustou-se: “se você cantar isso vão dizer que você deu para beber” (idem). A previsão não se concretizou e “O Ébrio”, letra e música do esposo de Gilda de Abreu, tornou-se não apenas um grande sucesso que atravessa o tempo, mais um clássico da música que, sobre a designação de “dor de cotovelo”, toma a traição como tema. Gravada pela primeira vez pelo próprio autor, os primeiros versos da canção são popularmente os mais relembrados: “Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer / Aquela ingrata que me amava e que me abandonou / apedrejado pelas ruas vivo a sofrer / Não tenho lar e nem parentes tudo terminou”.
Os reproduzidos versos iniciais deixam bem claro a espinha dorsal
da temática que a letra de “O
Ébrio” narra, uma história
trivial onde ocorre uma dupla traição, ou seja: traição à sacralidade do sentimento “amor” (“aquela
ingrata me amava e me abandonou”) e a da família (“não tenho lar e nem
parentes tudo terminou”). A razão do procedimento fica implícita: o
triângulo amoroso, o velho jogo entre Arlequim, Pierrô e Colombina que acaba
estourando no lado mais fraco, já que a carne é fraca. No caso, a resposta do
traído é a auto
degradação manifesta por
haver caído no vício da bebida, talvez como forma de afogar as mágoas pela fuga
na embriagues ou como mecanismo de vingança, para mostrar à “traidora” os
malefícios a que sua conduta infame o levou, visando criar-lhe sentimento de
culpa. É neste sentido que versos à frente, contrapondo a vida feliz de antes
da traição à ruína pós-traição, dizem: “Já
fui feliz e recebido com nobreza até / nadava em ouro e tinha alcova de cetim /
E em cada passo um grande amigo que depunha fé / E nos parentes ... confiava sim / E hoje ao ver-me na
miséria tudo vejo então / O falso lar que tanto amava e que a chorar deixei”.
2.2. Lupicinio Rodrigues. “Vingança”, 1951.
Outro clássico da MPB que tem por tema “traição, vingança e culpa” é o samba-canção Vingança, de autoria de Lupicínio Rodrigues. Samba-canção que encontrou em Linda Batista sua primeira grande intérprete, tendo gravado a composição em 29 de maio de 1951. Inversamente a “O Ébrio”, de Vicente Celestino, na “Vingança”, de Lupicínio Rodrigues, não é o traído que se torna um pau-d’água em função da traição, e sim a traidora, provavelmente atormentada pelo sentimento de culpa que o ato de trair lhe causou. A respeito, alguns versos da composição esclarecem: “o remorso / talvez seja a causa do seu desespero / você deve estar bem consciente do que praticou / me fazer passar esta vergonha com um companheiro...”. Os versos iniciais da composição indicam um aparente regozijo do traído pela culpa que a traidora está sentindo: “Eu gostei tanto / tanto quando me contaram / que te encontraram / chorando e bebendo / na mesa de um bar / e que quando os amigos do peito por mim perguntaram / um soluço cortou sua voz / não lhe deixou falar”.
Interessante observar que nos dois casos o sentimento de culpa que
se segue à traição do sagrado (amor e família) por razão meramente material
(prazer sexual) conduz à vingança com base da degradação pela bebida, mas por
caminhos de mão dupla: no primeiro caso (O Ébrio) o traído tornando-se
“pinguço” não apenas esconde suas mágoas embriagando-se, mas também, ao fazer
isto, procura (implicitamente, como destacamos) inculcar o sentimento de culpa
na “traidora”; no segundo, o traído sente prazer em saber que a traidora se autoflagela “chorando e bebendo na beira de um
bar”. Na letra do
paradigmático samba-canção de Lupicínio Rodrigues o sentimento (algo magoado)
que o traído sente ao saber da degradante situação de sua ex-companheira é de
vingança: “mas enquanto houver
força em meu peito eu não quero mais nada / só vingança, vingança aos santos
clamar”. A letra da música
termina com uma espécie de rogação de
praga: “você há de rolar como
as pedras que rolam na estrada / sem ter nunca um cantinho de seu pra poder
descansar”.
Nesta parte da análise vale ainda
destacar que numa rápida consulta a diversas coleções de discos e CDs do tipo
“Os Melhores Compositores da MPB”, pude constatar que no que tange a
temática “denuncia de traição” provocando sofrimento e destruindo o sentimento de amor que une o casal ou a
família, a regra é a mulher aparecer como agente culpada e pecaminosa,
não o homem. Neste sentido são inúmeras as letras de músicas que tratam do
assunto e incidem no considerado ponto de vista. O prevaricar masculino não
costuma ser tratado, na MPB, como “traição”, na forma aqui considerada, isto
porque numa sociedade machista tal tipo de procedimento é entendido como
um pequeno desvio, como malandragem, produto da “alma boêmia”, mero pecadilho
que pode ser resolvido com beijinhos e pelo jeitinho brasileiro. É, por
exemplo, com o sentido de “pequeno pecadilho” masculino que a questão é
tratada na letra de “Boemia”,
de autoria de Adelino Moreira, e um
dos maiores clássicos da MPB, entre os clássicos que foram
imortalizados pelo vozeirão de Nelson Gonçalves.
Nos primeiros versos da conhecida
letra de “Boemia”, o
“boêmio” anuncia o prazer que sente por ter voltado para a madrugada, ficando
implícito que a deixara por algum tempo em função de ter se “casado”. A continuidade dos versos explicitam que a felicidade do “boêmio” é total,
pois a “companheira” entendeu, desculpou e aprovou seu másculo “pecadilho”: “acontece que a mulher que floriu
meu caminho / de ternura meiguice e carinho, sendo a vida do meu coração /
compreendeu e abraçou-me dizendo a sorrir / meu amor você pode partir, não
esqueça o seu violão”. Nesta
parte a letra da composição indica que a mulher atenciosa como é,
mostrando imensa compreensão, ainda o lembrou que ele não
esquecesse de levar “o seu
violão”. É claro que o “boêmio” não o esqueceria, pois o violão funciona –
metaforicamente no interior da composição - como um instrumento
fundamental de aproximação do “rouxinol” de outras mulheres. Nos últimos
versos, a abnegada mulher do boêmio diz (abraçada a ele): “Vá embora, pois me resta o consolo e alegria / de saber que
depois da boemia / é de mim que você gosta mais”.
