Livro
O curador Paulo Werneck é contra endeusar a literatura e a favor de
escritoras no evento
CAMILA MORAES São Paulo 3 JUN 2015
El País – O JORNAL GLOBAL
Paulo Werneck, curador da Flip, durante a coletiva de imprensa do
evento. / MAYRA AZZI
Quando o livro desce
do salto no Brasil, passa a correr graves riscos. Isso fica claro quando
eventos literários de caráter público sofrem para se manter em pé no país,
ainda que contribuam (muito) para a formação de leitores e coloquem a
Cultura no centro da vida pública, ao menos nos dias em que acontecem.
Nosso mais
destacado encontro do gênero, a Festa Literária Internacional de Paraty
(Flip) – que trouxe ao país o tradicional formato das mesas de escritores
frente a uma plateia – sofreu este ano um corte de 15% no orçamento de que
dispunha em 2014, mas se mantém de pé. O esforço é digno de nota, ainda que
haja lutas mais cruéis, como a que abateu a 16a Jornada
Literária de Passo Fundo – cancelada por falta de fundos, mesmo carregando os
louros de ser o primeiro evento brasileiro do gênero empenhado na difusão da
leitura.
Paulo Werneck, editor, jornalista e tradutor que
responde pela programação da Flip pelo segundo ano consecutivo, defende o
formato com afinco. Contrariando certa visão de escritores e outros deuses (ou
endeusados) do mundo editorial, ele refuta a ideia de que o evento “é só
badalação” e defende “uma partida democrática da literatura”, como a que busca
forjar em Paraty. “Essa tentativa de pichar a Flip ou qualquer festival
literário como sendo uma badalação frívola e mundana é uma coisa, no fundo,
mais elitista. No Brasil, a literatura é muito idealizada, e o escritor é
colocado em um pedestal”, diz.
Criada há 13 anos com o objetivo de movimentar a economia da turística
Paraty nas entressafras de inverno da cidade, a Flip atingiu um faturamento de
R$ 13 milhões em 2012, segundo estudo do instituto Datafolha. A pesquisa
concluiu que, desde a primeira edição do evento, em 2003, a cidade do Estado do
Rio de Janeiro passou por mudanças econômicas, culturais e urbanísticas
relevantes.
Mauro Munhoz, arquiteto e diretor presidente da Casa Azul, responsável
pela organização do evento, descreve a Flip como "case" por unir
cultura aos negócios cujas possibilidades se abrem junto com as portas do
evento. Mesmo assim, viu seus recursos minguarem de 2014 para 2015: o orçamento
arrecadado via leis de incentivo e vendas de livros na livraria parceira passou
de R$ 8,6 milhões para R$ 7,4 milhões este ano. A dificuldade de patrocínio é
atribuída à conjuntura econômica pela qual passa o país.
A Flip empregou no
ano passado 612 pessoas. Os escritores convidados não recebem cachê, seguindo,
como explica Munhoz, o princípio de economicidade (e não de lucro) do evento.
Na próxima edição (de 1 a 5 de julho), serão 39 autores em 29 mesas de debate.
Os ingressos já estão à venda por R$ 50 (quatro reais a mais do que
no ano passado).
O esforço
de Werneck – que foi editor por 11 anos na Companhia das Letras e na Cosac
Naify, implementou o caderno Ilustríssima, da Folha de S.
Paulo, onde ficou por três anos, e é coautor do livro Cabras – Caderno
de viagem, com Antonio Prata, Chico Mattoso e Zé Vicente – pende para o
lado contrário. No ano passado, quando ele assumiu a curadoria, a programação
ganhou um notável toque de humor (já desde o homenageado, o escritor
e humorista Millôr Fernandes), além de ampliar o diálogo com a literatura, com
convites a profissionais de áreas correlatas.
Este ano, o
mix de convidados resulta ainda mais pop, com a presença, por exemplo, de
autores relacionados à música – tema pouco explorado até hoje dentro nas tendas
da festa. Merece menção, também, a presença mais consolidada de nomes da
literatura do resto da América Latina, que, apesar da óbvia proximidade, luta
para circular no Brasil. Sem falar no espaço dados às mulheres, que o curador
reconhece que é crítico (inclusive) nas letras e que ele quer aumentar. “Se
todas as mulheres que convidei nos últimos dois anos tivessem aceitado,
teríamos uma Flip com 50% ou mais de mulheres”, afirma.
