quarta-feira, 10 de junho de 2015

FUTEBOL É FOGO DE PALHA, SEGUNDO GRACILIANO RAMOS

 Publicado em sociedade por Cosme Rogério,
em obviusmagazine
   
Em tempos de crise no futebol mundial, com escândalos de corrupção envolvendo dirigentes da FIFA, uma reflexão escrita há mais de nove décadas ilumina a questão sobre o papel desse esporte na construção da identidade nacional brasileira. Com a palavra, Graciliano Ramos.


Sempre que se trata da relação entre intelectuais e futebol no Brasil, costuma-se lembrar daqueles que falharam em suas profecias feitas sobre esse esporte no começo do século XX. Graciliano Ramos, mestre da literatura universal, é um deles. Em 1921, no jornal “O Índio”, às vésperas da chegada do esporte “dos países civilizados” em Palmeira dos Índios, cidade nordestina onde viveu boa parte de sua vida, Graciliano declarou enfaticamente: “o futebol não pega, tenham a certeza”. A história revelou exatamente o contrário da prédica graciliânica, pois a prática do futebol criou profundas raízes em todo o país, ajudando a construir a identidade nacional brasileira.
O que teria levado Graciliano Ramos a preconceber o esporte bretão, praticado no Brasil já havia três décadas, como “uma lembrança que certamente será bem recebida pelo público, que, de ordinário, adora as novidades”; como algo que apenas ia “ser, por algum tempo, a mania, a maluqueira, a idéia fixa de muita gente”; como uma “excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um mês”? De acordo com os pesquisadores Antônio Jorge Soares e Hugo Rodolfo Lovisolo, o erro da análise graciliânica sobre o caso reside na própria mecânica de argumentação do consagrado romancista. Explicam eles: “Seu modo de argumentação é de cara funcionalista, como grande parte da reflexão inspirada no cientificismo de seu tempo, e baseia-se na correspondência entre uma realidade nacional ou regional e uma instituição. Ademais, congela a tradição e sua renovação, fecha os processos de “resignificação’ e, por último, opera, formalmente, ignorando as características singulares do objeto a ser integrado, no caso, o futebol. Temos, assim, na aliança entre funcionalismo com uma visão mecanicista da tradição e a ignorância das singularidades do esporte em pauta, o motor de seu erro”.
Devemos, contudo, considerar a observação de João Máximo no livro Brasil – Um Século de Futebol, organizado por Leonel Kaz, ao discorrer sobre o “fim da infância” do futebol brasileiro, no início da década de 1920, logo após a conquista do primeiro título internacional para o país – o Campeonato Sul-Americano. Máximo adverte para o fato de que essa interpretação da “profecia” de Graciliano Ramos pode também ser equivocada, se se compreender que a análise graciliânica se direciona ao Brasil como um todo, “quando na verdade ele só se referia ao sertão alagoano onde nascera e vivia”.
A sentença de que o futebol não pegaria e de que, contra isso, “Não vale o argumento de que ele tem ganho terreno nas capitais de importância”, fez na verdade o autor situar-se numa fronteira entre duas realidades distintas de um mesmo país, pois não havia uma só nação no Brasil da época, mas havia distintos brasis. De um lado, um Brasil de grandes cidades litorâneas que reunia, como escreveu o Mestre Graça, “gente de outras raças ou que pretende ser de outras raças”; onde “os viciados elegantes absorvem o ópio, a cocaína, a morfina”; onde “assiste-se, cochilando, à representação de peças que poucos entendem, mas que todos aplaudem, ao sinal da claque”; onde há “o maxixe, o tango, o foxtrote, o one-step e outras danças de nomes atrapalhados”; enquanto o sertão se limitava à presença de “botocudos”, “cabindas” e “galegos”; a ser o lugar onde “há pessoas que ainda fumam liamba”; onde “há criaturas que nunca viram um gringo”; e onde ainda se dança só o samba. Em síntese, a cidade grande, multicultural, seria aberta às “estrangeirices” que “não entram facilmente na terra do espinho”, cujas fortes tradições se opunham à superficialidade da vida citadina.
Grande ponto negativo que Graciliano atribuiu à aceitação da então novidade é relativo à cultura física do palmeirense, que ele observava totalmente descurada: “Temos esportes, alguns propriamente nossos, batizados patrioticamente em língua de preto, de cunho regional, mas por desgraça estão abandonados pela débil mocidade de hoje. Além da inócua brincadeira de jogar sapatadas e de alguns cascudos e safanões sem valor que, de boa vontade, permutamos uns com os outros, quando somos crianças, não temos nenhum exercício. Somos, em geral, franzinos, mirrados, fraquinhos, de uma pobreza de músculos lastimável. A parte do nosso organismo que mais se desenvolve é a orelha, graças aos puxões maternos, mas não está provado que isto seja um desenvolvimento de utilidade. Para que serve a gente orelhuda? O burro também possui consideráveis apêndices auriculares, o que não impede que o considerem, injustamente, o mais estúpido dos bichos. (...) Fisicamente falando, somos uma verdadeira miséria. Moles, bambos, murchos, tristes – uma lástima! Pálpebras caídas, braços caídos, um caimento generalizado que faz de nós o ser desengonçado, bisonho, indolente, com ar de quem repete, desenxabido e encolhido, a frase pulha que se tornou popular: ‘Me deixa...’”.