2.3. Jorge Aragão. “Vou Festejar”.
A terceira música destacada incidindo sobre a temática “traição” é o samba “Vou Festejar”, letra do compositor Jorge Aragão e grande sucesso da cantora Beth Carvalho. Escolhemos este samba, entre muitas outras opções possíveis, por se tratar de música bem conhecida e contemporânea e por ter a particularidade de ter se consagrado na voz de uma mulher. Isto não chega a contrariar a regra para a qual chamamos a atenção anteriormente ao analisarmos “boemia”, ou seja, que a traição do homem é algo de “desculpável” numa sociedade machista. O fato e ser do sexo masculino o autor da letra e do sexo feminino a cantora que consagrou a composição deixa evidente que tanto pode denotar “traição” masculina ou feminina, e ser cantada por homem ou por mulher.
Quanto a estrutura e
ao significado sociológico da letra, “Vou
Festejar” guarda forte
similitude com “O Ébrio” e "Vingança”,
significado que encontra decodificação à luz do tipo ideal inicialmente construído: o pecado
de traição ao amor (sagrado) é seguido pelo castigo (pela sentimento de culpa)
e pelo desprezo (por parte de quem foi traído). Assim sendo, a letra do samba
começa pela alusão a alguém que, arrependido por ter traído, chora, enquanto o
traído anuncia o desprezo, a indiferença e a vingança: “Chora não vou ligar / chegou a hora
/ Vai me pagar”. Versos à
frente dizem: “você pagou com traição / a quem
sempre te deu a mão / Vou festejar, vou festejar / o teu sofrer o teu penar”. A letra da música termina pela
repetição do refrão, como quem - meio ressentido - despreza, denuncia e se
vinga do “traidor” ou “traidora” martelando: “você
pagou com traição / a quem sempre te deu a mão”.
Os exemplos de letras de MPB que giram
em torno de amor, casal e traição, construídas com referencial na explicitada
forma de pensar poderiam ser multiplicados muitas vezes, o que é desnecessário
fazer. Acredito também que um exame da crônica policial referente a crimes
passionais publicados em jornais e semanários evidenciaria a existência de
casos reais estruturados à luz da mesma matriz tipológica especificada.
Em um trabalho de maior
fôlego os traços constitutivos do tipo
ideal que estamos utilizando
também poderiam confirmar a excelência de tal tipo como instrumento de compreensão. Sem
que seja meu propósito fazer uma análise acurada nesta direção, apenas
cito entre os textos nacionais consagrados pela crítica que abordam o
tema “amor/traição” o conto A
Morte da Porta-Estandarte, de Aníbal Machado e um dos mais célebres
romances entre os quantos já foram escritos: Dom
Casmurro, de Machado de Assis.
3. Pátria e traição: os casos Calabar e Tiradentes
O que se pode dizer que há de mais comum entre Domingos Fernandes Calabar e Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes)? O que há de comum e o que diferencia estes dois personagens históricos que, partícipes de dramas reais, possibilitaram que em torno de suas biografias fossem engendradas representações que povoam o imaginário social brasileiro? O primeiro citado, Calabar, tem seu nome ligado a invasão holandesa, em Pernambuco, nos século XVII. E, o segundo, Tiradentes a Inconfidência Mineira, no século XVIII. Os dois viveram no período colonial de nossa história. Além desta generalidade o que a biografia de Calabar e a de Tiradentes tem de mais comum é o fato de que ambos foram acusados de “traição”, condenados a morte e esquartejados. Tiradentes por haver conspirado contra a coroa portuguesa e Calabar por ter desertado das forças ligadas a colonização ibérica e passado para o lado dos invasores holandeses. Tiradentes foi preso, julgado e condenado à forca em praça pública, Calabar caiu nas garras de seus antigos aliados e foi sumariamente passado nas armas, sem maiores formalidades. Acontecimentos ulteriores possibilitaram com que Tiradentes fosse concebido como herói máximo da República brasileira e Mártir da independência; quanto a Calabar, ronda-o o estigma de “traidor”, embora exista tensão a respeito.
3.1. Calabar
Como pode alguém trair uma pátria que não era a sua? Pois Domingos Fernandes Calabar, que viveu no século XVII, passou para a posteridade sob o estigma de “traidor”, embora não se sabe bem de que. Os acontecimentos que mancharam o seu nome estão presentes em livros didáticos de História do Brasil. A “traição” de Calabar teria ocorrido em 1632, durante o que ficou conhecido como “Invasão Holandesa”.
De uma maneira muito alinhavada, os
acontecimentos que importam por em evidência para o bom entendimento do
“caso Calabar” são apresentados a seguir.
Com a União Ibérica (1580
-1640) Portugal ficou sob o domínio da coroa espanhola durante o largo período
de 60 anos. Em decorrência, os comerciantes holandeses que, parceiros dos
portugueses mas não dos espanhóis, haviam financiado a construção de engenhos
no nordeste e eram mestres na arte do refino do açúcar, ficaram marginalizados
do lucrativo empreendimento. A resposta viria em diversas incursões holandesas
visando conquistar espaços na região açucareira, agora sob domínio da Espanha.
Depois de algumas tentativas logo abortadas, em 1630 cerca de 3.000 soldados
holandeses, a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, desembarcaram de umas
três dúzias de navios, sitiando, atacando e ocupando Recife, levando Mathias de
Albuquerque, governante da província, a bater em retirada e estabelecer o
núcleo central da resistência aos invasores no Arraial do Bom Jesus, na
periferia do local invadido. Nos primeiros anos as escaramuças provocavam
baixas dos dois lados, mas uma esmagadora vitória de um lado sobre o outro
parecia estar longe de ocorrer. No contexto existente, a deserção e mudanças de
lados era algo de corriqueiro. A barafunda reinante, o medo, as emboscadas e a
concessão de vantagens imediatas faziam com que soldados, índios, livres e
escravos, servissem ora a um ora a outro senhor.
Em 1632, Domingos Fernandes Calabar virou casaca. Ele,
que fora ferido lutando nas tropas de Mathias de Albuquerque, evadiu-se para o
lado holandês. Alguns estudiosos referem-se a Calabar como major, outros
como soldado. Consensualmente dizem tratar-se de homem de boas posses e destacam
sua qualidade de guia. Nesse caso, um dos crimes de Calabar parece ter sido a
competência. Acredita-se que a sua passada para o lado holandês foi vital para
o avanço dos batavos que, em 1637, após muitas vitórias, reinavam na região,
estendendo seus domínios por grande parte dos atuais estados nordestinos de
Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas.
A posição que Calabar ocupava na
hierarquia das armas é confusa, uns o
alinham entre os comandantes, outros entre os meros soldados rasos. Quase
tudo que se tem escrito sobre a identidade de Calabar é bem confuso. Mas há
algo dito sobre ele que tem uma certa constância: as seguidas referências
a Calabar como “mulato”. Suspeito que a construção da identidade racial
de Calabar, não como mestiço, mameluco ou coisa do gênero, mas sobretudo como
“mulato”, tem relação com determinados aspectos do "inconsciente coletivo
nacional" tipicamente racista, que associa mulato e fragilidade de caráter - mas aqui
não é o espaço para desenvolver essa instigante questão.
Em 1634, quando as forças leais a
Mathias de Albuquerque batiam em retirada, defrontaram-se em Porto Calvo, em
Alagoas, com um pequeno batalhão holandês comandado por um certo Picard,
conseguindo vencê-lo.
“Calabar militava no pequeno batalhão de Picard
que, refugiado em Porto Calvo, pediu para capitular. Renderam-se 380 homens que
tiveram livre passagem, exceto um que Albuquerque não consentiu, o Calabar, que
disse ele ‘devia ficar à mercê del-rei’. Imediatamente foi enforcado e esquartejado, por
prêmio de deserção”. (Ribeiro; 1964, p. 152).
Bem, após a execução de Calabar muito
peixe continuou passando por baixo da ponte. Os holandeses tiveram o seu
período áureo de domínio entre 1637 e 1644, quando a Companhia das Índias
Ocidentais mandou para governar as terras conquistadas o Príncipe Maurício de
Nassau (um autêntico “mauricinho”), que muito modernizou a região, tendo
inclusive remodelado Recife. O movimento conhecido por Insurreição Pernambucana
(1645 – 1644), comandado por senhores de engenho, tem sido tomado como marcante
na formação de um sentimento de brasilidade e independência. A Insurreição
Pernambucana é diretamente responsável pelo fim do domínio holandês e expulsão
da Companhia das Índias Ocidentais do nordeste brasileiro. Os holandeses foram
fragorosamente derrotados, pelos insurretos, nas duas batalhas de
Guararapes (1648-1649). Empalidecidos por estas derrotas e por seguintes
acabaram definitivamente deixando as terras que ainda permaneceram ocupando
após 1649, com a capitulação do Campo da Taborda, em
1654. Mais tarde, em 1661, o Tratado de Paz de Haia,
ratificou a soberania portuguesa na região.
As batalhas de Guararapes foram
erigidas pela historiografia oficial como marco fundamental do irromper do
sentimento nativista brasileiro. Considera que lutando contra os invasores
holandeses e vencendo-os, a Insurreição Pernambucana constituída pela união,
bravura e coragem dos homens da terra – brancos, índios e negros – evitou
que a unidade territorial da então colônia fosse cindida entre Portugal e
Holanda, dividindo-se em duas partes. Desta forma, os invasores da Companhia
das Índias Ocidentais teriam sido detidos em sua expansão pelas terras
brasileiras pelo sentimento nacional que tipifica a Insurreição
Pernambucana e foi claramente expresso no “espírito de Guararapes”
que libertou a região, não derivando tal libertação de socorro providencial
enviado de além mar pela metrópole.
Como construção simbólica da
identidade nacional a Insurreição Pernambucana fornece basilares elementos
norteadores. Entre os que foram sacralizados como
heróis da Insurreição Pernambucana estão André Vidal de Negreiros
(branco), Felipe Camarão (índio) e Henrique Dias (negro). Esses três
heróis formam a tríade básica sobre a qual repousa o que um antropólogo definiu
como “a fábula das três raças formadoras” (DaMatta,
1987). E onde entra Calabar nisso? Ora Calabar é o inverso. Calabar é
apresentado na historiografia tradicional como um mestiço, um mulato, que
passou para o lado dos calvinistas da Companhia das Índias Ocidentais
ajudando-os (em muito pela sua competência como guia) a fundar domínio, durante
bom tempo, no nordeste do Brasil. Calabar virou a casaca, traiu...
Mas a traição de Calabar é bastante
cercada por uma angustiosa dúvida. Calabar era brasileiro, é o Brasil no século
XVII era uma simples colônia portuguesa, melhor espanhola, em função da União
Ibérica. Que vínculo de solidariedade poderia compromissar um “mazombo” com uma pátria ibérica? Como poderia trair uma
pátria que não era a dele? Talvez Calabar tivesse apostado na colonização
holandesa por considerá-la melhor que a ibérica.
Muitas luas e luas depois, na segunda
metade do século XX, em 1973, num contexto inteiramente diferente daquele que
engendrara as ditas invasões holandesas no período colonial, mas não menos
estarrecedor, Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra escreveram Calabar, o elogio da traição - uma peça de teatro. É bem sabido que, em 1973,
o Brasil encontrava-se sob o domínio de uma ditadura e numa fase, conhecida nos
dias presentes, como “anos de chumbo”.
Após meses de ensaio a peça Calabar, o elogio da traição teve a sua encenação proibida pela
censura, causando grandes prejuízos.
