A arte da gastronomia: as mais das vezes,
para muito poucos
Em um primeiro olhar parecem pedras cobertas de líquen. É preciso
abri-las para descobrir o mistério que guardam
IGNACIO MEDINA 29 MAY 2015
El PAís – O Jornal Global
Um prato de piure.
A grande
surpresa da semana foi encontrar piures no cardápio do restaurante La Mar, a
cevicheria de Gastón Acurio localizada em Lima, e no dia seguinte voltar a
encontrá-los na La Picantería, o exemplar negócio aberto há dois anos por
Héctor Solís em Surquillo. Vêm de Paracas, pouco mais de duzentos quilômetros
ao sul da capital peruana, ainda que por essas bandas não digam piure, nome
pelo qual são conhecidos no Chile, mas ciruelillo (pode ser traduzido
como ameixinha, em português), que parece mais descritivo.
No La Mar
vieram à mesa na forma de caldo, um ensopado primordial no qual são cozidos com
pedações de cebola e tomate em um caldo temperado com ají amarelo (espécie de
pimenta muito utilizada na cozinha peruana) e suco de limão. É um ensopado
delicado e profundo ao mesmo tempo. Ouço que também posso encontra-lo na La
Picantería e vou lá no dia seguinte. Primeiro servidos como ceviche, cortados
crus, temperados com limão e ají limo e acompanhado de pedaços de robalo. É
como saborear o fundo do mar. Termino com uma parihuela –
outra amostra da cozinha marítima peruana – de peixe-sapo – parente distante do
rape, de carne mole e gelatinosa – com piures. É um prato forte, poderoso e um
tanto enigmático.
Em um primeiro olhar, os piures parecem pedras
cobertas de líquen. É preciso abri-las para descobrir o mistério que guardam,
liberando uma carne redonda de cor alaranjada viva e brilhante, com dois
pequenos tubos escuros na parte alta. É mole e estoura na boca, enchendo-a com
um sabor salino e intensamente iodado. É potente, sutil e, de alguma forma,
surpreendente. Sua concha é muito parecida com a vieira e a ostra – e o ouriço.
Mar, sal, suavidade... em uma viagem direta ao sabor mais forte do mar.
Decididamente
é um marisco estranho; um desses produtos raros que o mar proporciona em alguns
lugares do planeta e que acabam dando a identidade de algumas cozinhas.
Pouquíssimos viram esta iguaria na mesa de um restaurante peruano antes de
hoje. Os pescadores da região de Paracas, Ica e San Andrés costumam comê-los de
vez em quando, mas como acontece com tantas outras espécies, nunca chegam ao
mercado. Mil quilômetros ao sul, nas cozinhas chilenas, o piure é um elemento
popular e reconhecido. De fato, só vive nas águas do sul do Pacífico.
Os três
pratos que acabo de encontrar em Lima são uma exceção. Gloriosa, mas exceção no
final das contas. O habitat natural e até hoje exclusivo do piure são as
cozinhas do Chile. Ali encontrei-o pela primeira vez no restaurante Boragó de
Rodolfo Guzmán. Segundo minhas notas, o prato chamava-se bombom de pele de
piure recheado com casca de tangerina, e funcionou, mas não mostrava a
verdadeira natureza do marisco. Eu o vi no Mercado Central de Santiago, inteiro
ou limpo, embalado com água do mar. Meu segundo piure, que realmente foi o
primeiro, veio em um restaurante do mercado. Era um ceviche: muito limão,
cebola picada e coentro, compondo o tradicional molho verde chileno. Também se
chama “ao matico” (espécie de planta), como me explicou o jornalista Carlos
Reyes, enquanto me esclarecia sobre as diferentes formas que vi no mercado: os
do sul mostram uma coloração vermelha intensa, enquanto os de águas mais ao
norte são muito mais escuros, quase violetas.
É decididamente um marisco estranho; um desses produtos raros que o mar
proporciona em alguns lugares do planeta
O mesmo
Carlos Reyes é meu guia na rota do piure. Primeiro, ao natural, nos mariscais –
combinações de mariscos, tradicionais nos pequenos portos pesqueiros –, para
continuar por pratos como os preparados em panelas de barro, as empanadas de
piure com queijo de Valdivia, ou o arroz servido na Confeitaria Torres, de
Santiago, seguindo uma receita familiar dos proprietários originários de Puerto
Montt.
As coisas mudam ao
sul, onde o piure aparece muito ligado às tradições da cozinha mapuche. Lá o
piure é defumado, seguindo técnicas ancestrais da Ilha de Chiloé, em buracos
forrados com pedras quentes, e conserva-se durante muito tempo. Uma vez
reidratado, é utilizado em cozidos populares – com mariscos, batatas, cebolas e
ají – e é um dos protagonistas do curanto, um dos pratos herdados
da cultura mapuche.
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