sábado, 6 de junho de 2015

O AUTO DA COMPADECIDA: O CINEMA COMO MEIO DE DIVULGAÇÃO DA CULTURA POPULAR

 Bia Lopes

Publicitária e escorpiana, não necessariamente nessa ordem. Coleciono paixões, as maiores delas pela escrita, música e cinema. Inquieta por natureza e sonhadora incorrigível. De passagem por este mundo, tentando, aprendendo, vivendo.
  
Publicado em cinema por Bia Lopes,
em obviusmagazine

O cinema brasileiro, embora com as influências estrangeiras que sofreu no decorrer da sua história, tem sido, em algumas produções, uma ferramenta de comunicação à disposição da cultura popular. Foi assim primeiramente no Cinema Novo, quando se tentava mostrar a realidade das classes mais excluídas do país, passou a ser assim também a partir do cinema da Retomada.
  


O Auto da Compadecida, em sua primeira produção pelo diretor Guel Arraes, foi filmado em película e produzido como microssérie da TV, conquistando em 1999 o Grande Prêmio da Crítica, concedido pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Reeditada em 2000, a microssérie foi adaptada para as telas de cinema com uma hora a menos de duração e lançada algum tempo depois em DVD.
O filme, baseado na obra de Ariano Suassuna, recebeu influência da literatura popular nordestina, assim como o próprio Auto, cujo autor se inspirou em leituras de cordéis. Em primeiro olhar, essa percepção se dá a partir da figura de João Grilo, personagem do folheto As Palhaçadas de João Grilo, de João Ferreira de Lima e ampliado algum tempo depois por João Martins de Atahíde, recebendo o título de As Proezas de João Grilo.
O personagem do filme, fiel ao da obra de Suassuna, tem as mesmas características que o do folheto, parecendo tanto fisicamente como intelectualmente, como comprova a primeira estrofe do cordel (João Grilo foi um Cristão / Que nasceu antes do dia / Criou-se sem formosura / mas tinha sabedoria / e morreu depois da hora / pelas artes que fazia.). Embora o personagem João Grilo seja originário da Europa, tendo suas raízes em Portugal, assim como a própria literatura de cordel, é no Nordeste brasileiro que ele renasce, por meio desta literatura, representando a coragem e a força do nordestino, mas encarnando o papel de anti-herói pelas peripécias que vem a cometer. E é este personagem que ganha a empatia do público na obra de Ariano Suassuna e no filme de Guel Arraes.
João Grilo é uma figura típica do espertalhão, que não pensa duas vezes antes de tirar vantagem de alguma situação. Porém, sua função no filme é retratar a luta pela sobrevivência numa terra onde a escassez predomina. A astúcia acrescentada ao personagem lhe permite sobreviver à exploração dos mais fortes, representados primeiramente pelos patrões, seguidos pelo Major Antônio Moraes (representação do coronelismo no Nordeste) e por Severino (representação do cangaço).



Assim como o personagem de Ariano e de Guel Arraes, o João Grilo do folheto usa da esperteza não só para se vingar ou insultar seus desafetos, mas também para enfrentar situações difíceis, tendo a inteligência como instinto de sobrevivência. A astúcia do personagem é retratada nos versos quando este, em sala de aula, faz ao professor questionamentos da filosofia popular ao invés de perguntas de caráter científico: Um dia pergunta ao mestre: / o que é que Deus não vê / o homem vê qualquer hora? / diz ele: não pode ser / pois Deus vê tudo no mundo / em menos de um segundo / tudo pode saber. / João Grilo disse: qual nada / quede os elementos seus? / abra os olhos, mestre velho / que vou lhe mostrar os meus / seus estudos se consomem / um homem vê outro homem / só Deus não vê outro Deus.
No filme, é do próprio João Grilo que vem a expressão da literatura popular oral quando, na hora do julgamento, ele resolve apelar para Nossa Senhora: Valha-me Nossa Senhora / mãe de Deus de Nazaré / a vaca mansa dá leite / a braba dá quando quer / a mansa dá sossegada / a braba levanta o pé / já fui barco, fui navio / agora sou escaler / já fui menino, já fui homem / só me falta ser mulher / valei-me Nossa Senhora / Mãe de Jesus de Nazaré! Os versos recitados por João Grilo têm semelhança tanto com a literatura de cordel propriamente dita, como com os versos recitados muitas vezes por palhaços em picadeiros circenses no Nordeste, o que é perceptível pela característica cômica dos versos.
É a partir dessa relação com a literatura de cordel que o filme O Auto da Compadecida noticia a cultura popular. Apropriando-se do texto de Suassuna, porém adaptando-o, acrescentando-lhe personagens, como Rosinha, por exemplo, que não está presente no Auto original, mas em outra obra de Suassuna, e com a linguagem cinematográfica, o filme aproxima-se do público contando-lhe histórias, causos e tradições que fazem parte da cultura e da religiosidade popular.