“Os censores promoviam um exame minucioso na peça,
detendo-se nos mínimos detalhes. Uma das censoras chegou a ressaltar o caráter
polêmico do espetáculo por este propor uma releitura do personagem histórico
Calabar. Para ela, ‘de acordo com a visão dos militares, a história oficial que
consagrava Calabar como um traidor não deveria ser discutida, pois poderia propiciar
uma reflexão crítica no público, além de despertar o debate dos temas que
sugeririam um paralelo com o momento presente (...) Em
outro parecer observamos que o mesmo tema, ou seja, a traição de Calabar,
inquietava os censores que argumentavam que tal discussão despertaria uma
reflexão no público sobre qual seria o melhor governo no país’.” (Freitas e Ramos).
3.2. O segredo da “Exaltação a Tiradentes"
Na historiografia oficial Joaquim José
da Silva Xavier (Tiradentes) e Domingues Fernandes Calabar ocupam
posições diametralmente opostas. Vejamos, acusados de traição, ambos pagaram
com a vida; entretanto, na posteridade, Calabar manteve a pecha infamante de
“traidor”, enquanto Tiradentes foi elevado à qualidade de mártir da
Independência, herói da República e
da nacionalidade brasileira. Os dois deram as costas aos colonizadores
ibéricos. Calabar por obtenção de vantagem pessoal ou por julgar que a
colonização holandesa era superior a lusitana e, portanto, melhor para os
colonizados – qual a razão real de Calabar, provavelmente nunca se saberá com
certeza. Quanto a Tiradentes, foi por sonhar alto que rompeu com a obediência
devida ao governo lusitano. Participou muito ativamente de um movimento
inconfidente que tinha por propósito fundar a pátria, desvencilhando a terra
brasileira dos grilhões coloniais. Denunciado, preso, humilhado, torturado,
condenado a morte, enforcado e esquartejado, Tiradentes não perdeu a razão.
Resistiu a tudo em nome da pátria que haveria de vir: “Libertas quae sera tamen”.
O alferes de cavalaria Joaquim José da
Silva Xavier não é um traidor, longe disso, é um herói. Simbolicamente, o
alferes deu a vida por amor a pátria que o porvir acabaria trazendo. Mas há uma
peculiaridade nesse
heroísmo que aqui tenho por propósito colocar em evidência: peculiaridade que
faz de Tiradentes mais do que um simples herói construído pela
historiografia oficial, e sim um herói respaldado por valor típico da
cultura brasileira. Para esclarecer o meu ponto de vista a respeito, reflito
sobre as razões que fizeram de um samba-enredo dedicado a Tiradentes o primeiro
a extrapolar o dia do desfile e obter grande sucesso popular. Refiro-me a Exaltação a Tiradentes,
apresentado no Rio de janeiro no carnaval, em 1949, pela Escola de samba Império Serrano. Samba-enredo
composto por Mano Décio da Viola, Penteado e Estanislau Silva.
Qual o segredo de “Exaltação a Tiradentes” que, em meio de tantos outros
sambas-enredo que eram simplesmente esquecidos após o desfile, encontrou
condições de permanência, tendo sido diversas vezes gravado e é sempre lembrado
como o primeiro clássico do gênero?
Importante observar que, em 1949, a
imprensa pouco se interessava por escolas de samba. Jornais e revistas de
grande circulação, preocupados com os bailes em clubes de elite, com os
concursos de fantasia do Teatro Municipal, com o carnaval de rua, como os desfiles
dos ranchos e das grandes sociedades, pouco noticiavam sobre as Escolas de
Samba. O rádio, principal veículo de comunicação da época, caitituava,
nos meses que precediam a folia, sambas e marchinhas de consumo carnavalesco.
Quanto aos sambas-enredo, eram mal divulgados e não era costumeiro gravá-los.
As próprias Escolas que ainda estavam longe de se transformarem em indústrias
culturais, procuravam mantê-los em segredo até a hora do desfile.
O samba-enredo “Exaltação a Tiradentes”,
dividido em duas partes, possui apenas 13 versos: “(I) Joaquim José da Silva Xavier /
Morreu a 21 de abril / Pela independência do Brasil / Foi traído / E não traiu
jamais / A inconfidência de Minas Gerais / (II) Joaquim José da Silva Xavier /
Era o nome de Tiradentes / Foi sacrificado / Pela nossa liberdade / Esse grande
herói / Para sempre há de ser / Lembrado”.
Na letra em questão há uma parcimônia de informações. Os 13 versos
de “Exaltação a Tiradentes”,
esclarecem: o nome completo do homenageado (Joaquim José da Silva Xavier), o
apelido (Tiradentes), a data incompleta da morte (21 de abril) e faz menção a
algumas generalidades, tais como: inconfidência, independência e liberdade. As
informações esgotam-se no universo de dados contidos em manuais de ensino
primário ou nos das primeiras séries do ensino
secundário. É o próprio Mano Décio da Viola quem explica:
“Peguei um livro do primeiro ano ginasial de minha
filha e foi nascendo o samba Tiradentes. Faltava a segunda parte. Aí me lembrei
do Penteado. Ele tinha um samba com a primeira parte fraca, mas a segunda muito
boa [...] Penteado
foi chegando todo ressabiado e quando encostou cantamos a primeira parte do
samba que eu tinha feito. Ele escutou, nós repetimos. Quando ele foi tomando
gosto, eu joguei a pedra em cima dele: ‘se você jogar aquela segunda, vê se
casa com a primeira’. Ele tremeu, cantei, mandei cantar outras vezes e, de
repente perguntei: ‘Pode ficar esta segunda, não pode?’. Quando ele autorizou,
eu falei: ‘Está pronto o samba’.” (Citado
por Cabral, 1974, p. 79).
Mais do que “casar” com as informações
da primeira parte, as da segunda limitavam-se a confirmá-las. Mesclando as duas
partes, a letra do samba-enredo pode ser lida numa ordem mais direta, da
seguinte forma: Joaquim José da Silva Xavier / Era o nome de Tiradentes /
Morreu a 21 de abril / pela independência do Brasil / Foi sacrificado / Pela
nossa liberdade / Foi traído / E não traiu jamais / A inconfidência de Minas
Gerais / (assim sendo) Esse grande herói / Para sempre há de ser / Lembrado.
