DE
LUIZ
CARLOS FACÓ
Conheçam
Santinha (superficialmente)
Desde criança quando aprendi a escala
musical, a observar as pautas, a distinguir as chaves, as colcheias e
semicolcheias, as fusas e semifusas, ao olhar o céu sempre o vi como uma grande
partitura, cujos dós, rés, mis, fás, sóis, lás, sis eram as estrelas. E as
claves de sol, fá e dó, as constelações. Intrigava-me, contudo, só conhecer
poucos compositores que houvessem copiado algumas daquelas criações divinais.
Será que delas só se aperceberam Haydn, Mozart, Schubert, Chopin, Debussy,
Mendelssohn, Vivaldi, Verdi, Pixinguinha, Tom Jobim, Dorival Caymmi, Cole
Porter, e outros, por sinal, pouquíssimos? E os demais, por que não fizeram o
mesmo? Por preguiça de erguerem os olhos? Por considerarem a terra a
materialidade, o centro da vida, e o éter, o intangível, a utopia? Ou por
simples receio de embarcarem num veleiro espacial, rumo ao desconhecido, mesmo
sabedores de que lá fariam descobertas inacreditáveis, veriam universos
oníricos, paragens inconcebíveis? Ou por temerem imiscuir-se onde não foram
convidados, receosos de que, com suas presenças, pudessem embaçar a luz da lua
e afrouxar o brilho das estrelas? Ou intimidados pela polifonia que ele abriga,
desde o estrondear dos trovões aos sussurros das brisas e aos angustiantes
gritos das ventanias? Ou por ficarem paralisados ante a grandiosidade da
policromia que nele existe, desde o azul água ao azul mais escuro, o arco-íris
com as suas diversas cores, o cinza chumbo das nuvens carregadas, o vermelho, o
amarelo em seus matizes mais variados deixados pelo rastro do sol a caminho do
recolhimento?
Santinha jamais foi tomada por tais
apreensões. Ela adorava olhar o céu. Sua alma valsava quando os seus olhos
irrequietos, cujas pupilas pareciam dois sacis irreverentes e brincalhões,
passeavam pela abóbada celeste à procura de Vênus, das estrelas do Cruzeiro do
Sul, Andrômeda, da Via Láctea, da Lua escondida por detrás de nuvens cinzeladas
por angélicas figuras. Era como se o mundo fugisse-lhe aos pés. E as
preocupações do dia a dia dessem uma pausa à sua cabeça. Absorta naquele
contemplar de nebulosas e cometas, remetia-se ao encontro do imponderável, quem
sabe até de Deus, solfejando as músicas que eu creio escritas nas pautas do
céu. Se felicidade houvesse, mesmo em pequenos bocados, um daqueles, lhe
pertencia naquele instante. Não abria mão, enquanto pudesse, dessas ocasiões de
enternecimento, de magia, de copiosa ternura que lhe tomava o coração. Seriam
seus instantes de prece, de perscrutar a sua alma, de aspirar a vida, de
remover os escolhos que lhe atazanavam a caminhada? Não testemunho. Nada
afirmo. Ela jamais me confessou. Só sei que, após aqueles encontros dela com o
céu, eu a sentia de bem com a vida. Desinibida. Exalando do corpo, modelado
pelas carnes da concupiscência, um perfume feito de essências manipuladas pelos
boticários do céu, cujo olor deixava a todos, a seu derredor, em estado de
torpor. Lentos nas reações. Bambos nos pensamentos. Quiçá, algemados, para
sempre, a sua figura atraente, ao seu espírito eloquente.
E quantos deles não chegaram a se
apaixonar perdidamente por ela? Por sua pele alva, fina como a mais pura seda
da China. Por seu colo elegante, próprio de uma musa grega. Por seu corpo
esguio, sustentado por pernas trabalhadas, cuidadosamente, pelo mais talentoso
escultor jônico. Por suas mãos macias e dedos compridos como os de uma
pianista. Pelos seus cabelos castanhos, cacheados e volumosos, penteados como
os de Rita Hayworth, protagonista do filme Gilda - quem não se lembra daquela
figura? - derramando-se em cascatas, recobrindo sua nuca louçã. Dos seus seios
bem-delineados e tesos, exacerbados pelos ousados decotes dos vestidos que
usava. Apreciá-los ela o permitia, ocupá-los, sem conquistá-los, jamais. Pelas
suas palavras mansas e cadenciadas, ditas, as mais das vezes, sem ironias,
deboches, pronunciadas em tom de veracidade. Quem jamais a houvesse conhecido,
ao vê-la pela vez primeira, tinha certeza de estar diante de um ser onímodo.
