Bia Lopes
Publicitária e escorpiana, não
necessariamente nessa ordem. Coleciono paixões, as maiores delas pela escrita,
música e cinema. Inquieta por natureza e sonhadora incorrigível. De passagem
por este mundo, tentando, aprendendo, vivendo.
Publicado em cinema por Bia Lopes,
em obviusmagazine
O cinema brasileiro, embora com as influências
estrangeiras que sofreu no decorrer da sua história, tem sido, em algumas
produções, uma ferramenta de comunicação à disposição da cultura popular. Foi
assim primeiramente no Cinema Novo, quando se tentava mostrar a realidade das
classes mais excluídas do país, passou a ser assim também a partir do cinema da
Retomada.
O
Auto da Compadecida, em sua primeira produção pelo diretor Guel Arraes, foi
filmado em película e produzido como microssérie da TV, conquistando em 1999 o
Grande Prêmio da Crítica, concedido pela Associação Paulista dos Críticos de
Arte (APCA). Reeditada em 2000, a microssérie foi adaptada para as telas de
cinema com uma hora a menos de duração e lançada algum tempo depois em DVD.
O
filme, baseado na obra de Ariano Suassuna, recebeu influência da literatura
popular nordestina, assim como o próprio Auto, cujo autor se inspirou em
leituras de cordéis. Em primeiro olhar, essa percepção se dá a partir da figura
de João Grilo, personagem do folheto As Palhaçadas de João Grilo, de João
Ferreira de Lima e ampliado algum tempo depois por João Martins de Atahíde,
recebendo o título de As Proezas de João Grilo.
O
personagem do filme, fiel ao da obra de Suassuna, tem as mesmas características
que o do folheto, parecendo tanto fisicamente como intelectualmente, como
comprova a primeira estrofe do cordel (João Grilo foi um Cristão / Que nasceu
antes do dia / Criou-se sem formosura / mas tinha sabedoria / e morreu depois
da hora / pelas artes que fazia.). Embora o personagem João Grilo seja
originário da Europa, tendo suas raízes em Portugal, assim como a própria
literatura de cordel, é no Nordeste brasileiro que ele renasce, por meio desta
literatura, representando a coragem e a força do nordestino, mas encarnando o
papel de anti-herói pelas peripécias que vem a cometer. E é este personagem que
ganha a empatia do público na obra de Ariano Suassuna e no filme de Guel Arraes.
João
Grilo é uma figura típica do espertalhão, que não pensa duas vezes antes de
tirar vantagem de alguma situação. Porém, sua função no filme é retratar a luta
pela sobrevivência numa terra onde a escassez predomina. A astúcia acrescentada
ao personagem lhe permite sobreviver à exploração dos mais fortes,
representados primeiramente pelos patrões, seguidos pelo Major Antônio Moraes
(representação do coronelismo no Nordeste) e por Severino (representação do
cangaço).
Assim
como o personagem de Ariano e de Guel Arraes, o João Grilo do folheto usa da
esperteza não só para se vingar ou insultar seus desafetos, mas também para
enfrentar situações difíceis, tendo a inteligência como instinto de
sobrevivência. A astúcia do personagem é retratada nos versos quando este, em
sala de aula, faz ao professor questionamentos da filosofia popular ao invés de
perguntas de caráter científico: Um dia pergunta ao mestre: / o que é que Deus
não vê / o homem vê qualquer hora? / diz ele: não pode ser / pois Deus vê tudo no
mundo / em menos de um segundo / tudo pode saber. / João Grilo disse: qual nada
/ quede os elementos seus? / abra os olhos, mestre velho / que vou lhe mostrar
os meus / seus estudos se consomem / um homem vê outro homem / só Deus não vê
outro Deus.