Entre as prováveis razões do sucesso
de “Exaltação a Tiradentes” é possível mencionar: tratar-se de
samba harmônico e bem cadenciado, ter letra curta e linear, ser fácil de
guardar – uma vez que contém informações encontráveis até mesmo em manuais de
ensino básico. Portanto, informações que – grosso modo - “todo mundo” já sabia.
Acrescente-se às informações citadas uma que me parece ser determinante da
razão do sucesso de “Exaltação
a Tiradentes” e que,
qualitativamente, diferencia este samba-enredo de outros sambas-enredo que,
alicerçados em literatura didática, haviam sido compostos e passados
despercebidos.
Joaquim José da Silva Xavier – alferes
de cavalaria, mascate e tira-dentes – é personalidade histórica de forte
identificação popular, inclusive porque sua imagem foi construída na pintura de
Pedro Américo (1843 – 1905), e na de outros artistas, como uma espécie de
“Cristo barroco”. Tiradentes é um dos raros personagens históricos
classificados como herói pela literatura didática que é também identificável
por anseios e valores populares. Não se trata de um homem rico que os livros
contam, fez isso e aquilo para o bem do país. Trata-se de um militar subalterno
que foi condenado à morte por envolver-se numa conspiração que almejava a
independência do Brasil. Tiradentes foi preso, enforcado e esquartejado,
nada de concreto podendo fazer. Por que então, afirma que “esse grande herói , para sempre há
de ser lembrado?”. Dois
versos anteriores da mesma letra respondem à indagação: “Foi traído / e não traiu jamais”. Quer dizer, Tiradentes foi alcaguetado e não alcaguetou jamais. O Alferes é um verdadeiro herói na
acepção popular. O homenageado deve para ser sempre ser lembrado (por todos),
por ser um exemplo. Alguém, identificado com o princípio popular, o código de
honra que diz: “ninguém, por
motivo nenhum, nem sob tortura ou ameaça de morte, deve entregar o outro”. Foi assim que procedeu Tiradentes, mesmo traído, não entregou
ninguém, não alcaguetou,
mantendo-se fiel ao decantado sentimento de liberdade do homem brasileiro.
Pagou com a vida.
No samba de breque, “Na Subida do Morro”, composto
por Moreira da Silva e Silva Ribeiro Cunha, há menção ao referido código de
honra. Na letra da composição, seus autores citam o conhecido
adágio popular que diz: “Malandro
que é malandro não entrega o outro, espera para tirar a forra”. E convenhamos, levando em conta
que a Independência do Brasil ocorreu cerca de três décadas após a “Inconfidência
Mineira”, Tiradentes, que não entregou ninguém, “soube esperar” e tirar um
grande forra histórica.
A genialidade dos autores de “Exaltação a Tiradentes” está no fato de que, reproduzindo,
deixam a desnudo a pobreza das
informações contidas em livros didáticos, colocando em evidência o único fator
que possibilita pensar o “mártir da independência” como um verdadeiro herói
popular, símbolo do homem brasileiro: Tiradentes era um cabra macho, um bamba, e não um desprezível dedo-duro, um
traidor. Acreditamos que é esta faceta que diferencia “Exaltação a Tiradentes” de outros sambas-enredo anteriores ,
daí o sucesso e a permanência.
4. A traição na Política
(2ª República)
4.1. O Carreirista da
traição
No início dos anos 60 o jornalista Epitácio Caó publicou “Carreirista da Traição”, livro que tem Carlos Lacerda como protagonista. Trata-se de uma retaliação e, salvo erro, o primeiro livro brasileiro sobre política que traz a palavra “traição” no título.
Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1914 – 1977),
jornalista, político, editor, escritor e tradutor, líder carismático (amado e
odiado), mestre na arte da polêmica, demolidor de presidentes, tido como “o maior tribuno que passou pela
Câmara dos Deputados”, tornou-se também bastante conhecido por constantes
mudanças de opinião em reação a partidos políticos, doutrinas e personalidades
públicas.
Em “Carreirista
da Traição”, Epitácio Caó apresenta uma seleção de textos extraídos
de matérias escritas e publicados por Lacerda na “Tribuna da Imprensa”, entre 1950 e 1959, colocando em
evidência o caráter intrinsecamente contraditório de tais escritos. Nas
passagens selecionadas por Caó, Lacerda, que foi comunista na juventude e
ferrenho anticomunista enquanto político profissional, com pequena diferença no
tempo, elogia e critica as mesmas instituições, doutrinas e atores políticos,
fazendo as duas coisas com linguajar igualmente agressivo e apaixonado, típico
de quem escreve um panfleto do qual depende a salvação de alguma causa sagrada.
Assim sendo, o nacionalismo um dia é definido por Lacerda como “um sentimento, uma exigência de
respeito próprio” (14/9/1957)
e, no outro, como “um mero
instrumento ideológico e um pretexto político para dar cobertura à expansão do
comunismo em todas as fileiras, em todos os campos, em todos os setores” (1/7/58). Epitácio Caó vai alinhando
pontos de vista emitidos por Lacerda na Tribuna
da Imprensa; pontos de vista que primam pela contradição interna: o
endeusado de hoje pode ser o satanizado de amanhã e vice-versa. Entre os
deuses/diabos de Lacerda estão Juarez Távora, Assis Chateaubriand, Afonso
Arinos, o marechal Lott e muitos
outros. Entre as instituições, ora atacadas ora defendidas, estão o jornal
O Globo e a União
Democrática Nacional (UDN), partido pelo qual Lacerda obteve os seus
mandatos, se elegendo vereador (1947) e deputado federal (1954) e
governador do antigo Estado da Guanabara (1960).
Epitácio Caó fez a seleção em 1959, período próximo a
escolha de Jânio Quadros, pela UDN, como candidato a presidência da
República na eleição de 1960, escolha que acabaria se confirmando, tendo Jânio
sido sufragado presidente na referida eleição. São as posições
contraditórias de Lacerda em relação a Jânio Quadros que ocupam o maior número
de páginas do “Carreirista da
Traição”. A exemplo de
outros, Jânio é apresentado ora como símbolo ora do bem, ora do mal. Num dos
primeiros textos que Caó destaca, Lacerda refere-se a Jânio Quadros, na ocasião
governador de São Paulo, eleito sobre a sigla do Partido Democrático Cristão
(PDC), como alguém “capaz
de dar a vida pelo que promete” (22/4/1953).
