domingo, 31 de maio de 2015

QUEM NUNCA COMEU PIURE?

A arte da gastronomia: as mais das vezes, para muito poucos 
Em um primeiro olhar parecem pedras cobertas de líquen. É preciso abri-las para descobrir o mistério que guardam

IGNACIO MEDINA 29 MAY 2015
El PAís – O Jornal Global

Um prato de piure.

A grande surpresa da semana foi encontrar piures no cardápio do restaurante La Mar, a cevicheria de Gastón Acurio localizada em Lima, e no dia seguinte voltar a encontrá-los na La Picantería, o exemplar negócio aberto há dois anos por Héctor Solís em Surquillo. Vêm de Paracas, pouco mais de duzentos quilômetros ao sul da capital peruana, ainda que por essas bandas não digam piure, nome pelo qual são conhecidos no Chile, mas ciruelillo (pode ser traduzido como ameixinha, em português), que parece mais descritivo.
No La Mar vieram à mesa na forma de caldo, um ensopado primordial no qual são cozidos com pedações de cebola e tomate em um caldo temperado com ají amarelo (espécie de pimenta muito utilizada na cozinha peruana) e suco de limão. É um ensopado delicado e profundo ao mesmo tempo. Ouço que também posso encontra-lo na La Picantería e vou lá no dia seguinte. Primeiro servidos como ceviche, cortados crus, temperados com limão e ají limo e acompanhado de pedaços de robalo. É como saborear o fundo do mar. Termino com uma parihuela – outra amostra da cozinha marítima peruana – de peixe-sapo – parente distante do rape, de carne mole e gelatinosa – com piures. É um prato forte, poderoso e um tanto enigmático.
Em um primeiro olhar, os piures parecem pedras cobertas de líquen. É preciso abri-las para descobrir o mistério que guardam, liberando uma carne redonda de cor alaranjada viva e brilhante, com dois pequenos tubos escuros na parte alta. É mole e estoura na boca, enchendo-a com um sabor salino e intensamente iodado. É potente, sutil e, de alguma forma, surpreendente. Sua concha é muito parecida com a vieira e a ostra – e o ouriço. Mar, sal, suavidade... em uma viagem direta ao sabor mais forte do mar.

Decididamente é um marisco estranho; um desses produtos raros que o mar proporciona em alguns lugares do planeta e que acabam dando a identidade de algumas cozinhas. Pouquíssimos viram esta iguaria na mesa de um restaurante peruano antes de hoje. Os pescadores da região de Paracas, Ica e San Andrés costumam comê-los de vez em quando, mas como acontece com tantas outras espécies, nunca chegam ao mercado. Mil quilômetros ao sul, nas cozinhas chilenas, o piure é um elemento popular e reconhecido. De fato, só vive nas águas do sul do Pacífico.
É mole e estoura na boca, enchendo-a com um sabor salino e intensamente iodado
Os três pratos que acabo de encontrar em Lima são uma exceção. Gloriosa, mas exceção no final das contas. O habitat natural e até hoje exclusivo do piure são as cozinhas do Chile. Ali encontrei-o pela primeira vez no restaurante Boragó de Rodolfo Guzmán. Segundo minhas notas, o prato chamava-se bombom de pele de piure recheado com casca de tangerina, e funcionou, mas não mostrava a verdadeira natureza do marisco. Eu o vi no Mercado Central de Santiago, inteiro ou limpo, embalado com água do mar. Meu segundo piure, que realmente foi o primeiro, veio em um restaurante do mercado. Era um ceviche: muito limão, cebola picada e coentro, compondo o tradicional molho verde chileno. Também se chama “ao matico” (espécie de planta), como me explicou o jornalista Carlos Reyes, enquanto me esclarecia sobre as diferentes formas que vi no mercado: os do sul mostram uma coloração vermelha intensa, enquanto os de águas mais ao norte são muito mais escuros, quase violetas.
É decididamente um marisco estranho; um desses produtos raros que o mar proporciona em alguns lugares do planeta
O mesmo Carlos Reyes é meu guia na rota do piure. Primeiro, ao natural, nos mariscais – combinações de mariscos, tradicionais nos pequenos portos pesqueiros –, para continuar por pratos como os preparados em panelas de barro, as empanadas de piure com queijo de Valdivia, ou o arroz servido na Confeitaria Torres, de Santiago, seguindo uma receita familiar dos proprietários originários de Puerto Montt.
As coisas mudam ao sul, onde o piure aparece muito ligado às tradições da cozinha mapuche. Lá o piure é defumado, seguindo técnicas ancestrais da Ilha de Chiloé, em buracos forrados com pedras quentes, e conserva-se durante muito tempo. Uma vez reidratado, é utilizado em cozidos populares – com mariscos, batatas, cebolas e ají – e é um dos protagonistas do curanto, um dos pratos herdados da cultura mapuche.

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