quinta-feira, 2 de abril de 2015

O NASCIMENTO DO AMOR

Literatura

Publicado em literatura por Isaac Arrais
Obviusmagazine

Isaac Assis

 Tal como uma obviedade, acordamos certo dia e nos damos conta de estar completamente apaixonado por alguém. Isso ocorre porque ignoramos as nuances dos pequenos movimentos do espírito que nos induzem a este estado. E com a finalidade de trazer à luz o processo de enamoramento que se passam à margem da nossa consciência, Stendhal publica em 1820 do Amor.
  


Stendhal é o pseudônimo de Henri-Marie Beyle, um dos mais célebres escritores da literatura mundial. Sua obra mais famosa - O Vermelho e o Negro (1830) - marcou a entrada no mais novo estilo realista. O legado da sua obra despertou inveja e admiração de homens como Nietzsche, e influenciou muitos outros, como Tolstói. Mas ainda antes disso, o então jovem Henri-Mari, recém-chegado em Paris, empreendera para si uma tarefa: seduzir as beldades parisienses. Sem êxito, colecionava amantes que ignoravam sua existência. Amou muito, mas foi amado com menos frequência. E uma de suas paixões mais tórridas foi Matilde, dama italiana que tratava o pobre Henri com desprezo e complacência. Dessa feita, é muito conhecida a passagem em que Matilde viaja para uma província de Milão, e lhe repreende duramente para que não a seguisse. Mas ele, arrebatado pela paixão, chega antes na Estação e monta um disfarce para que ela não o reconhecesse. Mas quando Matilde salta do trem, a primeira pessoa que vê não é senão ele, com barba, óculos e cabelo postiço. Naquela situação ridícula, é acusado de atentado contra a honra da nobre senhora. Voltando para Paris, envia-lhe cartas por meio das quais tenta explicar que não foi guiado pelos ciúmes ou possessividade, mas pela necessidade sincera de vê-la. No entanto, todas suas cartas são devolvidas seladas. E foi neste período tempestuoso que Stendhal escreveu Do Amor (1820), que se efetivara como última tentativa de descobrir um modo de fazê-la apaixonar-se por ele, ou dele próprio desapaixonar-se dela.
Para tanto, primeiro ele procura entender como o amor nasce, cresce e morre.