Cerca de dois anos Lacerda escreve: “Tenho
todos os motivos para não confiar no Sr. Jânio Quadros”(4/4/1955).
Ainda em 1955 Caó destaca textos de Lacerda onde Quadros é apresentado como “paranoico” (6/4/1955), “charlatão” (11/4/1955) e “traidor contumaz” (4/7/1955). A reviravolta não
demora, e antes que a década terminasse Lacerda escreve nas páginas do mesmo
jornal: “entendo que a UDN
deve apoiar a candidatura de Jânio Quadros” (17/2/1959);
ou ainda: “sustento a
candidatura de Jânio Quadros como soldado dessa candidatura” (25/3/1959). Em outra passagem
selecionada por Caó, considera: “O
sr. Jânio Quadros é o homem capaz de criar um regime no qual haja confiança na
autoridade” (10/3/1959). E
para concluir, um dia Lacerda escreveu sobre Jânio: “O sr. Jânio Quadros é a versão
brasileira de Adolph Hitler” (20/5/1955), e, em outro: “Se a UDN quer defender o destino
da democracia deve apoiar imediatamente a candidatura de Jânio Quadros” (13/4/1959).
Em 1977, Carlos Lacerda deu uma longa entrevista
ao Jornal da Tarde (SP). Indagado sobre o livro de
Caó, comentou:
‘Nunca li o livro todo. As coisas que li são
verdadeiras. Agora, se quisesse não lhe dar uma resposta direta, eu repetiria
Ruy Barbosa: ‘só os burros não cometem incoerência. Só os burros não mudam de
opinião’. Mas prefiro justificar com palavras minhas. O que acontece é o
seguinte: os acontecimentos mudam, a coisas mudam de aspecto. E só realmente
uma pessoa obstinada ou vaidosa é que não reconhece quando as coisas mudam. O
que peço a Deus e que me conserve exatamente essa capacidade de parecer
incoerente, quer dizer, de elogiar o sujeito quando o sujeito me parece que
está fazendo coisa certa e, amanhã, espinafrá-lo quando me parece que ele está
fazendo a coisa errada. Agora, se você juntar as duas coisas, você é que parece
incoerente. O incoerente é ele! Nesse livro (o livro de Epitácio Caó) há muitas
coisas desse gênero. Jânio Quadros, por exemplo: o Jânio apareceu como um
sujeito disposto à vassoura, disposto a fazer um grande governo. Depois mostrou
o contrário. Quem é o incoerente? Eu que o elogiei quando ele parecia bom e o
ataquei quando ele ficou ruim? Ou foi ele, que parecia bom e ficou ruim?
Incoerente seria eu se continuasse a elogiá-lo”.(Citado por Cunha Júnior: O Estado de São Paulo,
20/05/2001).
Para os propósitos do presente estudo não vem ao caso
analisar algumas incongruências existentes na entrevista-depoimento de Lacerda,
como por exemplo o fato de ele provavelmente haver ”esquecido” que o livro de
Caó foi publicado cerca de anos antes do seu desentendimento com Jânio Quadros,
quando o político paulista ocupava a presidência da República (entre janeiro e
agosto de 1961), e lhe ter feito novas críticas. As críticas a Jânio que
Caó seleciona e publica, como constatamos, estão compreendidas entre 1953 e
1959. Além disso, as criticas feitas – transcritas no livro de Caó – dizem
respeito a caráter e não a meros desentendimentos derivados do fato de em
momentos determinados, Jânio e Lacerda terem seguido caminhos cruzados.
Concretamente, do livro “Carreirista da Traição” que tem mais de duzentas páginas, Caó
escreveu, contando como o ordenamento do “índice dos capítulos”, apenas 11
páginas. Escreveu “Flagrante
do Brasil”, como uma espécie de “introdução”. Nesta, refere-se ao Maracanã
não apenas como o maior Estádio de Futebol do mundo, mas também como o “maior mictório do mundo”. Em seguida a irônica observação,
acrescenta: “Quem quiser ver,
vá lá e leve lenço para por no nariz” (Caó:
s/d1, p. 9). O Maracanã era, na época, além de palco de partidas de futebol, o
local onde o egrégio Superior
Tribunal Eleitoral escolhera
para a apuração das eleições realizadas no então Distrito Federal. Numa dessas
apurações, Caó descreve uma situação de balbúrdia infernal, num local fétido,
impróprio para a atividade, com parca segurança e por onde se espalhavam 60
Juntas apuradoras.
“Em algumas Juntas arranjaram uma tábua cheia de
pregos onde eram espetados os votos; noutras, havia caixinhas de charutos, cada
qual correspondente a um partido político, para coleta das preciosas cédulas;
em quase todas as Juntas apuradoras viam-se pratos com sanduíches, copos com
garrafas de refrigerantes, saquinhos de biscoitos, tudo de mistura com
envelopes, sobrecartas, cédulas-únicas, urnas e milhares de cédulas”. (Caó: s/d1, p. 13).
Em nenhum momento de seu livro Caó
explicita porque classifica Carlos Lacerda como “carreirista da traição”.
