segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

AS “LENDAS URBANAS” DESCARACTERIZAM A ORIGEM RURAL DO FATO FOLCLÓRICO

 Postado por Luiz Carlos Facó

A realidade oferece, diariamente, temas para que sejam criadas as estórias, transmitidas nas rodas de conversas, nas casas, alimentando o imaginário popular. As “lendas urbanas” são exemplos recentes de narrativas recorrentes, que circulam e até inspiram roteiros de cinema, ambientados nas grandes cidades, descaracterizando a origem rural do fato folclórico. A orientação dos pesquisadores do Folclore, contudo, deixou de considerar o imenso manancial, que é renovado constantemente, e que repete a capacidade de fabulação da gente brasileira. As anedotas, por exemplo, que motivam os ambientes e que revelam excelentes contadores, muitas vezes não passam de pequenas estórias, com estrutura narrativa, ordenamento clássico de princípio, meio e fim, como nos contos populares. O toque humorístico é o que caracteriza a anedota, ou a piada, ou ainda a paródia, sem, no entanto, inibir a criação literária em torno dos fatos.
O conto cotidiano, ligeiro, feito às pressas, motivado pelas circunstâncias, não é novo. Já no Manual do Visitante do Pobre há um exemplo citado, que bem demonstra as condições do narrador. Diz o livro Jesuítico, cuja autoria é atribuída a Concepción Arenal Carrasco: “Uma criança tem fome e frio, seus pais não podem socorrê-la. A criança sai à rua, estende a mão, ninguém lhe responde; diz ela então: tenho fome. Todos podem ver que o frio a faz tiritar, mas nenhum transeunte se compadece da pobre criança. Em tais emergências, esta lança mão do meio de exagerar os seus sofrimentos, semelhantemente, em meio de grande tumulto eleva a voz para se fazer ouvir. Diz que tem seis irmãos, que seus pais se acham no hospital, que é órfã, etc., etc. consegue com a mentira o que não conseguiu com a verdade.”
O caso parece uma luva, para facilitar a compreensão do problema. No caso brasileiro, sem querer expor sua dependência aos outros, sua carência de tudo, as pessoas do povo inventam uma estória e saem contando, nas ruas, nos mercados, nos pontos de ônibus, esperando que seu drama sensibilize os que podem. A saber pelo número de pessoas nas ruas, inventando e recriando estórias, exagerando a sua própria realidade, a fórmula é vitoriosa, faz sucesso e alimenta a quem se vale do expediente.
Diante da dor, do sofrimento, do choro, o brasileiro sempre se comove. Quem consegue parar, no trânsito diário das ruas, uma pessoa para ouvir uma história já é um vencedor e a depender da capacidade de simplificar, para aproveitar melhor o tempo, termina levando algum dinheiro para casa. Em todos os lugares estão os narradores de hoje, com suas estórias novas, cotidianas, tentando aliviar a barra pesada da vida sem perspectiva e sem futuro.
Essa tipologia do conto popular desobriga os pesquisadores de procurarem, nos guardados do povo, os exemplares das velhas histórias, velhos romances, velhas cantigas, velhos provérbios, como se a memória do mundo estivesse engessada, e que cada achado representaria, como na arqueologia, uma comprovação da existência do povo. Tal modo de pesquisar tem muito a ver com as características atribuídas ao fato folclórico por muitos teóricos e que no Brasil teve em Luiz da Câmara Cascudo o mais lido divulgador, dentre elas a da antiguidade. O Folclore como criação, ou recriação, ou ainda guarda popular, tem uma dinamicidade que atualiza as suas manifestações, preservando pelo uso, pela aceitação, pela empatia e por outras razões, aquilo que foi criado no passado.
O Brasil, que tem uma cultura de elementos transplantados durante o longo período de colonização, e que foi nos primeiros três séculos um laboratório de catequese e de conversão, guarda farto material carimbado como um passaporte, pela autoridades da Igreja. É natural, então, que sobrevivam fatos folclóricos, em grande quantidade, que fizeram a alegria das populações que viveram antes. Não significa, contudo, que o povo tenha deixado de criar, de viver sua experiência, de buscar no lúdico a expressão de suas realidades. É preciso fazer a ponte entre os repertórios de ontem e os de hoje, considerando que cada época tem sua estética, sua lógica sua história.
Vale acentuar que as pequenas estórias, apropriadas ao mesmo ritmo da vida moderna, têm a mesma importância que os contos recriados no ambiente Europeu e que circulam, ainda hoje na oralidade brasileira. O pesquisador que recolher, estudar, interpretar e divulgar os contos cotidianos tem o mesmo papel pedagógico de quando se debruça sobre material antigo, que integra muitas antologias, desde que tiveram início, na segunda metade do século XIX, as recolhas folclóricas. O preconceito contra os contos cotidianos deve acabar e a melhor forma de extingui-lo é valorizar o que o povo faz hoje. Em todos os campos da manifestação artística.
Dar atenção a quem conta uma estória, seja ela qual for, para sobreviver, para livrar-se de um problema, é um bom começo, é um estímulo, e contribui para preservar esse modo novo de narrativa, essa criação quase instantânea, essa linguagem coloquial que aproxima do ouvinte as possíveis verdades, tonalizadas com as cores mais chocantes, calculadas para comover, e, consequentemente, para produzir resultados imediatos, que é o ganho.
Tais contadores de estórias cotidianas se valem, também, da experiência da relação de ganhos do grupos e dos artistas populares, que exploram deficiências, ou singularidades, como o cego que toca rabeca, os meninos que acompanham o pai tocando gaita, e tantos outros artistas desvalidos, nas portas dos mercados, nas feiras, nas praças, vendendo suas próprias realidades, enquanto produzem uma estética especial, retratando o conjunto de realidades que marcam a vida brasileira. Não sem razão, o Manual sustenta em suas páginas que “O pobre tem um estória longa e triste. Que se refere sempre e prolixamente.” Hoje já é diferente, o pobre continua sofrendo, mas suas estórias são curtas, episódicas e são ditas na mesma velocidade da vida nas cidades.

Fonte:FOLCLORE – Invenção e Comunicação
Luiz Antônio Barreto 

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