ARTE FOTOGRÁFICA
O programa que universalizou o retoque completa 25 anos
Com a perda de sua função de documentar, as imagens se tonaram uma
simulação
EL PAÍS
- BRASIL
Montagem realizada
pelo fotógrafo Brian Walski, dos 'Los Angeles Times'. Combinou com Photoshop as
duas primeiras imagens, originais, nas quais um soltado britânico fala com
civis durante a guerra do Iraque, para criar a terceira. Foi demitido.
No início da pop art, os
primeiros artistas e críticos britânicos que tentavam explicar o movimento no
qual se viam envolvidos utilizavam um argumento que hoje nos é familiar: nós —
diziam — somos nativos de uma nova cultura frente à de nossos antepassados, nos
alimentamos visualmente de imagens que, pela primeira vez na história, não são
nem pretendem ser imagens tiradas do natural, mas que foram produzidas
industrialmente e com fins comerciais, as
imagens da cultura do consumo de massa, do cinema, da televisão e da publicidade,
que se transformaram, na década de 1960, na atmosfera iconográfica
dominante nas sociedades do capitalismo avançado.
Como Gilles Deleuze escreveu uma vez, a imagem fotográfica assim
produzida em grande escala não tinha a pretensão de competir com a pintura na
representação da realidade, aspirava a algo mais: queria reinar sobre a visão, colonizá-la totalmente. E, sem dúvida alguma, conseguiu isso,
embora esse império tenha se tornado um pouco ambíguo hoje, quando são
completados 25 anos do Photoshop, o
programa que colocou o retoque fotográfico ao alcance de
todos.
A fotografia
conquistou historicamente seu prestígio em documentar sob a força da humildade:
enquanto a pintura exigia a mão magistral do sujeito e a interpretação do
espírito artístico, ela se conformava em ser uma simples reprodução
mecânica do visível e, portanto, se apresentava como uma garantia de
objetividade que permitia captar o que passava despercebido aos olhos e, com
isso, teve depois aplicações
técnicas e científicas. Mas também teve aplicações propagandistas e
comerciais, e graças a elas aprendemos que esse suposto prestígio deve ser
matizado. Assim como nossos antepassados
acreditaram em algum momento que a escrita era uma prova de fidelidade, até que
compreenderam que tudo o que é escrito pode ser falsificado, e que, segundo
a definição cunhada por Umberto Eco, a
escrita pode ser utilizada para dizer a verdade com a mesma facilidade que para
mentir, perdemos a ingenuidade de confundir simplesmente a fotografia com a
realidade, e comprovamos a eficácia política e jornalística que podem ter não
apenas as fotomontagens, mas inclusive a simples decisão de um enfoque ou da
escolha de um plano na hora de interpretar uma determinada realidade, no
sentido escolhido pelo observador.
Quando as imagens
se tornaram digitais, subiu-se mais um degrau em sua artificialidade e,
portanto, na possibilidade de serem manipuladas, especialmente quando não é
necessário nem sequer imprimi-las para que surtam efeito, e a tela de cristal
líquido lhes proporciona uma homogeneidade que tornam os retoques quase
imperceptíveis. Já temos algumas gerações que são nativas da cultura digital, e
que portanto cresceram numa atmosfera tão fotorrealista como a
dos jovens de 1960, mas com esta diferença: a imagem fotográfica continua
imperando sobre o olhar, não representa uma realidade natural, mas um mundo já previamente
transformado em imagem, em fotografia. Agora as imagens já nascem manipuladas,
não são entregues ao público sem terem sido submetidas a um tratamento prévio,
que antes estava apenas ao alcance dos grandes laboratórios, dos chefes de
Estado ou de estúdios cinematográficos, e que hoje estão à disposição de quase
qualquer pessoa.
As imagens já não são apenas suspeitas de uma possível manipulação. Nos dias
de hoje, temos certeza de que foram manipuladas antes de serem distribuídas,
uma vez que sua confecção faz parte do processo de construção
de forma tão legítima como o click da câmera fotográfica, que já não é mais do
que uma concessão mimética aos nostálgicos do analógico. Os maiores defensores
das novas tecnologias sugerem que, com isso, desapareceu a necessidade de
fotógrafos profissionais (porque agora todo mundo é fotógrafo “profissional”,
ou seja, todo mundo pode não apenas fazer fotos, mas retocá-las ou montá-las a
seu gosto), que a fotografia perdeu totalmente sua condição de documental e
passou a engrossar a categoria, em nosso século tão avultada, do simulacro, ou
seja, daquela imagem que não remete a nenhum original externo, que é originariamente
cópia e manipulação em um sentido não pejorativo. Desta forma, além de sermos
fotógrafos profissionais, todos seríamos fotógrafos artísticos, mexedores e
produtores de imagens originais, porque o próprio conceito de original veio
abaixo.
A página na
Internet do jornal 'L'Express' mostra a fotografia original da Reuters (abaixo)
e o retoque da revista 'Paris-Match' do pneuzinho do presidente francês,
Nicolas Sarkozy, durante suas férias de verão nos EUA.
Mas nisso também temos que avaliar as ilusões que os avanços
tecnológicos despertam em nós. A ingenuidade de pensar que toda fotografia é um
documento fiel do original que retrata não é maior que a de pensar que todo
fotografia é em si própria uma obra de arte original do fotógrafo, e a
democracia estética não consiste exatamente em colocar ao alcance de todos os
mortais a ferramenta do Photoshop. A tecnologia digital aumenta nossa
capacidade de enganarmos a nós mesmos ao aumentar nossas possibilidade de
manipular imagens. Se esta mesma ideia tem sentido, é porque existe algo a ser
manipulado e, portanto, algo que não é manipulação em si mesmo. Ainda que
sejamos nativos de um mundo previamente convertido em fotografia pelos meios de
comunicação, se alguém tem interesse em
manipular as notícias ou em retocar as imagens é porque esses meios
ainda têm –por mais abaulado que estejam— um caráter persuasivo, e só podem
tê-lo se pensamos que comunicam algo que não é simplesmente uma imagem
pré-fabricada, que a imagem é imagem de algo, e não de nada. Ontem nos
preocupava que as imagens pudessem nos enganar. O que hoje nos inquieta é que,
apesar de tudo, também mantêm a
capacidade de dizer, às vezes, a verdade.
*José Luis Pardo, filósofo espanhol, ganhou o Premio Nacional de Ensaio com La
Regla del Juego ( A regra do jogo, 2004). É autor de Nunca Fue
tan Hermosa la Basura (O lixo nunca foi tão bonito) e Esto no es
Música: Introducción al Malestar en la Cultura de Masas (Isto não é
música: introdução ao mal estar na cultura de massas).
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