Limita-se apenas a destacar sérias incongruências presentes no que o
“tribuno” da Tribuna da
Imprensa escreve sobre as
mesmas instituições ou atores sociais, com pequeno intervalo de tempo. Lacerda
não é ao menos o centro que ordena as palavras críticas de Caó na “introdução” Flagrante do Brasil; mas tais
palavras recaem sobre ele. Lacerda só surge nos dois últimos parágrafos
da introdução. Surge no penúltimo parágrafo como primeiro patrono da
candidatura de Jânio, precedido de sarcástico comentário de que “nem tudo está perdido, porém, pois
o ‘Jânio vem ai’... como diz a propaganda dos muros” (Caó: s/d1,p. 19) . E no último,
não com menor sarcasmo, onde Caó considera que está no fato de ter composto o
livro com seleção de textos de Lacerda “a
razão por que seu nome figura também na autoria desta obra, que é muito mais
sua, e por isso com ele estamos dispostos a dividir, igualmente, os direitos
autorais respectivos”. (Caó:
s/d1, p. 19)
Numa livre interpretação do
título do livro de Epitácio Caó pode se dizer que o autor insinua que o mandato
popular deveria ser algo de sagrado, com o sentido do conhecido
ditado que diz “a voz do povo é a voz de Deus”. No caso de Lacerda, ele é
insinuado como um “carreirista”, como alguém que não respeita a sacralidade do
mandato popular e ascende no campo político pela constante prática da traição,
ou seja: a prática de elogiar e atacar os mesmos atores políticos, dependendo
de seu interesse imediato. Tal proceder o permitia
abraçar a mobilidade no campo político e não uma bandeira de luta. Mas afinal
de contas, foi o próprio Lacerda quem disse : “Não
gosto de política (...) Gosto é do poder”. (citado por Cunha Junior:
20/05/2001).
4.2. “Eu me senti traído” : presidente Luis Inácio Lula da
Silva, em 12/08/2005
Em pronunciamento a nação, numa
reunião ministerial realizada em 12/08/2005 e transmitida ao vivo pelas redes
de TV para todo o país, o presidente Lula abordou
o tema “traição”, quanto em linguagem coloquial, como quem estivesse
sussurrando a velhos “companheiros”, disse para milhares de olhos e ouvidos: “Quero dizer a vocês com toda a
franqueza, eu me sinto traído”.
O referido
pronunciamento do presidente pode ser entendido como constituído por duas
partes. Na primeira, o presidente dá um rápido balanço no seu governo,
avaliando que “apesar de todas
as dificuldades ”ocorre a retomada do “progresso
e da justiça social”. A razão
da otimista avaliação é ilustrada pela menção a três circunstâncias: (1) volta
do crescimento econômico com inflação baixa (“voltamos
a crescer, mas desta vez de maneira sustentável com inflação baixa”), (2)
recorde nas exportações (“melhor resultado da nossa história”) e (3) a
criação de novos empregos (“Em 30 meses já criamos 3 milhões, 135 mil
empregos com carteira assinada”). O que a fala presidencial não fez foi
relacionar a inflação baixa com a estratosférica e abusiva taxa de juros que
provoca uma fantástica concentração de renda pelo mecanismo perverso de
transferência de renda de assalariados para os já e sempre abarrotados cofres
dos banqueiros e demais agiotas oficializados. A fala oficial também não
informa que o aumento das exportações é feito em detrimento da priorização do
mercado interno e que o crescimento do número de empregos é muito aquém ao
prometido durante a campanha eleitoral e da necessidade real do aumento de
ofertas de oportunidade de trabalho, sendo incapaz de evitar a proliferação do
desemprego pela absorção de parcela substantiva de brasileiros na pindaíba.
Na segunda parte, o presidente Lula enfrenta o real problema que motivara
o pronunciamento: dar uma satisfação aos brasileiros sobre qual era a
posição do governo em relação a grave crise política em curso, em função
do espantoso e arrepiante chorrilho de denúncias de corrupção. Chorrilho de
denúncias que, enlameando a vida pública nacional, eram trombeteadas pela indignação da
imprensa, não só pelo Brasil, mas por todos os costados do mundo. Situação
apopléctica que de tão insustentável acabou forçando a formação de diversas CPIs.
Denúncias que, embora envolvendo políticos de vários partidos, apontavam os do
PT como centro, tanto petistas portadores de mandatos políticos, como membros
do primeiro, segundo e terceiros escalão governamental, assim como a própria
cúpula dirigente do partido no poder.
Foi ao enfrentar o citado problema, na segunda
parte do pronunciamento, que o presidente Lula “confidenciou”, “com toda a franqueza”, aos
milhares de ouvidos eleitorais: “eu
me sinto traído”. O presidente Lula não disse: “eu fui traído” – de forma
imperativa. Ora, “Sentir-se traído”, sem dúvida, é uma possibilidade de
traição, uma suspeita, uma questão de foro íntimo, de natureza subjetiva.
Entre outras afirmações sobre “traição” que
constam do pronunciamento do presidente, destacamos: (1) observar sentir-se
traído “por práticas
inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento”, (2) estar “indignado pelas
revelações que aparecem a cada dia e que chocam o país”.
Pouco antes de encerrar o
pronunciamento, o presidente Lula, mesclando governo e partido, pondera:
“Queria, neste final, dizer ao povo brasileiro que eu
não tenho nenhuma vergonha de dizer ao povo brasileiro que nós temos que pedir
desculpas. O PT tem que pedir desculpas. O governo, onde errou, tem que pedir
desculpas, porque o povo brasileiro, que tem esperança, que acredita no Brasil e que
sonha com um Brasil com economia forte, com crescimento econômico e
distribuição de renda, não pode, em momento alguma, estar satisfeito com
a situação que o nosso país está vivendo”.
O presidente Lula voltaria a falar publicamente sobre
“traição” apenas mais uma vez. Foi em entrevista concedida ao jornalista Pedro Bial e exibida em 1 de janeiro de 2006, no
programa Fantástico, da
Rede Globo. Quando o jornalista lhe perguntou: “O senhor já se disse traído e
depois se solidarizou com aqueles que foram acusados de corrupção. O senhor foi
traído, ou é solidário? Por exemplo, o José Dirceu o traiu?”; o presidente
respondeu:
“Veja, eu me considero traído por duas coisas. Porque
eu dediquei parte de minha vida para construir esse partido. Eu, com minha
mulher, com as crianças. As crianças dormiam na calçada para ajudar a
construir esse partido, e não era uma vez, eram muitas vezes. Dormiam na calçada
vendendo camiseta, fazendo filiação. Eu me sinto traído porque alguns
companheiros meus fizeram práticas que não condiziam com aquela que era a
história do PT. No caso do José Dirceu, diferente do Delúbio que assumia a responsabilidade, o Zé
Dirceu ainda não definiu o seu processo, ele foi cassado, vai ter o relatório
da CPI, vamos aguardar o que vai acontecer. Mas eu não quero nem julgar se fui
traído por A ou por B. É que eu acho que o conjunto dos acontecimentos, pra
mim, soou como se fosse uma facada nas costas de alguém que junto com outros
milhões de brasileiros dedicou parte de sua vida pra construir um instrumento
político que pudesse ser diferente de tudo que estava ai”.
