segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A SALVADOR DOS ANOS 40/50 DO SÉCULO PASSADO

Crônica de Luiz Carlos Facó



O autor deste texto confraterniza com amigos - da esquerda para a direita: Des. Geminiano Conceição, João Carlos Teixeira Gomes (Jornalista Joca pena de aço), o autor, Risodalvo Menezes (Imortal pela Academia de Letras e Artes de Salvador) e Joaci Góes (Ensaísta e imortal pela ALB).




Nas longínquas décadas de 40 e 50 do século passado, em Salvador, a distância social que separava os mais aquinhoados de dinheiro dos extremamente pobres era imensurável.

Grande parte dos óbitos nela ocorridos devia-se à fome. Poucos nascituros alcançavam mais de sete dias de vida.

Além da penúria, concorria, para a exacerbação da mortalidade, a falta de saneamento básico, causadora de viroses, sarampo, varíola, catapora, coqueluche, doenças endêmicas, juntamente com a sífilis e a tuberculose.

As viuvas faziam parte do cotidiano da cidade. Era fácil identificá-las. O luto fechado constituía-se no uniforme delas. A sociedade, os usos e costumes, assim o determinavam.
A vida, entre os soteropolitanos, daquela época, não ultrapassava parcos quarenta e oito anos. O tempo de existência dos nossos concidadãos era medido por padrões similares aos da Idade Média.

Agravavam esse quadro estupefaciente os estorvos causados pelo advento da II Grande Guerra. A população, já submetida às dificuldades inquestionáveis dessa cidade miserável, prestadora de serviços arcaicos e ineficientes, viu-se sujeita ao racionamento de comida, ao blecaute, à falta de gasolina. Se costumeiramente eram poucos os veículos trafegando nas suas ruas, com o desabastecimento da gasolina, eles se tornaram raros. Só os adaptados ao uso do gasogênio conseguiam circular. Os veículos pesados, marinetes e caminhões, destinados ao transporte de passageiros e mercadorias, foram recolhidos. Substituídos os caminhões pelas carroças puxadas por muares, incumbidas em levar a todos os recantos materiais necessários à sobrevivência da população. As marinetes (ônibus), pelos bondes que circulavam apinhados de viajores.

Desse quadro sórdido, excepcionavam-se a imbatível simpatia do povo e as decantadas belezas naturais da cidade. Registre-se que aquela gente sofrida, famélica, não apelava à violência. Era ordeira e pacata.

Os crimes ocorridos na cidade cingiam-se a furtos de galinhas e aos delitos contra a honra. Apesar dessa predominância irrefutavel, pseudos cientistas sociais, apontam hoje, como causa determinante da violência perturbadora do sossego das cidades brasileiras a fome. Eles são mais faltos de inteligência do que o estômago dos esfaimados, súplices por comida.

Não enxergam que a violência dos tempos modernos é uma decorrência da falência de exemplos dos bons princípios familiares. Do abandono dos filhos ao Deus dará. Do relaxamento moral. Da ausência de civismo. Do desleixo para com a ética. Da exacerbada competitividade. Do consumismo, desbragado. Enfim, da falta de educação. Educação familiar e instrução. Muito apropriadamente Leibnitz, assim se expressou: “...dai-me a instrução pública durante um século e transformarei o mundo.”

Nem mesmo as artes ficaram resguardadas daquele vendaval de penúria e obscurantismo.
À época, a literatura vivia do seu glorioso passado. O aparecimento de poucos e bons prosadores, poetas, não conseguia oxigenar suficientemente suas artérias para retirá-la do estado de letargia em que se encontrava.

A música modorrava, sob acordes desafinados.

É verdade, a cidade possuía uma afamada escola de música. Mas, ela não formava bons instrumentistas.

Como desejo ser generoso, imputo esse raquitismo à inexistência de uma orquestra sinfônica.
Não fosse o esforço da cantora lírica, Alexandrina Ramalho e da Scab, Sociedade de Cultura Artística da Bahia, por ela fundada, trazendo ao convívio da população, para apresentações, consagrados músicos, virtuoses nacionais e estrangeiros, nosso divórcio com a música erudita seria irreversível.