Diante dessa realidade de gente “derreada”, “que tropeça”, “que corcova”, “que arfa ao peso da barriga cheia de unto”, Graciliano pergunta o porquê da escolha do futebol, se a maganagem poderia se exercitar em “jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo”. Não que o autor admitisse sentir repugnância por “coisas exóticas”, mas declarou gostar de indagar sobre a capacidade de assimilação das mesmas por parte dos sertanejos: “No caso afirmativo, seja muito bem-vinda a instituição alheia, fecundemo-la, arranjemos nela um filho híbrido que possa viver cá em casa. De outro modo, resignemo-nos às broncas tradições dos sertanejos e dos matutos. Ora, parece-me que o futebol não se adapta a essas boas paragens do cangaço. É roupa de empréstimo, que não nos serve. Para que um costume intruso possa estabelecer-se definitivamente em um país, é necessário não só que se harmonize com a índole do povo que o vai receber, mas que o lugar a ocupar não esteja tomado por outro mais antigo, de cunho indígena. É preciso, pois, que vá preencher uma lacuna, como diz o chavão. O do futebol não preenche coisa nenhuma, pois já temos a muito conhecida bola de palha de milho, que nossos amadores mambembes jogam com uma perícia que deixaria o mais experimentado sportman britânico de queixo caído. Os campeões brasileiros não teriam feito a figura triste que fizeram em Antuérpia se a bola figurasse nos programas das Olimpíadas e estivessem a disputá-la quatro sujeitos de pulso. Apenas um representante nosso conseguiu ali distinguir-se, no tiro de revólver, o que é pouco lisonjeiro para a vaidade de um país em que se fala tanto. Aqui seria muito mais fácil o indivíduo salientar-se no tiro de espingarda umbigada, emboscado atrás de um pau”.
A crítica ao futebol contida no discurso graciliânico, como se vê, ultrapassa o debate esportivo e se estende às instituições sociais e políticas de seu tempo, à cultura da violência, quando aconselha com ironia à mocidade o abandono do cultivo do cérebro, substituído pelo desenvolvimento dos músculos, embora não precisassem ir tão longe à procura de “esquisitices” com nomes que eles nem soubessem pronunciar: “Reabilitem os esportes regionais, que aí estão abandonados: o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada, e, melhor que tudo, o camba-pé, a rasteira. A rasteira! Este, sim, é o esporte nacional por excelência! Todos nós vivemos mais ou menos a atirar rasteira uns nos outros. Logo na aula primária habituamo-nos a apelar para as pernas quando nos falta a confiança no cérebro – e a rasteira nos salva. Na vida prática, é claro que aumenta a natural tendência que possuímos para nos utilizarmos eficientemente da canela. No comércio, na indústria, nas letras e nas artes, no jornalismo, no teatro, nas cavações, a rasteira triunfa. Cultivem a rasteira, amigos! E se algum de vocês tiver vocação para a política, então sim, é a certeza plena de vencer com auxílio dela. É aí que ela culmina. Não há político que a não pratique. Desde S. Exa. o senhor presidente da República até o mais pançudo e beócio coronel da roça, desses que usam sapatos de trança, bochechas moles e espadagão da Guarda Nacional, todos os salvadores da pátria têm a habilidade de arrastar o pé no momento oportuno. Cultivem a rasteira, rapazes!”.


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