Lenda ou história?
Autoconfiança ou
ingenuidade? Por que a expressão cavalo de troia se tornou largamente usada na
cultura popular?
O Cavalo de
Troia foi um grande cavalo de madeira usado pelos gregos durante
a Guerra de Troia, como um estratagema decisivo
para a conquista da cidade fortificada de Troia, cujas
ruínas estão em terras hoje turcas. Tomado
pelos troianos como um símbolo de sua vitória, foi carregado para dentro das
muralhas, sem saberem que em seu interior se ocultava o inimigo. À noite,
guerreiros saem do cavalo, dominam as sentinelas e possibilitam a entrada do
exército grego, levando a cidade à ruína. A
história da guerra foi contada primeiro na Ilíada de Homero, mas ali o cavalo não é mencionado, só aparecendo
brevemente na sua Odisseia, que narra
à acidentada viagem de Odisseu de
volta para casa. Outros narradores depois dele ampliaram e detalharam o
episódio.
O cavalo é considerado em geral uma criação lendária, mas não é
impossível que tenha realmente existido. Pode,
mais provavelmente, ter sido uma máquina de guerra verdadeira transfigurada
pela fantasia dos cronistas. Seja como for, revelou-se um fértil motivo literário e artístico, e desde a Antiguidade foi
citado ou reproduzido vezes incontáveis em poemas, romances, pinturas,
esculturas, monumentos, filmes e de outras maneiras, incluindo caricaturas e
brinquedos. Várias reconstruções
conjeturais do cavalo foram feitas em tempos recentes. Tornou-se também
origem de duas conhecidas expressões idiomáticas: "cavalo de Troia", significando um engodo destrutivo, e
neste sentido denomina atualmente uma espécie de vírus de computador, ou "presente grego", algo
recebido aparentemente agradável, mas que acarreta consequências funestas.
A guerra descrita
por Homero (na verdade, um cego contador de histórias,
passadas oralmente à população), foi recontada por vários outros
autores, antigos e modernos, que introduziram variações e expandiram a
história, mas, em resumo, o episódio do cavalo é como segue:
Os gregos se haviam coligado para assaltarem Troia e recuperar Helena, esposa
raptada de Menelau, rei
de Esparta. Depois de
um penoso e frustrante cerco de nove anos, a cidade permanecia inexpugnada,
protegida por altas muralhas, e aparentemente assim permaneceria. Ambos os
lados contavam com o auxílio de deuses. Atena, deusa da sabedoria, favorecia os gregos,
especialmente Odisseu. Este teria tido a ideia de criar o cavalo, e incumbiu
Epeu da tarefa, sendo ajudado por Atena. O cavalo foi construído com madeira,
possuindo um interior oco, onde um grupo de guerreiros deveria se esconder.
Simulando uma retirada, os gregos deixam o cavalo às portas da cidade e se
ocultam na ilha de Tenedos. Um grego, Sinon, deixa-se capturar e, com ardis,
induz os troianos a levarem o cavalo para dentro da cidade, o que fazem em meio
a uma grande festa. À noite, quando a cidade dorme, os gregos saem do cavalo e
facilitam a entrada de seu exército, que finalmente captura, saqueia e destrói
o baluarte.
O Cavalo de Troia foi mencionado pela primeira vez na Odisseia de Homero, em breves referências. Uma cena se
passa no palácio de Menelau, que oferece um banquete de núpcias para seu filho
e sua filha, que casavam na mesma ocasião. Em meio à festa, chega Telêmaco, que
procurava seu pai Odisseu, e senta
ao lado de Menelau, acompanhado de Pisístrato. Nisso
entra no salão Helena. O grupo, entristecido, começava a relembrar a Guerra de Troia, quando
Helena toma a palavra e lhes conta suas memórias. Depois disso Menelau,
confirmando o que ela contara, falou do cavalo, dizendo:
"Sim, em tudo
isso, esposa, disseste a verdade. Eu que viajei muito e cheguei a conhecer
muitos heróis, nunca meus olhos viram alguém como Odisseu. Que perseverança, e
que coragem ele mostrou dentro do cavalo de madeira, onde estavam todos os mais
bravos dos argivos esperando para levar a morte e a destruição aos troianos.
Naquele momento vieste a nós; algum deus que amava os troianos te mandou,
trazendo contigo Deífobo. Três
vezes tu andaste em volta do nosso esconderijo; tu chamaste nossos capitães
cada qual por seu nome, imitando as vozes de suas esposas - Diomedes, Odisseu e
eu, de nossos assentos, ouvimos o que dizias. Diomedes e eu não conseguíamos
decidir se devíamos sair, ou se responder, mas Odisseu nos impediu, de modo que
permanecemos em silêncio, exceto Ânticlo, que estava prestes a falar-te, quando Odisseu
tapou-lhe a boca com suas mãos. Isso nos salvou a todos, até que Atena te fez
ir embora".
