Você
não é apenas você. Você é um ecossistema completo – com a diferença de que fala
e anda
Lucy JonesDa BBC Earth
BBC - BRASIL
É quase certo que,
neste exato momento, você tenha animais vivendo em seu rosto.
São seres microscópicos de oito patas que nascem, se alimentam, se
acasalam e morrem nos poros e nas raízes dos pelos da face humana.
Mas antes de sair para esfregar a pele com o primeiro sabonete que
encontrar pela frente, saiba que esses minúsculos inquilinos não representam um
grave problema. Na realidade, eles são praticamente inofensivos.
E são tão comuns que poderão até ajudar cientistas
a revelar alguns detalhes sobre a história da humanidade aos quais nunca
tivemos acesso.
Até dois por cílio
Rosto humano pode
ter de centenas a milhares de 'Demodex', que se abrigam nos poros
São duas as espécies de ácaros que habitam o rosto
humano: o Demodex folliculorum e o Demodex brevis. Eles pertencem ao filo dos
artrópodes, que inclui animais com exoesqueletos e patas articuladas, como
insetos e caranguejos. Seus parentes mais próximos são as aranhas e os
carrapatos.
Os ácaros do gênero Demodex têm oito patas curtas e grossas localizadas
perto da cabeça. Seu corpo é alongado, como o de uma minhoca.
Enquanto D. folliculorum vive
em poros e folículos pilosos, o D. brevis prefere
se estabelecer nas glândulas sebáceas. O rosto tem poros maiores e mais
glândulas desse tipo do que o resto do corpo humano, o que pode explicar a
preferência desses animais pela região.
Já faz tempo que cientistas sabem que ácaros vivem
no rosto humano – há registros de observação do D.
folliculorum nesse ambiente em 1842. O que ficou claro apenas
em 2014 foi sua onipresença: a bióloga Megan Thoemmes e seus colegas da
Universidade da Carolina do Norte encontraram DNA de Demodex no rosto de todos
os voluntários testados, apesar de eles só serem visíveis em 14% daqueles
indivíduos.
Isso sugere que todos nós abrigamos esses ácaros, e provavelmente em
grandes quantidades. “É difícil quantificar, mas uma estimativa baixa seria na
casa das centenas desses animais”, afirma Thoemmes. “Uma alta população
chegaria a milhares.” Ou seja: é possível ter dois ácaros em cada cílio.
Ovos ‘gigantes’
Cientistas ácaros
diferentes nos rostos de populações distintas
Ainda não está claro, entretanto, quais os benefícios trazemos aos
ácaros, além de abrigo. Para começar, os cientistas não têm certeza do que
esses seres microscópicos se alimentam.
Para descobrir isso, a equipe de Thoemmes está analisando os microoganismos
que vivem nos intestinos dos Demodex, o que pode dar um indício de sua dieta.
Também não se sabe muito como essas espécies se reproduzem. Outros tipos
de ácaros usam recursos dramáticos, como o incesto e o canibalismo sexual, mas
os Demodex parecem ser menos radicais.
Os cientistas, no entanto, conseguiram filmar uma fêmea colocando seus
ovos em torno da borda do poro onde estão vivendo – e se assustaram com seu
tamanho. “Cada ovo medem um terço ou até metade do corpo da mãe, o que nos faz concluir
que ela deposite poucos deles – ou talvez só um – de cada vez”, explica
Thoemmes.
Outra curiosidade: esses ácaros não possuem um ânus. Em vez de defecar,
eles provavelmente guardam os resíduos digestivos até morrerem. “Quando um
Demodex morre, seu corpo se resseca e todos os dejetos acumulados se decompõem
no rosto”, conta a bióloga.
Gentil comensal
Apesar de seu
aspecto e de seus hábitos, criaturas não são parasitas do homem
Isso pode soar como uma coisa terrível e repugnante. Mas, surpreendentemente,
essa atividade não é prejudicial ao homem. “Se tivéssemos uma forte reação
negativa à presença desses ácaros, observaríamos problemas em um número maior
de pessoas”, afirma.
O único problema de pele com o qual o Demodex está associado é a
rosácea, uma doença que atinge principalmente o rosto e começa com um rubor que
pode evoluir para uma vermelhidão permanente, manchas e sensação de ardor.
Estudos mostraram que as pessoas que sofrem de rosácea tendem a
apresentar mais ácaros Demodex em sua pele – uma concentração de 10 a 20
animais por centímetro quadrado, enquanto a média normal é de um a dois. Mas
isso não quer dizer que são eles que provocam a doença.
Em uma pesquisa publicada em 2012, Kevin Kavanagh, da Universidade de
Maynooth, na Irlanda, concluiu que a principal causa da rosácea são as
alterações na pele devido a fatores como o envelhecimento. Com elas, muda
também o sebo – substância oleosa produzida pelas glândulas para manter a
umidade da pele.
Como é possível que o Demodex se alimente de sebo, essa mudança pode
causar a explosão populacional. Outra explicação seria a grande onda de
bactérias liberada quando um ácaro morre, o que causa irritações e inflamações.
Ou ainda uma deficiência no sistema imunológico humano, que favorece a
proliferação dos ácaros.
Os cientistas também já sabem que esses animais não são parasitas, ou
seja, não provocam danos ao se alimentarem de nossos componentes. É mais
provável que essa relação seja de comensalismo, na qual eles se aproveitam de
nós mas sem nos prejudicar ou até nos beneficiando – alguns pesquisadores
acreditam que eles comem bactérias nocivas e limpam a pele morta depositada na
superfície do nosso rosto.
Origens
Mas seria possível se livrar desses ácaros? Por um certo tempo sim, mas
não para sempre. Isso porque nós o pegamos de outras pessoas diretamente ou
através de objetos como lençóis, travesseiros e toalhas.
“Parece haver algo especial no rosto que faz com que eles queiram estar
ali”, diz Kavanagh.
Os cientistas também acreditam que abrigamos esses
ácaros há pelo menos 20 mil anos, e que os pegamos de outros animais. O D. brevis, por exemplo, é particularmente semelhante a
outra espécie de ácaro que vive em cães.
A pesquisa realizada na Carolina do Norte também descobriu que os ácaros
coletados de populações asiáticas eram nitidamente diferente daqueles colhidos
de indivíduos do Hemisfério Norte e da América do Sul.
Para a equipe de Thoemmes, o estudo desses aracnídeos microscópicos
poderia revelar como nossos ancestrais se moveram pelo planeta e mostrar quais
populações modernas têm uma relação mais estreita.
O Demodex pode ainda ajudar os especialistas a investigar como
evoluímos. Como eles viveram tanto tempo conosco, é possível que nosso sistema
imunológico tenha mudado, ajudando-nos a reagir contra diferentes doenças.
Por enquanto, muitas hipóteses e especulações estão no ar. Mas se há uma
verdade sobre esses ácaros é o fato de eles nos lembrarem que os seres humanos
abrigam um enorme número de espécies de animais, a começar por microrganismos.
Ou seja: você não é apenas você. Você é um ecossistema completo – com a
diferença de que fala e anda.
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