Crônica de Luiz Carlos
Facó
A Bahia não
é um opúsculo. É, no mínimo uma enciclopédia. Prólogo de todos os
acontecimentos da vida brasileira. Não é a cena introdutória do dramático ou do
funesto, como ocorria na primeira parte das peças representadas no antigo
teatro grego. É o prefácio do alvorecer. Senhora de um grandioso porvir. Do
culto às artes, em particular, o canto, a dança e a literatura. Em suas terras
nasceu o Brasil. Nelas se fundou a primeira cidade do país, mantida por
duzentos e muitos anos como sua capital. Foi, em seu território, que se
travaram batalhas sangrentas pela consolidação da independência do Brasil. Nele
foram gerados nomes que glorificam a cultura nacional: Gregório de Matos, o
poeta satírico, chamado pelo povo como “boca do inferno” ou “poeta
maldito”, Rui Barbosa, Carneiro Ribeiro,
Castro Alves, Pedro Calmon, João Mangabeira, Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro,
de tanto coleguismo, muitas farras e solidariedade (comunhão de irmãos), tantos
quantos os incontáveis pássaros que voejam, em bandos, à procura de sítios
fartos em alimentação e água. Também, este rincão abençoado, berço da cultura
nacional, o é do sincretismo religioso e da absorvente, e um tanto mágica, da
etnia brasileira. Dada à luz pela perfeita miscigenação do nego, do índio e do
branco, que pariram uma gente generosa. Afável, sorridente. Festeira. Cúmplice.
Exacerbada nas expressões físicas para demonstrar alegria e prazer.
Trabalhadora, inventiva. Capaz de arrumar um jeitinho para solucionar uma
quizila. Inteligente. Seu biótipo atrai a todos pela beleza e sensualidade que
dele emanam como são atraídas as abelhas pelo néctar das flores. Apta, a um só
tempo de crer em Deus e em crendices. De sagacidade insuspeita. Possuidora da
tolerância que não beira a decrepitude. Possuidora não precisa esconder de
todas as mazelas e vícios da humanidade. Pudera! Ninguém é perfeito.
Escreveu, um
dia, Machado de Assis: “Virtudes inteiriças são invenções de poetas”.
O mais
atraente desta terra de Rui Espinheira, Hélio Contreiras, Hélio Pólvora, Milze
Soares Eon, Cid Teixeira, Joaci Góes, Julival Góes, irmão por capilaridade,
Paulo Segundo, um mestre em que procuro me espelhar, Oleone Coelho Fontes,
escritor que merece a láurea de imortal, Hélbio Palmeira, jurista, meu
compadre, mas de qualidades imanentes e inacreditáveis, Miriam Fraga, João Carlos
Teixeira Gomes, o “pena de aço”, João Erico Matta, cuja genialidade
encaminhou-me ao exercício da arte literária quando ainda éramos adolescentes,
Waltinho Queirós, o sucessor de Caymmi, Jayme Barbosa, o cronista mor da Bahia
do século XX, que era todo encantamento, despertando até os mortos com seus
achados. É a absoluta teimosia do seu povo em preservar suas tradições, embora
algumas delas, tenham se dissipado como se esvaem as brumas do amanhecer. Haja
vista a Procissão do Fogaréu, o Bando do Rio Vermelho, a Segunda-feira Gorda da
Ribeira. De resto, a maioria está intocada, como a Lavagem do Bonfim, os
arrasta-pés e fogueiras de São João,, o Terno de Reis, a Festa de Iemanjá e a
preservação dos topônimos das antigas ruas de Salvador.
Debruçado
sobre o último tópico, encontrei pérolas. Pau Miúdo, Curva Grande, Rua do Céu,
Rua da Oração, Rua do Tira-chapéu, Rua da Forca, Rua do Passo, Rua dos Quinze
Mistérios Rua Rio da Bângala, Rua da Mouraria, Largo das Sete Portas, largo do
Pelourinho, Terreiro de Jesus, Largo da Mariquita, Itapuã, Abaeté, Matatu,
Pirajá, Barris, Posto dos Tainheiros, Fonte do Gravatá, Fonte da Muganga, Fonte
da Mãe D’Água, Bairro de Itapagipe, Buraco da Gia.
Denominações
ora singelas, ora obedientes ao idioma tupi, muitas vezes homenageando um fato
histórico, outras tantas seguidoras de meras conotações religiosas. O melhor
desse périplo foi conhecer a história e o folclore gerado por conta desses
locais tradicionais. As novas gerações, por exemplo apropriaram-se de narrações
criadas pelas antigas. Uma dessas diz: as mulheres da Curva Grande jamais se
casam com os homens do Pau Miúdo. Nesse mesmo sentido, outra reporta: não tem
mulher que não conheça, no bairro, o Pau de Lima. Só que, nesse caso, a
irreverencia popular trocou a contração “da” pela preposição “de”. Daí...
Já ouvi de
muitos a afirmação de que qualquer pesquisa sobre o tema é um exercício
prosaico. Egoísta, pois o pesquisador visa, ao acúmulo de saber, desde que a
proposição é irrelevante como substrato cultural, para a grande maioria da
sociedade. Não vejo assim. Eu, quando a ela me propus, pensei na democratização
das informações recolhidas. Em separar os dados verdadeiros daqueles que se
tornaram, através da tradição oral, mero folclore, contos da carochinha. Enfim,
em impregnar no coração da gente o amor por essas designações, que fazem parte
desse criativo modo de ser baiano.
Foi com esse
afã que meu mestre, Cid Teixeira e eu, descobrimos sobre a Rua do Tira-chapéu.
Conta a lenda, adotada como verdadeira por muitos historiadores, que sua
alcunha deveu-se ao fato da proximidade dela à Casa dos Governadores. Essa
vizinhança obrigava os passantes, em sinal de respeito aos moradores daquela
descobrir-se, tirassem seus chapéus. Na verdade, as pesquisas que realizamos
nos revelou história diferente. Seu batismo deveu-se à circunstância do regime
de ventos existente na área, provocador da derrubada dos homens e das mulheres
– essas, além do derrube dos chapéus, eram surpreendidas pelo levantamento de
suas saias – que por ela teimavam transitar.
Da Rua do
Bângala, descobri ser assim apelidada em homenagem ao português Baltazar de
Aragão. Homem rico, cuja fortuna foi obtida como guerreiro nas lutas da África.
Portador de coragem insuspeita, notabilizou-se a ponto de ser governador de
Angola. Era casado com uma descendente de Caramuru. Morreu no litoral baiano
combatendo piratas no século XVI. O navio que comandava, à época foi posto a
pique.
E assim vai.
Escrever mais é enfadar o leitor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário