Crônica
de Luiz Carlos Facó
Nas
longínquas décadas de 40 e 50 do século passado, em Salvador, a distância
social que separava os mais aquinhoados de dinheiro dos extremamente pobres era
imensurável.
Grande
parte dos óbitos nela ocorridos devia-se à fome. Poucos nascituros alcançavam
mais de sete dias de vida.
Além
da penúria, concorria, para a exacerbação da mortalidade, a falta de saneamento
básico, causadora de viroses, sarampo, varíola, catapora, coqueluche, doenças
endêmicas, juntamente com a sífilis e a tuberculose.
As
viuvas faziam parte do cotidiano da cidade. Era fácil identificá-las. O luto
fechado constituía-se no uniforme delas. A sociedade, os usos e costumes, assim
o determinavam.
A
vida, entre os soteropolitanos, daquela época, não ultrapassava parcos quarenta
e oito anos. O tempo de existência dos nossos concidadãos era medido por
padrões similares aos da Idade Média.
Agravavam
esse quadro estupefaciente os estorvos causados pelo advento da II Grande
Guerra. A população, já submetida às dificuldades inquestionáveis dessa cidade
miserável, prestadora de serviços arcaicos e ineficientes, viu-se sujeita ao
racionamento de comida, ao blecaute, à falta de gasolina. Se costumeiramente
eram poucos os veículos trafegando nas suas ruas, com o desabastecimento da
gasolina, eles se tornaram raros. Só os adaptados ao uso do gasogênio
conseguiam circular. Os veículos pesados, marinetes e caminhões, destinados ao
transporte de passageiros e mercadorias, foram recolhidos. Substituídos os
caminhões pelas carroças puxadas por muares, incumbidas em levar a todos os
recantos materiais necessários à sobrevivência da população. As marinetes
(ônibus), pelos bondes que circulavam apinhados de viajores.
Desse
quadro sórdido, excepcionavam-se a imbatível simpatia do povo e as decantadas
belezas naturais da cidade. Registre-se que aquela gente sofrida, famélica, não
apelava à violência. Era ordeira e pacata.
Os
crimes ocorridos na cidade cingiam-se a furtos de galinhas e aos delitos contra
a honra. Apesar dessa predominância irrefutavel, pseudos cientistas sociais,
apontam hoje, como causa determinante da violência perturbadora do sossego das
cidades brasileiras a fome. Eles são mais faltos de inteligência do que o
estômago dos esfaimados, súplices por comida.
Não
enxergam que a violência dos tempos modernos é uma decorrência da falência de
exemplos dos bons princípios familiares. Do abandono dos filhos ao Deus dará.
Do relaxamento moral. Da ausência de civismo. Do desleixo para com a ética. Da
exacerbada competitividade. Do consumismo, desbragado. Enfim, da falta de
educação. Educação familiar e instrução. Muito apropriadamente Leibnitz, assim
se expressou: “...dai-me a instrução pública durante
um século e transformarei o mundo.”
Nem
mesmo as artes ficaram resguardadas daquele vendaval de penúria e
obscurantismo.
À
época, a literatura vivia do seu glorioso passado. O aparecimento de poucos e
bons prosadores, poetas, não conseguia oxigenar suficientemente suas artérias
para retirá-la do estado de letargia em que se encontrava.
A
música modorrava, sob acordes desafinados.
É
verdade, a cidade possuía uma afamada escola de música. Mas, ela não formava
bons instrumentistas.
Como
desejo ser generoso, imputo esse raquitismo à inexistência de uma orquestra
sinfônica.
Não
fosse o esforço da cantora lírica, Alexandrina Ramalho e da Scab, Sociedade de
Cultura Artística da Bahia, por ela fundada, trazendo ao convívio da população,
para apresentações, consagrados músicos, virtuoses nacionais e estrangeiros,
nosso divórcio com a música erudita seria irreversível.
Quanto
à popular, seus rumos tangenciavam o destino da clássica. Nossos melhores
compositores como Assis Valente e Dorival Caymmi, migraram para o sul em busca
de novos horizontes, deixando entre nós, a saudade de suas ausências, o oco dos
seus talentos.