Antes de narrar a gênesis do amor, é preciso entender o que ele é. Nas palavras do autor: “amar é ter prazer em ver, tocar, sentir através de todos os sentidos, e tão perto quanto possível, um objeto amável e que nos ama”. Uma fórmula simples, parecida com a do poeta que diz “amar é querer estar perto, se longe; e mais perto, se perto” . Nessas duas concepções, o amor opera como uma força gravitacional que impele o amante para ser o amado: aquele cuja presença desperta uma sensação de paz, aconchego, completude, etc. Por outro lado, não podemos confundir este amor com a paixão. O segundo, como indica sua etimologia, se refere ao ato de sofrer, aguentar. No grego, o termo pathe quer dizer sentir, e phatos a padecer. (Note você que phatos também deu origem a patologia, que é o estudo das doenças ou do sofrimento). La belle févre, chamam os franceses: a paixão é algo que nasce e morre em nós sem que tenhamos nenhum controle sobre ela. E no sentido mais amplo do termo, ebla se estende para todos os campos das afecções. Existe paixão no ódio, na vingança, na raiva, avareza, ciúmes, etc. Em suma, se nosso estado saudável é o de razão, o doentio, alienante, é o apaixonado. Mas note bem: para Stendhal esta “doença” tem alto valor, pois só através dela nos colocamos “acima da felicidade dos reis o simples prazer de passear a sós com seu amante a meia noite”. Ela aumenta nosso ponto de contato com o mundo, aguça nossos sentidos, vivifica as emoções, deixa à flor da pele.
Concluídos os esclarecimentos iniciais, passemos a falar do amor-paixão, sentimento que nutrimos por alguém muito específico e especial cuja presença desperta alegria, e a ausência induz a busca arrebatadora pelo seu encontro. Mas da indiferença dos primeiros dias às delícias desses tempos, antes é preciso passar pelos sete tempos do amor, e pensando nisso, Stendhal exemplifica o percurso desde Bolonha até Roma, sendo eles: 1) Admiração 2) Fala-nos: Que prazer dar-lhe beijos, recebe-los, etc.! 3) Esperança 4) O amor nasce 5) Cristalização 6) Ausência 7) Segunda Cristalização
1) Admiração Uma pequena admiração é necessária para arrebatar o ser amado de seu estado inicial de letargia e indiferença. Freud chamava “enamoramento de primeiro grau” os casos em que a admiração nascia pela visão; e chamou "segundo grau" onde o caráter, as predicações de intelecto ou títulos sociais eram mais determinantes. No Enamoramento e Hipnose, Freud procura ainda entender se admiramos alguém pelo que nos é semelhante ou diferente. (Os opostos se atraem, diz o vulgo popular). A resposta não é simples, mas a hipótese indica que 1) se amamos o outro pelas semelhanças, isso deverá partir de uma demanda narcísica, isto é, uma maneira de amar a só próprio através do outro; 2) e se for pelas diferenças, é porque neles projetamos aspirações, qualidades que gostaríamos de possuir. Projetamos no outro nosso ideal de eu, e é o nosso ideal que amamos. Com efeito, quanto maior for a autoestima, mais é provável que nos admiremos pelos semelhantes; e quanto menor ela for, pelo diferente.
2) Fala-nos: Que prazer dar-lhe beijos, recebe-los, etc.! Aqui me permito uma leitura mais subjetivada: o prazer ao qual Stendhal se refere é sensitivamente agradável, portanto belo. Mas que beleza é esta capaz de despertar-nos para o prazer em dar e receber beijos? Ao contrário do que pensa o senso comum, o belo não é algo intrínseco ao mundo: as coisas têm cor, forma e dimensão, mas não tem beleza, e a única coisa que torna esta predicação possível é a nossa faculdade de emitir o juízo de beleza. Mas se concluirmos que o belo não existe, mas tão somente o juízo de beleza, o que fundamenta este juízo? Para Stendhal é a promessa de felicidade. Julgamos a beleza do mundo na exata proporção em que acreditamos receber dele regozijo e felicidade. À exemplo disso o amante, que toma sua amada por fonte inesgotável de alegria e nos fala “que prazer dar-lhe beijos, recebe-los, etc.!”. É como acordar num dia ensolarado, e inspirado por esta promessa de felicidade, elevar os pensamentos ao que está porvir: passeios de bicicleta, sorvete, noite animada, etc., para finalmente concluir: “hoje o dia está bonito!”. Ou ao contrário, num dia nublado e chuvoso ter que desistir de todos os planos, onde o tédio o fará dizer: “que dia feio!”.
3) Esperança Mesmo a admiração e o prazer não são suficientes para o nascimento do amor. É preciso que antes exista uma matize de esperança. Ela sustentará os devaneios apaixonados com a certeza de que seus sentimentos poderão ser correspondidos. Basta um pequeno movimento, um aperto de mãos, um olhar ou beijo para fazer nascer a esperança. Ainda que sutil, ela é indispensável porque é financiadora do amor. E além disso, ela funciona como um filtro que garante um mínimo de lucidez às paixões. Na sua ausência, seria recorrente encontrar pessoas apaixonadas por personagens literários ou figuras históricas já mortas. Amando “o nulo, o pérfido, o inóspito; um vaso sem flor, o peito inerte”. Sumariamente: o não correspondido.