Quanto à popular, seus rumos tangenciavam o destino da clássica. Nossos melhores compositores como Assis Valente e Dorival Caymmi, migraram para o sul em busca de novos horizontes, deixando entre nós, a saudade de suas ausências, o oco dos seus talentos.

Os zelosos guardiões das artes pictóricas e escultóricas, encastelados na Escola de Belas-Artes, tinham-nas como propriedades privadas. Feudos inalienáveis. Não admitiam que elas tomassem novos rumos. Apartassem-se do academicismo por eles professados e ensinados, como única via para se percorrer esses dois ramos da atividade criativa.

Foi por causa dessa estreiteza de concepção, que, os jovens e talentosos Carlos Frederic Bastos e Mário Cravo Júnior, um pintor, o outro dublê de pintor e escultor, em suas mostras individuais, na Biblioteca Pública do Estado, em 1947, foram execrados pelo público e críticos provincianos.

Ninguém prestou atenção às pinceladas mágicas de um, nem ao talhe precioso do buril do outro. Das novas propostas de arte daqueles jovens e talentosos criadores, poucos se deram conta. Chamaram-nos loucos. Os livros de visita daquelas exposições registraram o repúdio dos reacionários à modernidade artística, abraçada por ambos. Com afirmações deste jaez: são imorais; são indecentes; isso não é pintura; atentam contra o nosso bom gosto. Atitudes reveladoras do desprezo que nossos avós votavam ao inusitado, ao inovador.

O teatro recobria-se com tecidos feitos de fios arrancados das teias da indiferença. Cheirava a bolor. Só não afundava de vez sob as areias costumadas em soterrar os bens históricos, devido aos esforços do Teatro de Amadores do Clube Carnavalesco Fantoches da Euterpe. Que, de quando em quando, arriscava-se, corajosamente, em apresentar uma peça ou uma opereta. E, ao jornalista Adroaldo Ribeiro Costa, criador de A Hora da Criança, um programa transmitido por uma emissora de rádio local, que, dentre seus muitos méritos, destacava-se o de formar cantores e atores infanto-juvenis, tirando de cada um deles toda a capacidade histriônica de que dispusessem.

Afora tais espasmos de vida cultural, outros poucos aconteciam.

Por aqui se apresentavam, esporadicamente, grupos teatrais de estados do sul do país. Dentre eles, lembro-me dos constituídos por madame Henriette Morineau, Eva Tudor, Jaime Costa, Procópio Ferreira, Dulcina e Odilon e Rodolfo Mayer, o insuperável intérprete do monólogo As Mãos de Eurídice, de autoria de Pedro Block. Acontecimentos, dada a excepcionalidade, alvos de comentários por toda gente, meses a fio.
As expressões da dança resumiam-se as acontecidas nas rodas de samba e de maculelê. Por isso mesmo, escassas se faziam as professoras de balé.

Dada a mediocridade como eram tratadas as artes, naquele cinzento período, os seus amantes, para não se apartarem do deleite que elas lhes proporcionavam, cultuaram-nas em saraus. Reuniões remontadas do passado da sociedade francesa, tornadas comuns no Rio de Janeiro do século XVIII, e em algumas capitais provinciais brasileiras.

Em Salvador, até o final dos anos cinqüenta, elas ocorreram. Os salões que as abrigavam, transformavam-se em palcos desses bem-vindos eventos e da arte de receber. Também em vitrinas da vaidade, onde damas e cavalheiros expunham suas melhores roupas e adereços: jóias trabalhadas em ouro ou platina, incrustadas de pedras preciosas, cujo valor ninguém se arriscava determinar. Tudo temperado pelas especiarias da mundanidade: o cochichar sarcástico, o blasonar, o mexericar, o bisbilhotar, o flertar, o comentar irreverencioso.