Os
zelosos guardiões das artes pictóricas e escultóricas, encastelados na Escola
de Belas-Artes, tinham-nas como propriedades privadas. Feudos inalienáveis. Não
admitiam que elas tomassem novos rumos. Apartassem-se do academicismo por eles
professados e ensinados, como única via para se percorrer esses dois ramos da
atividade criativa.
Foi
por causa dessa estreiteza de concepção, que, os jovens e talentosos Carlos
Frederic Bastos e Mário Cravo Júnior, um pintor, o outro dublê de pintor e
escultor, em suas mostras individuais, na Biblioteca Pública do Estado, em
1947, foram execrados pelo público e críticos provincianos.
Ninguém
prestou atenção às pinceladas mágicas de um, nem ao talhe precioso do buril do
outro. Das novas propostas de arte daqueles jovens e talentosos criadores,
poucos se deram conta. Chamaram-nos loucos. Os livros de visita daquelas
exposições registraram o repúdio dos reacionários à modernidade artística,
abraçada por ambos. Com afirmações deste jaez: são imorais; são indecentes;
isso não é pintura; atentam contra o nosso bom gosto. Atitudes reveladoras do
desprezo que nossos avós votavam ao inusitado, ao inovador.
O
teatro recobria-se com tecidos feitos de fios arrancados das teias da
indiferença. Cheirava a bolor. Só não afundava de vez sob as areias costumadas
em soterrar os bens históricos, devido aos esforços do Teatro de Amadores do
Clube Carnavalesco Fantoches da Euterpe. Que, de quando em quando,
arriscava-se, corajosamente, em apresentar uma peça ou uma opereta. E, ao
jornalista Adroaldo Ribeiro Costa, criador de A Hora da Criança, um programa
transmitido por uma emissora de rádio local, que, dentre seus muitos méritos,
destacava-se o de formar cantores e atores infanto-juvenis, tirando de cada um
deles toda a capacidade histriônica de que dispusessem.
Afora
tais espasmos de vida cultural, outros poucos aconteciam.
Por
aqui se apresentavam, esporadicamente, grupos teatrais de estados do sul do
país. Dentre eles, lembro-me dos constituídos por madame Henriette Morineau, Eva Tudor, Jaime Costa, Procópio
Ferreira, Dulcina e Odilon e Rodolfo Mayer, o insuperável intérprete do
monólogo As Mãos de Eurídice, de autoria de Pedro Block. Acontecimentos, dada a
excepcionalidade, alvos de comentários por toda gente, meses a fio.
As
expressões da dança resumiam-se as acontecidas nas rodas de samba e de
maculelê. Por isso mesmo, escassas se faziam as professoras de balé.
Dada
a mediocridade como eram tratadas as artes, naquele cinzento período, os seus
amantes, para não se apartarem do deleite que elas lhes proporcionavam,
cultuaram-nas em saraus. Reuniões remontadas do passado da sociedade francesa,
tornadas comuns no Rio de Janeiro do século XVIII, e em algumas capitais
provinciais brasileiras.
Em
Salvador, até o final dos anos cinqüenta, elas ocorreram. Os salões que as
abrigavam, transformavam-se em palcos desses bem-vindos eventos e da arte de
receber. Também em vitrinas da vaidade, onde damas e cavalheiros expunham suas
melhores roupas e adereços: jóias trabalhadas em ouro ou platina, incrustadas
de pedras preciosas, cujo valor ninguém se arriscava determinar. Tudo temperado
pelas especiarias da mundanidade: o cochichar sarcástico, o blasonar, o mexericar,
o bisbilhotar, o flertar, o comentar irreverencioso.
Como
estava atrasada nossa cidade! O mundo, quando saído dos horrores da II Grande
Guerra Mundial, mudava seus hábitos comportamentais. Havia uma dissensão,
claramente abrangente, dos rígidos costumes vigentes até o meio do século
anterior. Passou-se a respeitar mais a liberdade individual. O beijo na boca,
em público, entre os casais, tornara-se medianamente aceitável. A gravidez
prematura, antes do casamento, já não se constituía em bicho de sete cabeças.