Pergunta. É
difícil ser o curador da maior festa literária do Brasil, que assim como é
querida por muitos, também recebe críticas?
Resposta. É um
lugar privilegiado, sem dúvida. Em relação às críticas, no ano passado o que
chegou para mim foi a crítica do editor da Record sobre a ausência de autores
de literatura brasileira da editora na programação. Acho muito engraçado isso
ter sido legitimado como crítica, porque ele é editor, logo está defendendo
seus interesses. Normal, como todo mundo. Mas não é um crítico literário
fazendo uma avaliação crítica. De modo geral, achei que a receptividade foi
muito boa, este ano também. Claro que há erros que se cometem, mas acho que
está dando certo. Estou mais confiante. Você começa a aprender algumas manhas,
a chegar em autores mais difíceis, a aceitar o ‘não’, o cancelamento... As
pessoas veem a programação como se ela fosse resultado direto do desejo do
curador. Não é verdade.
P. É
preciso acompanhar as notícias para compor a programação?
R. É bom
estar ligado e desligado, né? Preciso prestar atenção na atualidade. Por
exemplo, vamos ter uma mesa sobre a Charlie Abdo com o Hyatt Sattouf, que vai
falar sobre cartoon, cultura árabe, batalhas culturais entre árabes
e franceses e tal. É um tema atual, certo? Mas tem mil outros, e precisamos ter
certo critério para ver o que vai chegar na Flip, lá adiante, como uma
discussão importante. No ano passado, tinha a Copa do Mundo. Todo mundo falava:
“E não vai ter discussão sobre a Copa?”. No final, ninguém sentiu falta de
discutir o tema na Flip. Ao mesmo tempo em que o evento oferece uma visão da
vida contemporânea mundial – com pontos de vista específicos como o do Sattouf,
expressos por um viés literário –, é preciso saber se retirar também. O
noticiário e as discussões em redes sociais já estão tão dominados, que às
vezes é bom que a Flip não fale de certas coisas. Para deixar que novas coisas
apareçam.
P. E
você lê todos os autores?
R. Claro.
Eu me sinto na obrigação de ler todos. Muitos eu já li, são autores que eu
conhecia e admirava. Outros passaram a conhecer agora. Até a Flip, procuro
fazer uma boa leitura de quem eu convidei. Acho que o nosso meio editorial tem
uma cultura de falar de livros sem ter lido. Isso é muito comum em feiras
literárias, como a de Frankfurt. Os editores têm reuniões de cinco minutos, em
que eles descrevem dez romances, todos como “maravilhosos e sensacionais” e
tal, e compram livros nessa base. Eu procuro resistir, sempre peço o texto para
fundamentar minhas escolhas. Mas também não posso estudar a fundo. Não sou
crítico literário, minha função não é exatamente essa.
P. Algumas
pessoas do meio literário, especialmente escritores, costumam torcer o nariz
para o evento. Por quê?
Essa tentativa de pichar a Flip ou qualquer festival literário como
sendo só badalação frívola e mundana é uma coisa, no fundo, mais elitista"
R. Vejo
nisso uma crítica a um modelo de festival literário, que é um formato
consagrado mundialmente e que a Flip representa no Brasil. Durante o evento, é
amplo o espaço que se dá à literatura nos jornais, nas revistas, na televisão.
O Jornal Nacional dá uma matéria sobre a Flip a cada noite do evento,
praticamente, que em um contexto diferente não estaria ali. Os cadernos
culturais do país não estariam escrevendo sobre literatura a semana inteira, se
não tivesse a Flip. Então, acho que ela é extremamente necessária, sim, para a
literatura, porque promove a experiência cultural até mesmo para quem não tem
acesso cotidiano à literatura. Acredito, sinceramente, que quando uma pessoa lê
uma entrevista no jornal com um autor convidado da Flip, ela está tendo uma experiência
cultural ao ler a reportagem – mesmo que ela não vá vê-lo na Flip ou ler o
livro desse autor. Está tendo um contato com ideias novas, com o pensamento do
escritor. Está, de certa forma, na Flip.
P. Há
quem diga que é só badalação.
R. Quem
fala isso é quem nunca foi. Ou quem não gosta de festa, porque não é só
badalação, mas de fato é uma festa. Esse é o clima. As pessoas bebem,
conversam, estão disponíveis... Essa tentativa de pichar a Flip ou qualquer
festival literário como sendo só badalação frívola e mundana é uma coisa, no
fundo, mais elitista. É uma visão que não aceita uma partida democrática da
literatura, como a Flip procura ser. Porque ela não quer que seja uma festa
pública em torno da literatura. Em um país como o Brasil, a literatura é muito
idealizada. O escritor é colocado em um pedestal, que no fundo afasta a pessoa
da literatura. Você começa a achar que não é para você, que não é para todo
mundo, que precisa ter um nível superior para conseguir atingir a experiência
literária. Acho que a Flip a humaniza.
P. Que
resgate a Flip quer fazer com a homenagem a Mário de Andrade?
R. Mario
de Andrade tinha algo interessante, porque tinha essa justaposição entre o
intelectual interessado em cultura popular e o artista de vanguarda. Ele não
queria preservar a cultura popular no sentido museológico. Não queria
embalsamá-la, mas que ela fosse o substrato de uma nova arte. Tanto é que ele
queria isso: que o Villa-Lobos usasse os motivos folclóricos, as canções
populares, como tema da música erudita. E a Flip tem muito disso também, né?
Acho que ele seria um flipeiro de primeira hora, jogando em diversas posições.
P. Na
programação da Flip, a maioria dos escritores convidados costuma ser de homens.
O que você opina sobre a discussão ao redor de mulheres na literatura?
Qual é a resistência [em convidar mulheres]? Não teria sentido não
fazê-lo. Tenho consciência desse problema e gostaria que tivéssemos uma marca
melhor"
R. Acho
que é um problema real e importante. Acontece em todos os lugares. Para mim, as
escritoras mulheres são excelentes convidadas, porque falam muito bem, têm
memória boa, alta capacidade de descrição física, de memória – de reter dados
–, que os homens não têm. Quando alguém está escrevendo um perfil de uma pessoa
morta, por exemplo, é a mulher quem vai lembrar como era o nariz do cara, qual
era a mania que ele tinha, o que ele gostava de comer... Esses detalhes
concretos. Se todas as mulheres que eu convidei neste ano e no ano passado
tivessem aceitado, teríamos uma Flip com 50% ou mais de mulheres. Uma dela sé
Mary Beard, que é uma superprofessora britânica de História Antiga, que estuda
o feminismo na Antiguidade. Estuda onde estavam as mulheres em Roma, na
Grécia... E fez uma conferência sobre como, desde a Grécia Antiga, as mulheres
recebem a ordem de se calar na hora da discussão. Ela não pôde vir. A Marjane
Sartrapi, que eu editei e traduzi, é outro exemplo. Eu a chamei ano passado e
este ano, mas ela não aceitou. Por que eu não convidaria mulheres? Qual é a
resistência? Não teria sentido não fazê-lo. Tenho consciência desse problema e
gostaria que tivéssemos uma marca melhor.
P. Uma
das mesas desta edição conta com as escritoras Ana Luisa Escorel, brasileira, e
Ayelet Waldman, israelense. E é sobre maternidade. Como reagiram a essa
iniciativa?
R. Recebi
uma crítica: “Ah, quando é sobre mulher, é sobre afetividade, família”. Acho
errado, porque no ano passado tivemos uma mesa sobre afetividade e amor gay com
o escritor francês Mathieu Lindon e o Silviano Santiago [Mil rosas roubadas;
Companhia das Letras]. Ou seja, a afetividade não é um assunto que associamos
às mulheres, mas ao ser humano. Este ano, temos uma espécie de núcleo sobre a
vida afetiva. Além da mesa da Ana Luiza Escorel com a Ayelet Waldman, tem a do
Boris Fausto, o historiador, que está lançando um livro sobre a morte da mulher
dele – e é vida afetiva pura. Esse tipo de debate é importante, mas precisa
ser justo também.
P. Ninguém
reclamou dos aumentos de preço das mesas?
R. Reclamamos
do aumento de preço generalizado no país. Tudo está aumentando, e a Flip não
vive numa bolha. Não é uma Ilha da Fantasia.
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