4) O amor nasce Uma vez que o amante tenha admirado os atributos da amada, regozijado pela sua beleza, e que as esperanças de correspondência tenham sido confirmadas, o amor começa a nascer. Repetindo Stendhal: “é um prazer em ver, sentir e tocar através de todos os sentidos, o quanto mais próximo possível o ser amado”.
5) Cristalização “Nas minas de sal, de Salzburgo, lança-se, nas profundezas abandonadas da mina, um ramo de árvore desfolhado pelo inverno; dois ou três meses depois ele é retirado, coberto de cristalizações brilhantes: os menores ramos, os que não são maiores que a pata de um pássaro, adornam-se de uma infinidade de diamantes móveis e deslumbrantes; não podemos mais reconhecer o galho primitivo”
Aqui, os arroubos do amor-paixão ganham uma dimensão tal que somente uma metáfora poderia flagrar: é como se o enamorado lançasse seu objeto de amor nas minas de sal – que são seus pensamentos apaixonados, e uma vez lá estando, o objeto de amor iniciasse um processo ornamental de atribuição de deliciosas qualidades, de modo que saindo da caverna, o amante já não poderá reconhecer a pessoa de outrora. Antes de dar primeiro beijo em Odette, Swann lhe diz que dali em diante jamais lhe verá da mesma forma. Uma das razões possíveis que explicam este fenômeno, é de que o amor só é capaz de amar a beleza, e não havendo beleza, ele as cria. Então, o amante passa a exagerar sempre a favor do ser amado. Se porventura o amante apresentar uma certa cultura literária, será aos seus olhos a pessoa mais sábia havida e por haver. E se ele, ao contrário, ostenta grande ignorância, será o mais sábios entre os imbecis, o que fará dele sábio, e esta certeza lhe entorpecerá de todo resto. Esta é a tese: não é o real que define o amor, mas o amor que define o real. Ou seja, não amo mon ami pela sua beleza, mas ela é bela porque a amo. Não amo a vida por julgá-la boa, mas ela é justamente boa porque a amo. Isso coroa a tese de que no amor-paixão, a beleza do ser amado, bem como qualquer outra qualidade, é circunstancial. Porque como foi dito: na falta, o amor as inventa. Entre um devaneio e outro, ele procura em pensamentos a imagem da sua amiga, mas eis que ela surge para salva-lo do inferno dantesco, envolta por nuvens, serena e inquieta, sensual e pura, a bela Beatriz!
6) Ausência Mas sabendo Stendhal que inequivocamente a paixão se esgota, e que o êxtase dos primeiros dias ficam para trás, ele se questiona à respeito do que pode assegurar a sua duração. E os alimentos para o amor – segundo ele – é a presença e a ausência, o medo e a esperança. Porque se o amor for só presença, ele diminui; e se for apenas ausência, ele acaba. Além disso é preciso que haja medo. O sentimento que prevê a o fim de tudo, onde a amada representa um porto seguro no rio dos afetos, que tudo leva em seu caminho. Por outro lado, a esperança dos passeios na Av. Paulista, de um mochilão no Uruguai, etc., tudo isso vem renovar a Cristalização.
7) Segunda Cristalização O amante erra três vezes: Deixe a cabeça de um apaixonado trabalhar. Você verá que ele erra pela primeira vez ao perguntar-se: “Ela me ama?”, para em seguida responder a si mesmo: “Sim, ela me ama!”. A força desta convicção não dura mais que um instante e a dúvida renasce ainda maior: “Mas será...? Sim!”, e então, ele entra neste círculo vicioso de onde ninguém poderá salva-lo. Finalmente ele erra pela segunda vez ao exigir favores cada vez maiores da sua amiga, submetendo seu amor às provações. O que antes bastava um sorriso sincero para leva-lo ao cúmulo da felicidade de sentir-se amado, agora nem mesmo se ela tivesse uma centena de bocas. É nesta fraqueza, neste temor, nesta pequenez que nasce as instituições dos afetos. Ele crê desesperadamente que instituindo a respeitável condição de namorada ou esposa, conseguirá aprisionar seu amor como algo imutável, petrificado, invariável. Mas ele, na verdade, os mortifica, mumifica, blasfema contra o mundo da vida em que tudo flui. Deixa de ser sagrado, porque o que sacraliza uma relação não é um papel, mas o amor recíproco. Por fim, erra pela terceira vez quando pensa “ela me concede prazeres que ninguém mais no mundo poderia dar”. “Ele tenda se lançar aos prazeres do mundo mas encontra-os todos desertificados”, e “a memória do que viveu parece sempre superior ao que poderia encontrar no futuro”. Parece que se trata de ser amado ou morrer. E, se por um lado, parece ter alcançado a felicidade digna dos reis, do outro, pensa ter virado escravo. Sente o abismo debaixo dos pés à cada instante que a brisa bate e ameaça suas certezas.
                                                                        * * *
Haja visto como o amor-paixão nasce, desenvolve e atinge seu ápice, o próximo artigo – que será publicado em breve – apresenta a decadência do amor-paixão e sua morte; a ainda inspirados por Stendhal, mostraremos os remédios para aqueles que desejam curar-se dessa bela febre.



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