Demódoco
canta a história do cavalo diante de um Odisseu emocionado (à direita).
Ilustração de John Flaxman
Em outra passagem,
Odisseu pede ao bardo Demódoco que
narre a história do cavalo. O bardo tomou o episódio no ponto em que alguns
argivos haviam posto fogo em suas tendas e partido em seus navios, enquanto
outros, ocultos dentro do cavalo, estavam esperando com Odisseu. Os troianos
carregaram o cavalo para dentro de sua fortaleza, onde permaneceu enquanto
decidiam o que fazer com ele. Uns queriam destruí-lo; outros queriam levá-lo
até o alto da cidadela e
precipitá-lo do penhasco, enquanto outros preferiam conservá-lo como uma
oferenda propiciatória aos deuses. Decidindo por esta última alternativa,
selaram seu destino. Mais adiante, quando Odisseu está no Hades em
busca do conselho de Tirésias sobre
como voltar para sua Ítaca natal,
encontra o fantasma de Aquiles, que fala
sobre Neoptólemo:
"Quando todos
os mais bravos dos argivos estavam dentro do cavalo que Epeu havia criado, e
quando tocou a mim decidir a oportunidade de abrir ou fechar a porta para nossa
emboscada, embora todos os outros chefes entre os dânaos (gregos) estivessem
enxugando seus olhos e tremendo em todos os seus membros, nunca o vi
empalidecer ou derramar lágrimas de medo; ele em vez estava sempre urgindo que
eu abrisse o cavalo e, de espada em punho, e com a lança de bronze,
investíssemos em fúria contra o inimigo".
Outros poetas
arcaicos também falaram do cavalo, como Arctino, em
sua A Destruição de Troia, e Lesques, na Pequena Ilíada, mas suas
obras originais se perderam, sobrevivendo somente no sumário Epicorum Graecorum Fragmenta, de um
certo Proclo, possivelmente Eutíquio Proclo. Uma
referência adicional se encontra na tragédia As Troianas, de Eurípides,
quando Posidão diz:
"De sua casa sob o Parnaso, Epeu,
o fócio, ajudado
pelas artes de Atena, criou um cavalo para abrigar em seu ventre uma hoste
armada, e o enviou para dentro das muralhas, carregado de morte; um dia os
homens falarão do cavalo de madeira, com sua carga oculta de guerreiros".
Um relato mais
detalhado, porém, se encontra no Livro II da Eneida, de Virgílio. Num
banquete Eneias relata
a Dido os
sucessos da guerra. Depois da falsa retirada dos gregos, vendo a praia deserta,
os troianos abrem os portões da cidade e se deparam com o imenso cavalo. Timetes tem a
ideia de levá-lo para dentro dos muros, mas Cápis e
outros receiam alguma armadilha, e imaginam mais avisado queimá-lo, ou
averiguar o que trazia em suas entranhas. Enquanto a multidão debatia o
que fazer, o sacerdote Laocoonte chega
apressado e alerta:
"Míseros
cidadãos, quanta insânia! Estão de volta os gregos, ou julgais que seus
presentes são livres de engodos? Desconheceis o caráter de Ulisses? Ou
este lenho é esconderijo de inimigos, ou é máquina que, armada contra os muros,
vem espiar e acometer-nos. Teucros (troianos), seja o que for, há dano oculto:
desconfieis do monstro! Temo os dânaos mesmo quando dão presentes!".
Sinon é
trazido para diante de Príamo. Iluminura no Vergilius Romanus
Dito isso, arremete
contra a obra uma lança e tenta fazer com que a destruam. Neste momento alguns
pastores trazem para diante de Príamo, rei de
Troia, um jovem prisioneiro grego, Sinon, que a propósito se deixara capturar.
Fingindo e chorando, implora por asilo, dizendo ser um fugitivo proscrito. A
turba se comove, o grego se anima, e prega-lhes um discurso astuto. Diz que seu
pobre pai, sem recursos, o havia confiado ao famoso Palamedes para
que o educasse. Contudo, por intrigas de Ulisses, Palamedes fora acusado de
traição e morto, sofrendo também Sinon, que Ulisses cobriu de suspeitas e
imputou-lhe crimes jamais cometidos. Para si, porém, o injustiçado jurara
vingar-se, e ao tutor, se porventura voltasse vivo para casa. Continuando, num
gesto retórico, oferece-se como vítima voluntária para a ira troiana.
Espantado, o povo em redor quer saber mais, e ele consente. Relata que os
gregos, cansados desta batalha infrutífera levantaram o cerco, mas viram sua
tentativa de retorno impedida por tormentas marinhas e sinais nos céus. Para
conhecer a vontade dos deuses, enviam Eurípilo para
um oráculo. Este
exige uma morte, compensatória do sacrifício de uma virgem que haviam feito no
início da empreitada a fim de obter ventos favoráveis. A má sorte teria recaído
sobre Sinon. Atado e vendado para o ritual sangrento, rompe as amarras e foge,
quando é encontrado e preso pelos troianos. Outra vez, alega inocência e
implora a compaixão dos inimigos.
Sua encenação é
convincente, amolece-os, perdoam-no. É solto e recebido como um deles, e logo
querem saber qual o motivo da construção maravilhosa. Assim, o ardiloso diz
considerar-se livre da lealdade para com sua antiga pátria, invoca os deuses
como testemunha e, amaldiçoando os gregos, acrescenta que o cavalo havia sido
construído por ordem expressa de Atena, para desagravar a profanação do paládio troiano, imagem consagrada à deusa e roubada
antes por Ulisses e Diomedes, crime pelo qual não teriam sucesso na guerra.
Além disso, construíram-no de modo a que não pudesse, por seu tamanho, passar
pelas portas da cidade, para que jamais fosse tomado pelos troianos,
tornando-se um novo paládio. Se isso acontecesse os gregos conheceriam a
vingança divina, e Troia, a glória.
Laocoonte e
seus filhos atacados pelas serpentes, à esquerda, e o cavalo sendo levado para
a cidade, ao fundo. Gravura de Giovanni
Battista Fontana
À parte, Laocoonte
sacrificava um touro a Netuno, quando de Tenedos oportunamente saem duas
serpentes monstruosas, que matam o sacerdote e seus dois filhos e em seguida se
refugiam no templo de Atena. Apavorados, os troianos veem no prodígio um sinal
dos céus e acreditam que a deusa o punia por ter profanado a oferenda com a
lança. Nada mais faltava para que os troianos acreditassem na história de
Sinon, rasgassem uma brecha na muralha e levassem o cavalo para a cidade, em
meio a uma grande festa. Cassandra, filha do
rei Príamo, tinha o dom da profecia e prevê a catástrofe iminente, mas por
antiga maldição de Apolo suas
profecias nunca eram levadas a sério. A noite cai, dorme o povo, embriagado.
Sinon abre o cavalo, seus companheiros saem e matam os vigias, e dão um sinal
para o exército escondido em Tenedos, que se aproxima, invade a cidade, a
saqueia e deita-lhe fogo, em meio ao massacre dos seus habitantes.
A história foi
repetida com variações por escritores tardios, como Quinto de Esmirna, Higino e João Tzetzes. Quinto
disse que no cavalo penetraram trinta homens, e o Pseudo-Apolodoro, que foram
cinquenta. Apolodoro também deu outros detalhes: atribuiu a Ulisses a
ideia de construir o cavalo, e a Apolo o envio das serpentes; disse que o
cavalo portava a inscrição "Para seu regresso à pátria, os gregos dedicam
este cavalo a Atena", e mudou um pouco a ordem dos eventos. Trifiodoro, em A Tomada de Ílios, deixou a
mais longa e elaborada versão conhecida, demorando-se em detalhes sobre a
construção e o aspecto do cavalo, que, segundo narra, era uma obra de arte
impressionante, dotada de beleza e graça, suscitando a admiração dos
troianos. Tinha os arreios adornados de púrpura, ouro e marfim, seus olhos
eram rodeados de pedras preciosas, e sua boca, com alvos dentes, se abria
conduzindo a um canal para ventilação interna, para que os guerreiros ocultos
não fossem asfixiados. O corpo era poderoso, e curvo como um navio; atrás, sua
cauda volumosa descia ao chão em tranças e faixas. Os cascos de bronze, munidos
de rodas, sustentavam pernas que davam a impressão de se mover. Tão bela e
aterradora era a criação que Ares não
hesitaria montá-la se fosse viva. Para manter os homens nutridos e não
fraquejassem no momento decisivo, Atena lhes deu ambrosia.
O assédio
de Gezer, mostrando
um possível protótipo para o Cavalo de Troia. Reprodução de mural no Palácio do
Sudoeste, Nimrud, realizada por Austen
Henry Layard
Embora seja
bastante possível que a Guerra de Troia tenha ocorrido,9 o
famoso cavalo, na forma como ele foi descrito pelos antigos, provavelmente é
uma lenda, mas pode ter sido algum aparato real transformado fantasiosamente
pela tradição.10 11 Na
Antiguidade o "cavalo" era uma derivação de uma máquina de guerra,
o aríete, muitas
vezes construído na forma de um animal. Os assírios costumavam
usar máquinas deste tipo, e é possível que o exemplo tenha sido tomado pelos
gregos. Também foi interpretado como uma metáfora de
um terremoto, uma das
causas possíveis apontadas para a destruição da Troia histórica, considerando
que Posidão era o deus dos cavalos, do oceano e dos terremotos.
