segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

PAROXISMO

 Crônica de Luiz Carlos Facó


A Bahia não é um opúsculo. É, no mínimo uma enciclopédia. Prólogo de todos os acontecimentos da vida brasileira. Não é a cena introdutória do dramático ou do funesto, como ocorria na primeira parte das peças representadas no antigo teatro grego. É o prefácio do alvorecer. Senhora de um grandioso porvir. Do culto às artes, em particular, o canto, a dança e a literatura. Em suas terras nasceu o Brasil. Nelas se fundou a primeira cidade do país, mantida por duzentos e muitos anos como sua capital. Foi, em seu território, que se travaram batalhas sangrentas pela consolidação da independência do Brasil. Nele foram gerados nomes que glorificam a cultura nacional: Gregório de Matos, o poeta satírico, chamado pelo povo como “boca do inferno” ou “poeta maldito”,  Rui Barbosa, Carneiro Ribeiro, Castro Alves, Pedro Calmon, João Mangabeira, Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, de tanto coleguismo, muitas farras e solidariedade (comunhão de irmãos), tantos quantos os incontáveis pássaros que voejam, em bandos, à procura de sítios fartos em alimentação e água. Também, este rincão abençoado, berço da cultura nacional, o é do sincretismo religioso e da absorvente, e um tanto mágica, da etnia brasileira. Dada à luz pela perfeita miscigenação do nego, do índio e do branco, que pariram uma gente generosa. Afável, sorridente. Festeira. Cúmplice. Exacerbada nas expressões físicas para demonstrar alegria e prazer. Trabalhadora, inventiva. Capaz de arrumar um jeitinho para solucionar uma quizila. Inteligente. Seu biótipo atrai a todos pela beleza e sensualidade que dele emanam como são atraídas as abelhas pelo néctar das flores. Apta, a um só tempo de crer em Deus e em crendices. De sagacidade insuspeita. Possuidora da tolerância que não beira a decrepitude. Possuidora não precisa esconder de todas as mazelas e vícios da humanidade. Pudera! Ninguém é perfeito.


Escreveu, um dia, Machado de Assis: “Virtudes inteiriças são invenções de poetas”.
O mais atraente desta terra de Rui Espinheira, Hélio Contreiras, Hélio Pólvora, Milze Soares Eon, Cid Teixeira, Joaci Góes, Julival Góes, irmão por capilaridade, Paulo Segundo, um mestre em que procuro me espelhar, Oleone Coelho Fontes, escritor que merece a láurea de imortal, Hélbio Palmeira, jurista, meu compadre, mas de qualidades imanentes e inacreditáveis, Miriam Fraga, João Carlos Teixeira Gomes, o “pena de aço”, João Erico Matta, cuja genialidade encaminhou-me ao exercício da arte literária quando ainda éramos adolescentes, Waltinho Queirós, o sucessor de Caymmi, Jayme Barbosa, o cronista mor da Bahia do século XX, que era todo encantamento, despertando até os mortos com seus achados. É a absoluta teimosia do seu povo em preservar suas tradições, embora algumas delas, tenham se dissipado como se esvaem as brumas do amanhecer. Haja vista a Procissão do Fogaréu, o Bando do Rio Vermelho, a Segunda-feira Gorda da Ribeira. De resto, a maioria está intocada, como a Lavagem do Bonfim, os arrasta-pés e fogueiras de São João,, o Terno de Reis, a Festa de Iemanjá e a preservação dos topônimos das antigas ruas de Salvador.
Debruçado sobre o último tópico, encontrei pérolas. Pau Miúdo, Curva Grande, Rua do Céu, Rua da Oração, Rua do Tira-chapéu, Rua da Forca, Rua do Passo, Rua dos Quinze Mistérios Rua Rio da Bângala, Rua da Mouraria, Largo das Sete Portas, largo do Pelourinho, Terreiro de Jesus, Largo da Mariquita, Itapuã, Abaeté, Matatu, Pirajá, Barris, Posto dos Tainheiros, Fonte do Gravatá, Fonte da Muganga, Fonte da Mãe D’Água, Bairro de Itapagipe, Buraco da Gia.

Denominações ora singelas, ora obedientes ao idioma tupi, muitas vezes homenageando um fato histórico, outras tantas seguidoras de meras conotações religiosas. O melhor desse périplo foi conhecer a história e o folclore gerado por conta desses locais tradicionais. As novas gerações, por exemplo apropriaram-se de narrações criadas pelas antigas. Uma dessas diz: as mulheres da Curva Grande jamais se casam com os homens do Pau Miúdo. Nesse mesmo sentido, outra reporta: não tem mulher que não conheça, no bairro, o Pau de Lima. Só que, nesse caso, a irreverencia popular trocou a contração “da” pela preposição “de”. Daí...

Já ouvi de muitos a afirmação de que qualquer pesquisa sobre o tema é um exercício prosaico. Egoísta, pois o pesquisador visa, ao acúmulo de saber, desde que a proposição é irrelevante como substrato cultural, para a grande maioria da sociedade. Não vejo assim. Eu, quando a ela me propus, pensei na democratização das informações recolhidas. Em separar os dados verdadeiros daqueles que se tornaram, através da tradição oral, mero folclore, contos da carochinha. Enfim, em impregnar no coração da gente o amor por essas designações, que fazem parte desse criativo modo de ser baiano.
Foi com esse afã que meu mestre, Cid Teixeira e eu, descobrimos sobre a Rua do Tira-chapéu. Conta a lenda, adotada como verdadeira por muitos historiadores, que sua alcunha deveu-se ao fato da proximidade dela à Casa dos Governadores. Essa vizinhança obrigava os passantes, em sinal de respeito aos moradores daquela descobrir-se, tirassem seus chapéus. Na verdade, as pesquisas que realizamos nos revelou história diferente. Seu batismo deveu-se à circunstância do regime de ventos existente na área, provocador da derrubada dos homens e das mulheres – essas, além do derrube dos chapéus, eram surpreendidas pelo levantamento de suas saias – que por ela teimavam transitar.

Da Rua do Bângala, descobri ser assim apelidada em homenagem ao português Baltazar de Aragão. Homem rico, cuja fortuna foi obtida como guerreiro nas lutas da África. Portador de coragem insuspeita, notabilizou-se a ponto de ser governador de Angola. Era casado com uma descendente de Caramuru. Morreu no litoral baiano combatendo piratas no século XVI. O navio que comandava, à época foi posto a pique.


E assim vai. Escrever mais é enfadar o leitor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário