Publicado em sociedade por Cosme Rogério,
em obviusmagazine
Em tempos
de crise no futebol mundial, com escândalos de corrupção envolvendo dirigentes
da FIFA, uma reflexão escrita há mais de nove décadas ilumina a questão sobre o
papel desse esporte na construção da identidade nacional brasileira. Com a
palavra, Graciliano Ramos.
Sempre
que se trata da relação entre intelectuais e futebol no Brasil, costuma-se
lembrar daqueles que falharam em suas profecias feitas sobre esse esporte no
começo do século XX. Graciliano Ramos, mestre da literatura universal, é um
deles. Em 1921, no jornal “O Índio”, às vésperas da chegada do esporte “dos
países civilizados” em Palmeira dos Índios, cidade nordestina onde viveu boa
parte de sua vida, Graciliano declarou enfaticamente: “o futebol não pega,
tenham a certeza”. A história revelou exatamente o contrário da prédica
graciliânica, pois a prática do futebol criou profundas raízes em todo o país,
ajudando a construir a identidade nacional brasileira.
O
que teria levado Graciliano Ramos a preconceber o esporte bretão, praticado no
Brasil já havia três décadas, como “uma lembrança que certamente será bem
recebida pelo público, que, de ordinário, adora as novidades”; como algo que
apenas ia “ser, por algum tempo, a mania, a maluqueira, a idéia fixa de muita
gente”; como uma “excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de
palha capaz de durar bem um mês”? De acordo com os pesquisadores Antônio Jorge
Soares e Hugo Rodolfo Lovisolo, o erro da análise graciliânica sobre o caso
reside na própria mecânica de argumentação do consagrado romancista. Explicam
eles: “Seu modo de argumentação é de cara funcionalista, como grande parte da
reflexão inspirada no cientificismo de seu tempo, e baseia-se na
correspondência entre uma realidade nacional ou regional e uma instituição.
Ademais, congela a tradição e sua renovação, fecha os processos de “resignificação’
e, por último, opera, formalmente, ignorando as características singulares do
objeto a ser integrado, no caso, o futebol. Temos, assim, na aliança entre
funcionalismo com uma visão mecanicista da tradição e a ignorância das
singularidades do esporte em pauta, o motor de seu erro”.
Devemos,
contudo, considerar a observação de João Máximo no livro Brasil – Um
Século de Futebol, organizado por Leonel Kaz, ao discorrer sobre o “fim da
infância” do futebol brasileiro, no início da década de 1920, logo após a
conquista do primeiro título internacional para o país – o Campeonato
Sul-Americano. Máximo adverte para o fato de que essa interpretação da
“profecia” de Graciliano Ramos pode também ser equivocada, se se compreender
que a análise graciliânica se direciona ao Brasil como um todo, “quando na
verdade ele só se referia ao sertão alagoano onde nascera e vivia”.
A
sentença de que o futebol não pegaria e de que, contra isso, “Não vale o
argumento de que ele tem ganho terreno nas capitais de importância”, fez na
verdade o autor situar-se numa fronteira entre duas realidades distintas de um
mesmo país, pois não havia uma só nação no Brasil da época, mas havia distintos
brasis. De um lado, um Brasil de grandes cidades litorâneas que reunia, como
escreveu o Mestre Graça, “gente de outras raças ou que pretende ser de outras
raças”; onde “os viciados elegantes absorvem o ópio, a cocaína, a morfina”;
onde “assiste-se, cochilando, à representação de peças que poucos entendem, mas
que todos aplaudem, ao sinal da claque”; onde há “o maxixe, o tango, o
foxtrote, o one-step e outras danças de nomes atrapalhados”; enquanto o sertão
se limitava à presença de “botocudos”, “cabindas” e “galegos”; a ser o lugar
onde “há pessoas que ainda fumam liamba”; onde “há criaturas que nunca viram um
gringo”; e onde ainda se dança só o samba. Em síntese, a cidade grande,
multicultural, seria aberta às “estrangeirices” que “não entram facilmente na
terra do espinho”, cujas fortes tradições se opunham à superficialidade da vida
citadina.
Grande
ponto negativo que Graciliano atribuiu à aceitação da então novidade é relativo
à cultura física do palmeirense, que ele observava totalmente descurada: “Temos
esportes, alguns propriamente nossos, batizados patrioticamente em língua de
preto, de cunho regional, mas por desgraça estão abandonados pela débil
mocidade de hoje. Além da inócua brincadeira de jogar sapatadas e de alguns
cascudos e safanões sem valor que, de boa vontade, permutamos uns com os
outros, quando somos crianças, não temos nenhum exercício. Somos, em geral,
franzinos, mirrados, fraquinhos, de uma pobreza de músculos lastimável. A parte
do nosso organismo que mais se desenvolve é a orelha, graças aos puxões
maternos, mas não está provado que isto seja um desenvolvimento de utilidade.
