quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A CAMINHO DO INFERNO VERDE


Série de reportagens de Ariadne Araújo, publicada
em suplemento especial  do jornal O POVO, Ceará.


O sacrifício pela Pátria começava na viagem. Em caminhões, trens de cargas e navios, os migrantes passaram meses de maus tratos até a Amazônia. O medo de um ataque fulminante por submarinos alemães era o terror em alto mar.

Em carrocerias de caminhões, em vagões de trem de carga, na terceira classe de um navio até o Amazonas. A viagem dos arigós era difícil. De Fortaleza até o seringal, por exemplo, podia demorar mais de três meses. Pior que o desconforto, só o perigo de ir a pique no meio do mar. Afinal, em tempos de guerra, era comum a notícia de ataques de submarinos alemães. Para prevenir, os soldados da borracha recebiam instruções e um colete salva-vidas. Em caso de naufrágio, nos bolsos internos, havia uma pequena provisão de bolacha e água. Em caso de captura pelo exército inimigo, uma pílula de cianureto. Era escolher entre o suicídio e a prisão inimiga.

Durante o percurso, valia a lei do blecaute para os soldados da borracha. Proibido fumar ou acender sequer um palito de fósforo. Os navios cheios de arigós eram comboiados por dois caça-minas e um avião torpedeador. Estratégia de segurança para prevenir o ataque alemão. Uma luzinha no mar significava alvoroço a bordo. Marinheiros e binóculos no convés. Terror entre os passageiros que não sabiam nadar. Além do susto, mau trato. Aos migrantes, era oferecida uma alimentação péssima e reduzida. No relento - em muitos casos famílias inteiras -, eles pensavam que outros perigos e dificuldades ainda viriam.



Do Lloyd Brasileiro, o maior navio de transporte de passageiros e cargas da época, para os Gaiolas. Essas embarcações menores, construídas na Inglaterra, EUA e Holanda, levavam os soldados e mercadorias até os seringais. Os de maior porte e melhores acomodações - dois conveses - eram chamados de Vaticanos. Os de fundo chato tinham o apelido de Chatas. Afora esses barcos, os arigós viajavam também de lanchas, as Higgins, construídas por trabalhadores brasileiros sob o patrocínio financeiro dos americanos. Junto a bois ou material inflamável, apertados em uma promiscuidade desumana, milhares de nordestinos saiam do mar para os rios que comandam a vida no Norte.

O alfaiate João Rodrigues Amaro, 72, deixou uma namorada em Sobral, norte do Ceará. Pra quem costurava um paletó por dia e ganhava 60 cruzeiros, a viagem para o “El Dorado'' era certeza de ficar rico. A tropa que saiu com ele, pegou o caminhão cantando uma despedida. Eles repetiram o refrão até cansar e perceber que as coisas não eram bem como Getúlio Vargas dizia. Mas só depois de dois dias em pé, numa carroceria de caminhão e estrada ruim até Teresina (PI); outro trecho em pé ou sentado em vagão ou no lastro de trem Maria-Fumaça até Croatá e Maracanã (MA).

Do Maranhão ao Pará, a viagem de navio fez muita gente vomitar, enjoar e adoecer. No navio Pedro I, onde João Amaro embarcou, iam mais 1.200 nordestinos. Muitos soldados levavam as famílias para a Amazônia. Mas o alfaiate foi só, pensando no ouro branco e na namorada que acabou casando na ausência dele. Em Belém, a tropa passou 22 dias esperando um Gaiola para a descida ao seringal. Espera demorada de transporte era sinal de problemas nos alojamentos.

No pouso do Maranhão, por exemplo, a comida ruim causou um motim. Zé Doutor, um amigo de João Amaro, foi morto por um soldado da guarda por causa da reclamação na hora do almoço. Revoltados com o assassinato, cerca de dois mil homens se rebelaram e foram a pé de Maracanã a São Luís, no Maranhão. Quase uma hora na estrada. O exército levou metralhadoras para acalmar o pessoal. O negócio era botar a tropa toda, e rápido, num navio para Belém. Mas nem sempre isso era possível. O que normalmente acontecia eram longos e enervantes dias de convivência em pousos, nas cidades com postos de baldeação. 


Diferentes do construído em Fortaleza, cidade sede da arregimentação, alguns alojamentos foram levantados em zonas de malária, como os de Belém e de Manaus. Barracões sem tabiques divisórios compartilhados por homens, mulheres e crianças. João Amaro ficou em um pouso onde o banheiro coletivo era uma vala comum com dois metros de profundidade e 20 metros de comprimento. Para utilizar a fossa improvisada, a pessoa teria que se equilibrar em dois paus deitados sobre a abertura da vala. O soldado da borracha conta que, devido ao incômodo da posição e aos riscos que a operação exigia, vez por outra alguém caía no buraco. Nesses casos, não raros, o desastrado era puxado por uma corda.

Desordens. Brigas. Desacatos. O exército da borracha chegava à metade da viagem com os nervos a flor da pele. Os alojamentos eram cercados e vigiados, mas as liberações para um passeio na cidade representavam problemas com a população. Segundo João Amaro, os cariocas, em menor número, porém mais afoitos, eram os piores. Nas ruas, beijavam as moças à força e criavam confusão. Os jornais denunciavam: não são a fina flor do sertão, mas a lama do asfalto, o rebotalho, roubando, matando, saqueando e ferindo. Era essa a fama do exército que Getúlio Vargas mandou buscar na caatinga nordestina.

Um órgão, o Serviço de Navegação e Administração dos Portos do Pará (Snapp), ficou com a responsabilidade do transporte dos soldados voluntários. O ministro da Mobilização Econômica para o Esforço de Guerra, o tenente-coronel João Alberto Lins de Barros fez as contas: o recrutamento e transporte de homens para a Amazônia sairia a US$ 100 por cabeça. Além dos cálculos, ele tinha um plano. Transportar, sob uma firme disciplina militar, a tropa numa marcha para pontos estratégicos descendo pelo Tocantins até a Amazônia. 


A idéia era construir 40 pontos de pouso para alimentação, banhos e dormida, além de inspeção e assistência médica. O próprio ministro afirmava já ter atravessado essa área - 600 milhas - a pé. O diretor da Rubber Reserve Company (RRC), D. Allen chamou a proposta de blefe de mau gosto. As críticas mostraram que a rota do Tocantins era inviável e massacrante. O escoamento deveria ser feito pela rota Nordeste: Fortaleza, São Luís, Belém. Na ocasião, o ministro João Alberto perdeu a discussão, mas ganhou vários ``afilhados'', batizados com seu nome, filhos de soldados da borracha que nasceram durante a arregimentação, nos alojamentos do Semta.

Em Fortaleza, onde o trabalho cresceu, o ministro João Alberto realizava missas campais para soldados e familiares. O padre Tiago Zuarthoad era o assistente eclesiástico do Semta. A benção era notícia no jornal Unitário no dia 31 de março de 1943. Na reportagem, o redator conta que o bota-fora dos soldados era feito em meio a ``vivas''. Pelo acordo, as famílias dos voluntários também seriam amparadas, com alimentos, escolas e assistência médica. Mas isso não aconteceu. Todo o interesse se concentrava no transporte imediato dos homens para a Amazônia. Uma passagem só de ida, onde nada que foi prometido valeu.

Na volta, depois de pagar a dívida com o patrão no seringal, além da namorada, João Amaro encontrou também a mãe casada. Dois anos na Amazônia tinham lhe rendido uma ficha com malária, febre amarela, impaludismo, icterícia. A mãe não reconheceu o filho. Magro, amarelo e cabeludo, nem de longe ele se parecia com o adolescente que se inscreveu escondido no exército da borracha. ``Sai atrás de dinheiro e voltei pobre e doente''. (Ariadne Araújo)

Propaganda ideológica

A tempestade de propaganda é imperativa: Trabalhador nordestino! Alista-te no Semta hoje mesmo e cumpre teu dever para com a Pátria. Esse tipo de convocação era característico do Estado Novo, com uma política centralizada, condutor de massas, aglutinando sentimento cooperativista que se volte para o trabalho e produção. Os cartazes, desenhos, fotografias e gráficos sobre o Semta e a borracha estavam em vários pontos de Fortaleza e outras Capitais do Nordeste. O material estava na vitrine das casas comerciais, Correios, Banco do Brasil, estações ferroviárias e Palácio do Governo.

A intenção era confundir a condição de trabalhador com a de soldado. Os campos de trabalho passam a ser campos de batalha. Os termos exército, alistamento, recrutamento, soldado, batalha, guerra estão sempre presentes. Em cadeia nacional, o Programa da Borracha garantia o envolvimento político dos ouvintes. Nas ruas, as vantagens do Semta eram divulgadas em panfletos. A propaganda dizia que os migrantes teriam direito a 60% da borracha produzida, 50% da castanha colhida, 50% da madeira derrubada, direito livre à caça, à pesca, às peles de animais silvestres abatidos e ainda a um hectare de terra para plantar.


O contraste entre a seca e a Amazônia é reforçado. Era preciso convencer o cidadão de que a floresta não representava mais o inferno verde, mas a terra da promissão. O sonho do paraíso contagiou as tropas que lotavam os caminhões. Em comboio, a cada partida, eram uma média de 10 a 12 carros lotados. Seguindo atrás, um último caminhão levava mantimentos para a viagem. Embora a campanha fosse nacional, o Ceará era o espaço ideal para o discurso.

Um trabalho educativo sobre cuidados com o corpo - boa alimentação, higiene, exames médicos periódicos -, também foi realizado. Afinal, era importante que os voluntários tivessem boa disposição e saúde de para o trabalho duro da extração do látex. A proteção à família dos voluntários funcionava como um estímulo: o trabalhador viajava despreocupado. A Igreja também participava da campanha. O padre Tiago Zuarthoar, o eclesiástico do Semta, dava assistência religiosa aos voluntários e famílias. (AA)

Medo e preconceito com a chegada dos nordestinos

``Tudo ladrão e assassino. Tudo do calibre de Lampião. Só carabina pra lidar com arigó''. Armédio Said Dene, 81, filho de libanês, foi dono de cinco seringais no Acre. Para ele, a borracha só trouxe dor de cabeça. Em épocas de glória, Said Dene até comprou apartamento no Rio de Janeiro. O suficiente para garantir uma velhice tranquila. O barco, utilizado por ele para comercializar mercadoria nos rios, no entanto, está sucateado. Hoje a produção nos seringais, ainda em nome dele, é zero. ``Tenho é prejuízo com os impostos pagos ao estado. Tudo perdido. Em tempos bons eram 120 toneladas de látex por ano''.


O fim do último ciclo da borracha na Amazônia acabou, inclusive, com os sonhos da família Said de voltar à Síria em definitivo. O preço da borracha despencou e foi um salve-se quem puder. Os nordestinos foram liberados e Said guardou, por exemplo, a velha espingarda com a qual enfrentava o “cangaço'' dos arigós. “Era nós ou eles''. Era esta a maneira geral do patrão tratar o seringueiro. O preconceito se fortaleceu já na chegada dos migrantes ao Norte do País, por causa das brigas e confusões em que a tropa se envolvia. Na época, a população de Manaus via com insegurança e medo a chegada das famílias nordestinas.

Eles lutavam sem medo
Ferozes como um leão, quando a noite
Baixava o degredo, o véu da escuridão
Eles olhando o firmamento
A Deus pediam proteção. 

(RN)

Nenhum comentário:

Postar um comentário