Como pode ser constatado na citação acima, o
presidente Lula dá duas razões para se “considerar traído” ou “se sentir
traído” (“eu me considero traído” e “eu me sinto traído”). A
primeira razão que apresenta, está associada à idéia de sacrifico: “eu dediquei parte de minha vida
para construir esse partido”. Sacrifício
que o presidente enfatiza ter sido compartilhado por familiares, observado que
seus filhos vendiam camisetas e faziam filiações enquanto dormiam na calçada. A
segunda razão que apresenta se relaciona com ética. O presidente Lula sente-se traído “porque alguns companheiros meus
fizeram práticas que não condiziam com aquela que era a história do PT”.
Segundo as duas razões apresentadas a traição teria sido feita ao PT – partido pelo qual o presidente
Lula argumenta ter dedicado parte da vida e que considera ter sido vítima (por
parte dos que “traíram”) de procedimentos eticamente em desacordo com a
trajetória da organização. Portanto, nos dois casos, a sacralidade que teria
sido objeto de traição está no PT. Mas como nas situações anteriormente
estudadas, envolvendo religião, família, pátria etc. – instituições
concretamente sacralizadas nos valores da nossa cultura, teria o
PT algo de sagrado? Defenderia uma causa sagrada? Qual causa? Penso que
nenhuma. Se não, vejamos. Seria o PT um “instrumento político que pudesse ser diferente
de tudo que estava ai” – como
observa o
presidente Lula ao
explicitar uma das razões de ter dedicado parte de sua vida, “junto com
outros milhões de brasileiros”, a
construção de tal partido? Não, no exercício do poder o PT demonstrou não ter
qualquer diferença qualitativa em relação aos partidários da política de
concentração de renda, juros altos, política de arrocho salarial etc.
Primaria a trajetória do PT pela coerência e pela ética? Ora, basta recordar
que em 14/12/2003 o PT expulsou e seus quadros a senadora Heloísa Helena e os
deputados federais Luciana Genro e Babá por manifestarem, publicamente,
sérias discordâncias com a política econômica e social posta em curso pelo
bloco petista encastelado no poder, cobrando-lhe respeito aética partidária
e, portanto, coerência com bandeiras defraudadas no passado.
No trecho reproduzido da entrevista no Fantástico, o presidente Lula explicou, parecendo querer por fim a
questão: "não quero
julgar se fui traído por A ou por B”. Em suma, trata-se de uma “traição”
não se sabe bem a o quê e muito menos quem são os traidores. Posteriormente, em
reunião do PT largamente noticiada pela imprensa, a cúpula do PT decidiu que
apurações internas dos acusados pela bandalheira só depois das próximas
eleições presidenciais...
Uma última questão que julgamos
importante destacar na entrevista do presidente Lula, de 2 de janeiro do ano em
curso, é o fato do presidente haver considerado: “Se três, quatro, meia dúzia, dez,
quinze ou vinte pessoas de uma organização política cometem erros não significa
que o partido todo está cometendo o mesmo erro”. Desta forma o presidente,
procurando minimizar a crise que se abatia (e se abate) sobre a vida
pública brasileira e especialmente sobre o PT, tentava tapar o sol com a
peneira, observa que os que “cometeram erros” eram em número insignificante, em
relação ao número total de filiados e militantes do PT. Ocorre que os
poucos petistas citados na pergunta de Bial, que
motivou a resposta do presidente “minimizando a crise”, eram José Genuíno
(presidente do PT), José Dirceu (chefe da Casa Civil da Presidência da
República) e Sílvio Pereira (secretário geral do PT) - os três já em desgraça.
Quer dizer, “o pequeno número” de petistas que na avaliação presidencial
“tinham cometido erros” (e que “erros”) eram membros da cúpula do PT. E além
dos nomes citados por Bial os
outros que estavam na berlinda também eram altos quadros partidários, membros
do bloco no poder. Os abnegados, combativos e admiráveis militantes do PT, que
iam para a rua defender e divulgar o partido em cujo projeto acreditavam, sem
ganhar centavo, muitas vezes xingados pelos segmentos mais truculentos da
imprensa, ofendidos com racismos impunes e estereótipos do tipo “barbudinhos da
CUT”, não sujaram as mãos com nenhuma moeda do Judas. Não foram eles que
cometeram os tais “erros” a que se refere o presidente da República, quem
sujou as mãos foram membros da cúpula. Muitos dos abnegados militantes da
massa petista, que faziam vibrar as ruas de capitais e de numerosas outras
cidades com suas manifestações coletivas e pacíficas por justiça social,
decepcionados com o medo surrando a esperança, deixaram as fileiras do PT
e passaram a receber o presidente, ao som de uma música já aqui analisada. Se
Juscelino Kubitschek, onde chegava
ouvia o povo cantado “como
pode o peixe vivo / viver fora da água fria / não poderei viver / sem a
sua, sem a sua / companhia”, e
o último, Getulio Vargas, o que chegou ao Catete nos braços do povo, era
recebido ao som do “bota o retrato
do velho outra vez / bota no mesmo lugar”, o ex-lider sindical e atual presidente da
República , que se tornou tão conhecido e respeitado pela coragem e audácia no
combate à ditadura, começa a escutar o coro que vem de antigos adeptos: “você pagou com traição / há quem
sempre te deu a mão”.
5. Breve conclusão
Tomando a traição de Judas como
paradigmática da noção de trair na cultura ocidental, elaborando um tipo ideal
com os rasgos mais providos de significados sociológicos presentes na referida
traição e à luz da metodologia da chamada sociologia compreensiva de
corte weberiano,
examinei várias formas de traição presentes no imaginário brasileiro, mormente
na MPB, na historiografia e na vida pública. Todas estas questões que tem grandes
e complexos desdobramentos e práticos e teóricos foram tratados com rigor mas
nos limites de um artigo.
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