Para que serve a gente orelhuda? O burro também possui consideráveis apêndices
auriculares, o que não impede que o considerem, injustamente, o mais estúpido
dos bichos. (...) Fisicamente falando, somos uma verdadeira miséria. Moles,
bambos, murchos, tristes – uma lástima! Pálpebras caídas, braços caídos, um
caimento generalizado que faz de nós o ser desengonçado, bisonho, indolente,
com ar de quem repete, desenxabido e encolhido, a frase pulha que se tornou
popular: ‘Me deixa...’”.
Diante
dessa realidade de gente “derreada”, “que tropeça”, “que corcova”, “que arfa ao
peso da barriga cheia de unto”, Graciliano pergunta o porquê da escolha do
futebol, se a maganagem poderia se exercitar em “jogos nacionais, sem mescla de
estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo”. Não que o
autor admitisse sentir repugnância por “coisas exóticas”, mas declarou gostar
de indagar sobre a capacidade de assimilação das mesmas por parte dos
sertanejos: “No caso afirmativo, seja muito bem-vinda a instituição alheia,
fecundemo-la, arranjemos nela um filho híbrido que possa viver cá em casa. De
outro modo, resignemo-nos às broncas tradições dos sertanejos e dos matutos.
Ora, parece-me que o futebol não se adapta a essas boas paragens do cangaço. É
roupa de empréstimo, que não nos serve. Para que um costume intruso possa
estabelecer-se definitivamente em um país, é necessário não só que se harmonize
com a índole do povo que o vai receber, mas que o lugar a ocupar não esteja
tomado por outro mais antigo, de cunho indígena. É preciso, pois, que vá
preencher uma lacuna, como diz o chavão. O do futebol não preenche coisa
nenhuma, pois já temos a muito conhecida bola de palha de milho, que nossos
amadores mambembes jogam com uma perícia que deixaria o mais experimentado sportman britânico
de queixo caído. Os campeões brasileiros não teriam feito a figura triste que
fizeram em Antuérpia se a bola figurasse nos programas das Olimpíadas e
estivessem a disputá-la quatro sujeitos de pulso. Apenas um representante nosso
conseguiu ali distinguir-se, no tiro de revólver, o que é pouco lisonjeiro para
a vaidade de um país em que se fala tanto. Aqui seria muito mais fácil o
indivíduo salientar-se no tiro de espingarda umbigada, emboscado atrás de um
pau”.
A
crítica ao futebol contida no discurso graciliânico, como se vê, ultrapassa o
debate esportivo e se estende às instituições sociais e políticas de seu tempo,
à cultura da violência, quando aconselha com ironia à mocidade o abandono do
cultivo do cérebro, substituído pelo desenvolvimento dos músculos, embora não
precisassem ir tão longe à procura de “esquisitices” com nomes que eles nem
soubessem pronunciar: “Reabilitem os esportes regionais, que aí estão
abandonados: o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil
a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de
bois, o salto, a cavalhada, e, melhor que tudo, o camba-pé, a rasteira. A
rasteira! Este, sim, é o esporte nacional por excelência! Todos nós vivemos
mais ou menos a atirar rasteira uns nos outros. Logo na aula primária
habituamo-nos a apelar para as pernas quando nos falta a confiança no cérebro –
e a rasteira nos salva. Na vida prática, é claro que aumenta a natural
tendência que possuímos para nos utilizarmos eficientemente da canela. No
comércio, na indústria, nas letras e nas artes, no jornalismo, no teatro, nas
cavações, a rasteira triunfa. Cultivem a rasteira, amigos! E se algum de vocês
tiver vocação para a política, então sim, é a certeza plena de vencer com
auxílio dela. É aí que ela culmina. Não há político que a não pratique. Desde
S. Exa. o senhor presidente da República até o mais pançudo e beócio coronel da
roça, desses que usam sapatos de trança, bochechas moles e espadagão da Guarda
Nacional, todos os salvadores da pátria têm a habilidade de arrastar o pé no
momento oportuno. Cultivem a rasteira, rapazes!”.
© obvious: http://lounge.obviousmag.org/espaco_cosmico/2015/06/futebol-e-fogo-de-palha-segundo-graciliano-ramos.html#ixzz3cT1wtVaF
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