sábado, 23 de maio de 2015

UMA ARGENTINA BRASILEIRA

publicado em recortes por Ana Josefina Tellechea

Pode parecer meio egocêntrico, mas não é esta a intenção. Essa que vai ler é talvez uma boa parte da história da minha vida e de uma angustiante falta de noção de pertencimento, não porque não queira ou porque me demore a entender uma cultura tão diversa ou até mesmo porque seja incapaz de desfazer-me de raízes. Mas porque a burocracia - aquela que conhecemos como "burrocracia" - brasileira ceifa as milhares de oportunidades que poderia haver para estrangeiros no Brasil.




Tenho certeza que se houver algum estrangeiro lendo esta parte da minha história haverá identificação imediata em diversos aspectos.
Se sou brasileira?! Sim e não, talvez seja essa a resposta. Nasci na Argentina, na cidade de La Plata, província de Buenos Aires, aquela cidade com aroma de Europa e que desperta sensações de liberdade mesmo num lugar de gente tão freneticamente séria e obediente. Frenéticas por caminharem rapidamente rumo aos seus destinos e tão obstinados e decididos a chegar até eles, sérias por parecerem frequentemente vigiadas e compulsivas por um comportamento que respeite às regras. Sim, também tem aquele sentimento de liberdade, porque basta o sol descansar que aquele ar de seriedade traveste-se e a diversão toma conta... Os brasileiros devem saber bem, afinal, ao caminhar pelas ruas de lá o que mais se ouve são pessoas falando português, sejam eles estudantes, famílias à passeio ou simplesmente pessoas em busca de diversão e de uma experiência agradável num pedacinho da Europa na América Latina. Preciso parar por aqui, afinal, o meu conhecimento em matéria de Argentina e argentinos é limitadíssimo!
Limitado sim, porque eu nasci lá, mas aos 5 anos fui trazida por minha mãe ao Brasil pela primeira vez. Tenho 26 anos, se fizermos as contas, vivo quase toda uma vida por aqui. mais brasileira que isso, só nascendo aqui (ou em Portugal?)!



Cresci, aprendi a ler e escrever,aprendi a cantar o hino do Brasil, vivi meus amores e dramas adolescentes, conheci meus amigos, me formei, encontrei minha profissão, casei, construí minha casa e planejei toda uma vida no país que insiste em pouco me acolher. Posso estar parecendo mal agradecida, mas neste caso, é ao contrário! Luto por causas, defendo, brigo, educo, sonho, construo, pago, contribuo e ainda assim, o sistema faz questão de excluir os estrangeiros de todas as formas possíveis.


Para se ter uma ideia, basta ler um edital de qualquer - há exceções - concurso público e ver que lá constarão as seguintes informações nos requisitos para investidura em algum cargo: "Ser brasileiro nato ou naturalizado, ou ainda(...) estar amparado pelo estatuto de igualdade entre brasileiros e portugueses." (Oi!???) Percebam que o embrião chamado Brasil ainda não consegue cortar o cordão umbilical com seus colonizadores e pelo visto, também é incapaz de ser uma mãe adotiva sem burocracias.
Se fizermos uma pequena busca no Google, podemos encontrar na Wikipédia o termo "argentino-brasileiro" e uma enorme lista de "argentinos-brasileiros notáveis" (juro que me surpreendi). São incontáveis os argentinos que, por algum motivo, vieram parar no Brasil e fizeram dele sua casa e ainda assim, são inúmeras as dificuldades burocráticas que enfrentamos aqui, mesmo estando aqui há muitos anos. Talvez isso seja algo que ocorre em diversos países, mas temos de convir que aqui a burrocracia é uma pedra no sapato de todos nós, estrangeiros ou não.
Nos meus 21 anos de vida no Brasil conheci incontáveis argentinos que vivem aqui, mas muitos deles escolhem dois caminhos principais: a vida "anônima", em ilhas onde a maioria dos moradores são estrangeiros (talvez tenha algo a ver com a necessidade do sentimento de pertencimento); a vida acadêmica, onde nos é permitido (quando temos visto permanente, como eu) atuar e participar de concursos de uma forma menos (eu disse M-E-N-O-S) burocrática. Existem, ainda, aqueles que se naturalizam e conseguem juntar uma lista de documentos feita com um papiro de 100 metros e têm dinheiro para pagar as 300 guias de recolhimento exigidas.


Bem, exageros (pero no mucho) à parte, a vida de um estrangeiro no Brasil, principalmente de um argentino, quando se trata de relações sociais, é bem diferente do que se possa imaginar, tendo em vista a rivalidade no futebol. Na grande maioria das vezes o que ocorre é o oposto. Somos muito bem recebidos e valorizados por nossas virtudes. Tirando o fato de que algumas pessoas ainda se ofendem quando critico o meu país (Brasil), por me sentir no direito de fazê-lo, como qualquer cidadão. Critico porque me sinto parte, critico porque amo e quero o progresso do lugar onde vivo e que escolhi para ter e criar meus filhos.


Com todos os defeitos, escolho o Brasil para ser meu país (não, não deixei de ser argentina). Um filho não pode ter duas mães?
Sonho com o dia em que o meu sentimento como brasileira caminhará de mãos dadas com os meus direitos de sê-lo. Sonho com o dia em que seremos realmente "Hermanos"
.


© obvious: 
http://obviousmag.org/codigo_aberto/2015/05/uma-argentina-brasileira.html#ixzz3as6kk6Sv
Follow us: 
@obvious on Twitter | obviousmagazine on Facebook

Nenhum comentário:

Postar um comentário