sábado, 11 de outubro de 2014

CAPÍTULO I DO ROMANCE “AMOR ENTRE PÓ-DE-ARROZ E BATOM”

DE

LUIZ CARLOS FACÓ

Conheçam Santinha (superficialmente)


 Desde criança quando aprendi a escala musical, a observar as pautas, a distinguir as chaves, as colcheias e semicolcheias, as fusas e semifusas, ao olhar o céu sempre o vi como uma grande partitura, cujos dós, rés, mis, fás, sóis, lás, sis eram as estrelas. E as claves de sol, fá e dó, as constelações. Intrigava-me, contudo, só conhecer poucos compositores que houvessem copiado algumas daquelas criações divinais. Será que delas só se aperceberam Haydn, Mozart, Schubert, Chopin, Debussy, Mendelssohn, Vivaldi, Verdi, Pixinguinha, Tom Jobim, Dorival Caymmi, Cole Porter, e outros, por sinal, pouquíssimos? E os demais, por que não fizeram o mesmo? Por preguiça de erguerem os olhos? Por considerarem a terra a materialidade, o centro da vida, e o éter, o intangível, a utopia? Ou por simples receio de embarcarem num veleiro espacial, rumo ao desconhecido, mesmo sabedores de que lá fariam descobertas inacreditáveis, veriam universos oníricos, paragens inconcebíveis? Ou por temerem imiscuir-se onde não foram convidados, receosos de que, com suas presenças, pudessem embaçar a luz da lua e afrouxar o brilho das estrelas? Ou intimidados pela polifonia que ele abriga, desde o estrondear dos trovões aos sussurros das brisas e aos angustiantes gritos das ventanias? Ou por ficarem paralisados ante a grandiosidade da policromia que nele existe, desde o azul água ao azul mais escuro, o arco-íris com as suas diversas cores, o cinza chumbo das nuvens carregadas, o vermelho, o amarelo em seus matizes mais variados deixados pelo rastro do sol a caminho do recolhimento? 


Santinha jamais foi tomada por tais apreensões. Ela adorava olhar o céu. Sua alma valsava quando os seus olhos irrequietos, cujas pupilas pareciam dois sacis irreverentes e brincalhões, passeavam pela abóbada celeste à procura de Vênus, das estrelas do Cruzeiro do Sul, Andrômeda, da Via Láctea, da Lua escondida por detrás de nuvens cinzeladas por angélicas figuras. Era como se o mundo fugisse-lhe aos pés. E as preocupações do dia a dia dessem uma pausa à sua cabeça. Absorta naquele contemplar de nebulosas e cometas, remetia-se ao encontro do imponderável, quem sabe até de Deus, solfejando as músicas que eu creio escritas nas pautas do céu. Se felicidade houvesse, mesmo em pequenos bocados, um daqueles, lhe pertencia naquele instante. Não abria mão, enquanto pudesse, dessas ocasiões de enternecimento, de magia, de copiosa ternura que lhe tomava o coração. Seriam seus instantes de prece, de perscrutar a sua alma, de aspirar a vida, de remover os escolhos que lhe atazanavam a caminhada? Não testemunho. Nada afirmo. Ela jamais me confessou. Só sei que, após aqueles encontros dela com o céu, eu a sentia de bem com a vida. Desinibida. Exalando do corpo, modelado pelas carnes da concupiscência, um perfume feito de essências manipuladas pelos boticários do céu, cujo olor deixava a todos, a seu derredor, em estado de torpor. Lentos nas reações. Bambos nos pensamentos. Quiçá, algemados, para sempre, a sua figura atraente, ao seu espírito eloquente.

E quantos deles não chegaram a se apaixonar perdidamente por ela? Por sua pele alva, fina como a mais pura seda da China. Por seu colo elegante, próprio de uma musa grega. Por seu corpo esguio, sustentado por pernas trabalhadas, cuidadosamente, pelo mais talentoso escultor jônico. Por suas mãos macias e dedos compridos como os de uma pianista. Pelos seus cabelos castanhos, cacheados e volumosos, penteados como os de Rita Hayworth, protagonista do filme Gilda - quem não se lembra daquela figura? - derramando-se em cascatas, recobrindo sua nuca louçã. Dos seus seios bem-delineados e tesos, exacerbados pelos ousados decotes dos vestidos que usava. Apreciá-los ela o permitia, ocupá-los, sem conquistá-los, jamais. Pelas suas palavras mansas e cadenciadas, ditas, as mais das vezes, sem ironias, deboches, pronunciadas em tom de veracidade. Quem jamais a houvesse conhecido, ao vê-la pela vez primeira, tinha certeza de estar diante de um ser onímodo. Abrangente em excepcionais qualidades físicas. Uma mulher única. Extraordinária. Sem reparos. Comparando-a a todas as beldades então existentes, cuja perfeição de traços denotava o comprometimento dos deuses com a estética e a harmonia das formas, aquela certeza se consubstanciava com mais robusteza.

Somava às suas tantas qualidades, também a jovialidade, o prazeroso gosto de viver, o guardar no cérebro emoções e sentimentos vividos intensamente - não emoções e sentimentos mumificados, encerrados em sarcófagos, aleatoriamente lançados em algum canto escuro da memória. Mas, nos seus salões mais nobres, feericamente iluminados,  porquanto eram emoções e sentimentos, continuadamente, vivos.

Santinha sempre foi uma romântica. Convicta romântica. Porque, dizia ela, só os românticos têm a largueza de agasalhar e apascentar reminiscências. Essa especificidade da sua natureza ficava evidenciada por suas leituras. Compulsivamente lia Lucíola, Diva, de José de Alencar, Helena, Iaiá Garcia, de Machado de Assis, Princess de Clevés, de Marie Pioche de La Vergne, a Condessa Lafayette, ou autores que tinham o amor como tema. O centro de suas tramas. Aqueles outros que jamais tiveram tal preocupação - servindo-se daquele sentimento apenas como pano de fundo de suas histórias - mesmo em sendo romancistas de excepcional criatividade e gênio como Dostoievski, Balzac e Tolstói, não comichavam a sua alma. Podia até folheá-los, porém sem entusiasmo. No entanto, quem quisesse vê-la de maus bofes, bastava indicar-lhe a leitura de qualquer dos livros de Alexandre Herculano, de Mário de Morais Andrade ou de João Guimarães Rosa - perdoem-na os críticos e amantes desses autores. Exasperava-se, dizendo-os chatos, reduzindo-os a pó. Sua indiferença, mais que isso, raiva daqueles escritores era tamanha, que, conforme o dia seria capaz de se agastar com quem lhe fizera tal proposição. Podia mandá-lo ao diabo. Ele que o carregasse.

Não fosse eu um autor compromissado com a verdade, deixaria o leitor na suposição de que a nossa protagonista era possuidora de todas as virtudes, uma vestal. Contudo como sou verdadeiro e isento, jamais cometeria uma aleivosia tão descomunal. Por maior que tenha sido a minha admiração por aquela mulher, obscurecer-lhe os desvios seria macular esta história. Seria prostituir-me. E isso jamais o faria em nome de qualquer causa. Portanto, amigos, não levem as observações que fiz inicialmente sobre Santinha ao pé da letra. O continuar desta narrativa lhes dará uma visão mais exata sobre ela. Espero.

Maria Santa d’Almeida de Valadares, esse o seu verdadeiro nome, vivia, àquela época, o frescor dos seus dezoito anos, prestes a sofrer nova vilania. Uma a mais que se somaria a tantas quantas até ali sofrera. Por isso, embora lindíssima, vivaz, instruída, prendada, passava por momentos de ansiosa expectativa, aperto no coração, descrença, jogando ao léu todos os sonhos que acalentara, anos após anos, sem vislumbrar qualquer possibilidade de safar-se de tão pesado fardo. Seu padrinho e tutor, o comendador Cândido Almendra, em pleno século vinte, já se arrastando para atingir a sua segunda metade, desejava casá-la com um rapaz que ela pouco conhecia e indiferente aos seus cuidados e simpatia.

Para ela, aquela imposição era demasiada. Soava-lhe como o desmoronamento dos planos que arquitetara a implosão de todas as esperanças que tinha de ainda ser feliz, amada, desejada. Até pensava que gozar felicidade era tão difícil como se acomodar, confortavelmente, sob um lençol curto. Se cobrisse os pés, a cabeça ficava descoberta. Se tentasse resguardar a cabeça, desnudava os pés. Uma situação inconciliável.

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