Outra sugestão é
que o cavalo na verdade era um barco, e foi assinalado que os termos usados
para colocar os homens no seu interior eram os mesmos que descreviam o embarque
da tripulação de navios. Na tradição clássica os
navios são às vezes chamados "cavalos do mar". Na Odisseia, Penélope,
lamentando a ausência de Telêmaco, diz: "Por que meu filho me deixou? O
que tinha ele de fazer para viajar em navios que jornadeiam longamente sobre o
mar, como cavalos marinhos?". Na comédia Rudens, Plauto diz:
"Você é carregado pelas estradas cerúleas (o mar) sobre um cavalo de
madeira (navio)".
Uma das mais
antigas representações do Cavalo de Troia é encontrada no chamado Vaso
de Míconos (ilustrado
na abertura deste artigo), datado do século VIII a.C. Outros
achados mais ou menos da mesma época, como uma fíbula em
bronze da Beócia, e
cerâmicas procedentes de Atenas e Tenos, todos fragmentários, são similares no desenho, e
podem se referir a protótipos bem mais antigos, como os aparatos de guerra
assírios, com um desenho zoomórfico e quadrúpede, rodas e janelas. Guerreiros
armados se colocavam no centro da máquina e usavam sua cabeça elevada para
escalar muralhas, enquanto outros manipulavam um aríete na parte inferior. O
motivo se tornou popular entre gregos, helenistas e romanos, sendo
encontrado em inúmeras variações em vasos, relevos, gemas e pinturas,
incluindo iluminuras, como a
que consta no manuscrito Vergilius Romanus. Em Atenas existiu
uma gigantesca estátua em bronze do famoso cavalo, obra de Strongylion, instalada
no santuário de Ártemis
Braurônia da Acrópole, que mostrava vários guerreiros em seu interior,
da qual ainda sobrevive o pedestal, e Polignoto o
representou em um grande mural na Stoa Pintada.
Ao longo dos
séculos seguintes o Cavalo de Troia continuou fornecendo inspiração para muitos
artistas visuais e literatos, constituindo um dos temas mais trabalhados da
tradição épica, penetrando
inclusive em regiões asiáticas como a Arábia e o
norte do subcontinente indiano, que estiveram sujeitas à influência
clássica. Paul Barolsky o considera o ancestral de todos os monumentos
equestres. Entre os artistas notórios que deixaram obras sobre ele se
contam Lívio Andrônico, Névio, Tiepolo, Giulio Romano e Lovis Corinth. Continua
sendo um tema para vários artistas contemporâneos de todo o mundo, a exemplo
de Christopher Morley, Archibald MacLeish, George Nick, Christopher Wool, Willie Bester, Heri Dono, Marcos Ramirez ERRE, Epaminondas Papadopoulos, Charles Juhasz, e deu
nome a um grupo de artistas de Porto Rico, engajado
no ativismo social. Operação Cavalo de Troia é o título de
uma série de nove livros ficcionais de Juan José Benítez, que alcançou considerável sucesso internacional.
No século
XVII o inglês John Bushnell tentou
provar a possibilidade do cavalo realizando uma reconstrução hipotética, que
seria tão grande que seis homens sentados em volta de uma mesa caberiam dentro
da sua cabeça, mas ela acabou sendo destruída por uma tempestade antes de
terminada.41 Outra
foi criada em 1707 para uma suntuosa apresentação de uma peça teatral de Elkanah Settle, com cerca
de 5 m de altura, toda dourada, de onde saíram quarenta guerreiros armados.
Guerra de
Troia
Hoje existem pelo
mundo vários "cavalos de Troia" modernos, com aparências muito
diversificadas. Entre eles pode-se citar o de Çanakkale, criado
para o filme Troia, de Wolfgang Petersen, o
de Praga, o
dos Forum Shops no hotel Caesars Palaceem Las Vegas, e o
que está na fronteira entre México e Estados Unidos.
A expressão "cavalo de Troia" se tornou largamente usada
na cultura popular, sempre com o sentido de um artifício astuto,
enganoso e perigoso, que possibilita a penetração dissimulada em território
inimigo, e é a origem da expressão "um presente grego", quando
recebemos algo de aparência agradável, mas que produz más consequências. Denomina uma técnica de negociação baseada
na mentira, uma estratégia militar
deceptiva usada em inúmeras variantes por exércitos desde a Antiguidade, e um
tipo de vírus de computador que se disfarça como um programa legítimo para
ganhar acesso às máquinas dos usuários e iniciar a destruição dos programas
instalados, roubar senhas e operar danos de outras naturezas. Tornou-se
também um motivo de piadas e caricaturas e foi
transformado em brinquedos para crianças.
Nenhum comentário:
Postar um comentário