Abrangente em excepcionais qualidades físicas. Uma mulher única.
Extraordinária. Sem reparos. Comparando-a a todas as beldades então existentes,
cuja perfeição de traços denotava o comprometimento dos deuses com a estética e
a harmonia das formas, aquela certeza se consubstanciava com mais robusteza.
Somava às suas tantas qualidades,
também a jovialidade, o prazeroso gosto de viver, o guardar no cérebro emoções
e sentimentos vividos intensamente - não emoções e sentimentos mumificados,
encerrados em sarcófagos, aleatoriamente lançados em algum canto escuro da
memória. Mas, nos seus salões mais nobres, feericamente iluminados, porquanto eram emoções e sentimentos,
continuadamente, vivos.
Santinha sempre foi uma romântica.
Convicta romântica. Porque, dizia ela, só os românticos têm a largueza de
agasalhar e apascentar reminiscências. Essa especificidade da sua natureza
ficava evidenciada por suas leituras. Compulsivamente lia Lucíola, Diva, de José de Alencar, Helena,
Iaiá Garcia, de Machado de Assis, Princess de Clevés, de Marie Pioche de
La Vergne, a Condessa Lafayette, ou autores que tinham o amor como tema. O
centro de suas tramas. Aqueles outros que jamais tiveram tal preocupação -
servindo-se daquele sentimento apenas como pano de fundo de suas histórias -
mesmo em sendo romancistas de excepcional criatividade e gênio como Dostoievski, Balzac e Tolstói, não
comichavam a sua alma. Podia até folheá-los, porém sem entusiasmo. No entanto,
quem quisesse vê-la de maus bofes, bastava indicar-lhe a leitura de qualquer
dos livros de Alexandre Herculano, de Mário de Morais Andrade ou de João
Guimarães Rosa - perdoem-na os
críticos e amantes desses autores. Exasperava-se, dizendo-os chatos,
reduzindo-os a pó. Sua indiferença, mais que isso, raiva daqueles escritores
era tamanha, que, conforme o dia seria capaz de se agastar com quem lhe fizera
tal proposição. Podia mandá-lo ao diabo. Ele que o carregasse.
Não fosse eu um autor compromissado
com a verdade, deixaria o leitor na suposição de que a nossa protagonista era
possuidora de todas as virtudes, uma vestal. Contudo como sou verdadeiro e
isento, jamais cometeria uma aleivosia tão descomunal. Por maior que tenha sido
a minha admiração por aquela mulher, obscurecer-lhe os desvios seria macular
esta história. Seria prostituir-me. E isso jamais o faria em nome de qualquer
causa. Portanto, amigos, não levem as observações que fiz inicialmente sobre
Santinha ao pé da letra. O continuar desta narrativa lhes dará uma visão mais
exata sobre ela. Espero.
Maria Santa d’Almeida de Valadares,
esse o seu verdadeiro nome, vivia, àquela época, o frescor dos seus dezoito
anos, prestes a sofrer nova vilania. Uma a mais que se somaria a tantas quantas
até ali sofrera. Por isso, embora lindíssima, vivaz, instruída, prendada,
passava por momentos de ansiosa expectativa, aperto no coração, descrença,
jogando ao léu todos os sonhos que acalentara, anos após anos, sem vislumbrar
qualquer possibilidade de safar-se de tão pesado fardo. Seu padrinho e tutor, o
comendador Cândido Almendra, em pleno século vinte, já se arrastando para
atingir a sua segunda metade, desejava casá-la com um rapaz que ela pouco
conhecia e indiferente aos seus cuidados e simpatia.
Para ela, aquela imposição era
demasiada. Soava-lhe como o desmoronamento dos planos que arquitetara a
implosão de todas as esperanças que tinha de ainda ser feliz, amada, desejada.
Até pensava que gozar felicidade era tão difícil como se acomodar,
confortavelmente, sob um lençol curto. Se cobrisse os pés, a cabeça ficava
descoberta. Se tentasse resguardar a cabeça, desnudava os pés. Uma situação
inconciliável.
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