No
filme, é do próprio João Grilo que vem a expressão da literatura popular oral
quando, na hora do julgamento, ele resolve apelar para Nossa Senhora: Valha-me
Nossa Senhora / mãe de Deus de Nazaré / a vaca mansa dá leite / a braba dá
quando quer / a mansa dá sossegada / a braba levanta o pé / já fui barco, fui
navio / agora sou escaler / já fui menino, já fui homem / só me falta ser
mulher / valei-me Nossa Senhora / Mãe de Jesus de Nazaré! Os versos recitados
por João Grilo têm semelhança tanto com a literatura de cordel propriamente
dita, como com os versos recitados muitas vezes por palhaços em picadeiros
circenses no Nordeste, o que é perceptível pela característica cômica dos
versos.
É
a partir dessa relação com a literatura de cordel que o filme O Auto da Compadecida
noticia a cultura popular. Apropriando-se do texto de Suassuna, porém
adaptando-o, acrescentando-lhe personagens, como Rosinha, por exemplo, que não
está presente no Auto original, mas em outra obra de Suassuna, e com a
linguagem cinematográfica, o filme aproxima-se do público contando-lhe
histórias, causos e tradições que fazem parte da cultura e da religiosidade
popular.
O
filme apresenta ao público personagens antes conhecidos somente nos folhetos de
cordel e nos contos populares. Ariano Suassuna afirmou ter se baseado
diretamente em pelo menos três folhetos da literatura de cordel: O Enterro do
Cachorro, A História do Cavalo que Defecava Dinheiro e O Castigo da Soberba,
obras que atualmente são consideradas raras pelos cordelistas e colecionadores,
mas que têm suas histórias repassadas à grande massa por meio do filme de Guel
Arraes.
O
próprio título, ao fazer uso do termo “auto”, refere-se a uma prática que
durante muitos anos foi comum no Nordeste, uma encenação que tinha por objetivo
o ensinamento e a tradição religiosa. Também originária de Portugal, acabou
ganhando características particulares no sertão nordestino e tornando-se
prática bastante frequente, na qual são encenados enredos populares. No Brasil,
pela cultura diversificada, também fazem parte elementos indígenas e africanos
(como os pastoris e as lapinhas, por exemplo), e outros personagens folclóricos
criados pelo povo.
E
é sob o olhar de João Grilo, sob a sua perspectiva que o espectador passa a
conhecer as histórias originárias dos folhetos, embora muitos desconheçam a sua
procedência, mas as acompanham atentamente ao assistir o trágico e atrapalhado
enterro da cachorra, o hilário episódio do gato que “descome” dinheiro e o
julgamento de todos os personagens, quando lhes são apontados erros tão comuns
aos seres humanos. Singelamente surgem as críticas sociais e religiosas, sem
criticar de fato a religião, mas o desvio de conduta de algumas autoridades a
ela pertencentes.
Ao
afirmar que “a esperteza é a arma do pobre”, a Compadecida não prega o erro
injustificável, mas ressalta, como ela própria diz, “a triste condição do
homem”. Esse olhar de misericórdia representa a imagem que o povo católico
(religião durante muito tempo predominante no sertão nordestino) tem de Nossa
Senhora e a sua devoção por ela, colocando a fé como base de sua força, de sua
sobrevivência. O Auto da Compadecida é assim uma mistura de literatura, teatro
e cinema, mas também é circo, é teledramaturgia, é literatura de cordel; um
misto de tudo aquilo que pode ser usado para divulgar o jeito de ser nordestino
e a sua cultura popular. Independente da aprovação da crítica, ele cumpre seu
papel, comunicando e levantando, mesmo que indiretamente, questionamentos
sociais. Numa época em que o cinema brasileiro ainda sofre muito as influências
estrangeiras e é bastante submetido às produções comerciais, especialmente as
norte-americanas, o filme de Guel Arraes torna-se vitorioso pela conquista
espontânea do público brasileiro que, maravilhado com a própria imagem, comparece
em grande número às salas de exibição.
Junto
a isso, divulga e ao mesmo tempo enriquece a cultura deste povo, sempre tão
exposto às diversas influências e que acaba por necessitar de um reforço para
perceber a beleza daquilo que sempre esteve tão próximo e que é particularmente
tão seu. Assim, cordel e cinema, juntos, como no filme O Auto da Compadecida,
trabalham a serviço da divulgação da cultura popular.
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