Como estava atrasada nossa cidade! O mundo, quando saído dos horrores da II Grande Guerra Mundial, mudava seus hábitos comportamentais. Havia uma dissensão, claramente abrangente, dos rígidos costumes vigentes até o meio do século anterior. Passou-se a respeitar mais a liberdade individual. O beijo na boca, em público, entre os casais, tornara-se medianamente aceitável. A gravidez prematura, antes do casamento, já não se constituía em bicho de sete cabeças. Os pais eram mais indulgentes com as filhas, neste estado. Não as expulsavam, como de hábito, de casa. Protegiam-nas. Os namoros eram mais tolerados. Dispensavam os olhares severamente críticos e admoestatórios dos maiores. O índex do Vaticano, catálogo elaborado pela Igreja proibindo aos católicos a leitura de determinados títulos literários, aos poucos, ia sendo revisto. As artes, teatro, pintura, escultura, experimentavam viço. Abordavam temas polêmicos, ousados. E os grandes responsáveis por essas mudanças eram os filmes feitos em Hollywood, os neo-realistas, produzidos pelos italianos e os noirs, franceses. Mostravam posturas senão imorais, porém picantes.

No Brasil, tais ventos liberalizantes, soprados no mundo com força de ventanias, viraram simples brisas. O que permitiu a Nelson de Souza Carneiro, deputado federal pela Bahia, posteriormente, por várias legislaturas pelo estado do Rio de Janeiro, ousar enfrentar a Igreja Católica, levando à consideração dos seus pares um projeto de lei instituindo o divórcio.

Nas terras do Senhor do Bonfim, do Nosso Senhor dos Navegantes, de Nossa Senhora da Conceição da Praia, das negras mandingueiras, das babalorixás, das iaôs, das mulatas avolumadas, donas de bundas e peitos de fazer inveja às branquelas desenxabidas, tísicas no físico, nem sinal daquela brisa. Tudo era uma pasmaceira só. A mesma rotina. Os mesmos hábitos. As mesmas línguas vituperinas a espalhar maldades. Ai da mocinha que aceitasse carona de um jovem ou de um senhor. Das mulheres que ousavam usar um vestido tomara-que-caia, mesmo complementado por um bolero. Das que se maquiavam em excesso. Das que passavam horas nas janelas ou nas portas de suas casas. Das rueiras, freqüentadoras assíduas da Rua Chile. Eram prontamente discriminadas, tachadas de “programistas”, vadias, prostitutas. Enfim, vagabundas.

Como em toda sociedade machista, só se passava a mão pela cabeça dos homens casados que mantinham amásias. As amancebadas, suas companheiras, não tinham o mesmo sortilégio. Viviam continuamente destratadas, isoladas em eternas e sucessivas quarentenas, como se fossem portadoras de moléstias contagiosas. Do mesmo estigma padeciam as desquitadas. Obrigadas ao confinamento por aquela situação civil, ao calabouço da solidão amorosa, até o fim dos seus dias.

Naqueles anos, principalmente os que se seguiram à segunda metade da década de cinquenta, vivi intensamente a minha cidade. Acompanhei a hipocrisia da sua sociedade.  O perverso desdenhar da elite, devotado ao menos aquinhoado.  A empáfia dos ricos, que por pura jactância, acendiam charutos cubanos ou suerdiecks, com notas de cem mil réis, como se designavam, no período, as de cem cruzeiros. Os trompaços da Igreja Católica, através do seu Cardeal, D. Augusto Álvaro da Silva, que, embora bom poeta e de inteligência rara, jamais distribuía platitudes a conhecidos ou amigos. Se é que os teve, não tergiversava com adversários, lançando contra eles quer o estigma da sua indiferença, quer a pena maior da Igreja: a excomunhão. Com o perdulário orgulho de certas famílias, via de regra repercutido como mantra, cujos antepassados, por vias escusas ou a um custo altíssimo, representado por vários sacos de moedas de ouro, tinham sido aquinhoados, no passado, com uma patente militar ou um título nobiliárquico. Eram, assim se nominavam, a família do coronel tal, ou a de um certo visconde ou barão. Na verdade, puros sangues azuis de araque.

Afora essas abjetas lembranças, minhas retinas guardaram a figura que melhor representava aquele maldito passado. A do carroceiro. Imagem que sempre remeteu-me a Fauno – faunus – antiquissimo deus de Roma, de natureza dúplice: meio-homem e meio-bode, com cornos e cascos.

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