Os pais eram mais indulgentes com as filhas, neste estado. Não as expulsavam,
como de hábito, de casa. Protegiam-nas. Os namoros eram mais tolerados.
Dispensavam os olhares severamente críticos e admoestatórios dos maiores. O
índex do Vaticano, catálogo elaborado pela Igreja proibindo aos católicos a leitura
de determinados títulos literários, aos poucos, ia sendo revisto. As artes,
teatro, pintura, escultura, experimentavam viço. Abordavam temas polêmicos,
ousados. E os grandes responsáveis por essas mudanças eram os filmes feitos em Hollywood,
os neo-realistas, produzidos pelos italianos e os noirs, franceses.
Mostravam posturas senão imorais, porém picantes.
No
Brasil, tais ventos liberalizantes, soprados no mundo com força de ventanias,
viraram simples brisas. O que permitiu a Nelson de Souza Carneiro, deputado
federal pela Bahia, posteriormente, por várias legislaturas pelo estado do Rio
de Janeiro, ousar enfrentar a Igreja Católica, levando à consideração dos seus
pares um projeto de lei instituindo o divórcio.
Nas
terras do Senhor do Bonfim, do Nosso Senhor dos Navegantes, de Nossa Senhora da
Conceição da Praia, das negras mandingueiras, das babalorixás, das iaôs, das
mulatas avolumadas, donas de bundas e peitos de fazer inveja às branquelas
desenxabidas, tísicas no físico, nem sinal daquela brisa. Tudo era uma
pasmaceira só. A mesma rotina. Os mesmos hábitos. As mesmas línguas vituperinas
a espalhar maldades. Ai da mocinha que aceitasse carona de um jovem ou de um
senhor. Das mulheres que ousavam usar um vestido tomara-que-caia, mesmo
complementado por um bolero. Das que se maquiavam em excesso. Das que passavam
horas nas janelas ou nas portas de suas casas. Das rueiras, freqüentadoras
assíduas da Rua Chile. Eram prontamente discriminadas, tachadas de
“programistas”, vadias, prostitutas. Enfim, vagabundas.
Como
em toda sociedade machista, só se passava a mão pela cabeça dos homens casados
que mantinham amásias. As amancebadas, suas companheiras, não tinham o mesmo
sortilégio. Viviam continuamente destratadas, isoladas em eternas e sucessivas
quarentenas, como se fossem portadoras de moléstias contagiosas. Do mesmo
estigma padeciam as desquitadas. Obrigadas ao confinamento por aquela situação
civil, ao calabouço da solidão amorosa, até o fim dos seus dias.
Naqueles
anos, principalmente os que se seguiram à segunda metade da década de
cinquenta, vivi intensamente a minha cidade. Acompanhei a hipocrisia da sua
sociedade. O perverso desdenhar da
elite, devotado ao menos aquinhoado. A
empáfia dos ricos, que por pura jactância, acendiam charutos cubanos ou suerdiecks, com notas de cem mil réis,
como se designavam, no período, as de cem cruzeiros. Os trompaços da Igreja
Católica, através do seu Cardeal, D. Augusto Álvaro da Silva, que, embora bom
poeta e de inteligência rara, jamais distribuía platitudes a conhecidos ou
amigos. Se é que os teve, não tergiversava com adversários, lançando contra
eles quer o estigma da sua indiferença, quer a pena maior da Igreja: a
excomunhão. Com o perdulário orgulho de certas famílias, via de regra
repercutido como mantra, cujos antepassados, por vias escusas ou a um custo
altíssimo, representado por vários sacos de moedas de ouro, tinham sido
aquinhoados, no passado, com uma patente militar ou um título nobiliárquico.
Eram, assim se nominavam, a família do coronel tal, ou a de um certo visconde
ou barão. Na verdade, puros sangues azuis de araque.
Afora
essas abjetas lembranças, minhas retinas guardaram a figura que melhor
representava aquele maldito passado. A do carroceiro. Imagem que sempre
remeteu-me a Fauno – faunus – antiquissimo deus de Roma, de natureza dúplice:
meio-homem e meio-bode, com cornos e cascos.
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