O filme apresenta ao público personagens antes conhecidos somente nos folhetos de cordel e nos contos populares. Ariano Suassuna afirmou ter se baseado diretamente em pelo menos três folhetos da literatura de cordel: O Enterro do Cachorro, A História do Cavalo que Defecava Dinheiro e O Castigo da Soberba, obras que atualmente são consideradas raras pelos cordelistas e colecionadores, mas que têm suas histórias repassadas à grande massa por meio do filme de Guel Arraes.
O próprio título, ao fazer uso do termo “auto”, refere-se a uma prática que durante muitos anos foi comum no Nordeste, uma encenação que tinha por objetivo o ensinamento e a tradição religiosa. Também originária de Portugal, acabou ganhando características particulares no sertão nordestino e tornando-se prática bastante frequente, na qual são encenados enredos populares. No Brasil, pela cultura diversificada, também fazem parte elementos indígenas e africanos (como os pastoris e as lapinhas, por exemplo), e outros personagens folclóricos criados pelo povo.
E é sob o olhar de João Grilo, sob a sua perspectiva que o espectador passa a conhecer as histórias originárias dos folhetos, embora muitos desconheçam a sua procedência, mas as acompanham atentamente ao assistir o trágico e atrapalhado enterro da cachorra, o hilário episódio do gato que “descome” dinheiro e o julgamento de todos os personagens, quando lhes são apontados erros tão comuns aos seres humanos. Singelamente surgem as críticas sociais e religiosas, sem criticar de fato a religião, mas o desvio de conduta de algumas autoridades a ela pertencentes.
Ao afirmar que “a esperteza é a arma do pobre”, a Compadecida não prega o erro injustificável, mas ressalta, como ela própria diz, “a triste condição do homem”. Esse olhar de misericórdia representa a imagem que o povo católico (religião durante muito tempo predominante no sertão nordestino) tem de Nossa Senhora e a sua devoção por ela, colocando a fé como base de sua força, de sua sobrevivência. O Auto da Compadecida é assim uma mistura de literatura, teatro e cinema, mas também é circo, é teledramaturgia, é literatura de cordel; um misto de tudo aquilo que pode ser usado para divulgar o jeito de ser nordestino e a sua cultura popular. Independente da aprovação da crítica, ele cumpre seu papel, comunicando e levantando, mesmo que indiretamente, questionamentos sociais. Numa época em que o cinema brasileiro ainda sofre muito as influências estrangeiras e é bastante submetido às produções comerciais, especialmente as norte-americanas, o filme de Guel Arraes torna-se vitorioso pela conquista espontânea do público brasileiro que, maravilhado com a própria imagem, comparece em grande número às salas de exibição.
Junto a isso, divulga e ao mesmo tempo enriquece a cultura deste povo, sempre tão exposto às diversas influências e que acaba por necessitar de um reforço para perceber a beleza daquilo que sempre esteve tão próximo e que é particularmente tão seu. Assim, cordel e cinema, juntos, como no filme O Auto da Compadecida, trabalham a serviço da divulgação da cultura popular.


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