Literatura
Escritora, personificação da
instabilidade, apaixonada por artes, sonha acordada por mais tempo que deveria
e tem a alma presa nos anos setenta.
Publicado em literatura por Raquel Avolio,
em obviusmagazine
É certo dizer que, ao longo da história da Literatura, escritores
demonstraram ser bastante propensos a toda uma vasta gama de transtornos,
infortúnios, desvios de conduta e tragédias. Mas há um subtipo neste grupo que
instiga a curiosidade até mesmo de quem não é um leitor voraz: as mulheres
poetas, quase sempre vítimas fatais da intensidade que as acompanha.
A vida
parece ser pequena demais para algumas poetas: a categoria está repleta de
elementos que encontraram um fim trágico.
Umas vivem
à frente de seus tempos, o que as leva ao desajuste perante família e
sociedade, outras simplesmente não conseguem aprender as artimanhas para viver
uma vida comum. Algumas são vítimas de um destino cruel, muitas vezes ilustrado
por desilusões amorosas ou insatisfação pessoal, e outras sofrem de distúrbios
emocionais incapacitantes. Mas há algo que todas compartilham: elevam o verbo
“sentir” ao último grau de intensidade.
Marina
Tsvetaeva, poeta russa nascida em 8 de Outubro do ano de 1892 e falecida em 31
de Agosto de 1941, afirmou certa vez: “Há algo que eu não soube fazer: viver”.
Sua obra é tida como um dos marcos da literatura russa do século vinte, e foi
admirada por diversos poetas de seu tempo: Rainer Maria Rilke e Boris Pasternak
são exemplos a serem citados. Prevendo que sua relativa falta de reconhecimento
em vida seria revertida um dia, escreveu os seguintes versos: “Por entre o pó
das livrarias, disperso por todo canto / E nunca comprados por ninguém / Porém
similares aos vinhos preciosos, meus versos esperam / Seus tempos virão”. A
partir da década de 60, seu trabalho foi finalmente trazido à luz, e permanece
em lugar de destaque. Ela se enforcou, após uma vida conturbada em meio ao
cenário caótico de revolução e fome em sua terra natal. O compositor russo
Dmitri Shostakovich compôs Seis poemas de Marina Tsvetaeva para piano e
contralto, utilizando de poemas de toda a sua carreira para enfatizar o caráter
cíclico de seu trabalho.
Um dos
poemas mais intrigantes de Marina chama-se “Uma tentativa de ciúme”. Escrito em
1924, é um exemplo claro da característica passional que está presente em todo
o seu trabalho. Versando sobre ciúme e ressentimento de forma igualmente egocêntrica
e devota, a poeta não poupa o leitor das lamúrias do eu lírico, que se dirige
ao objeto vítima do ciúme utilizando de um discurso confessional: “Como está
sua vida com uma mulher / ordinária? sem deus no interior? / A rainha
substituída – / Como você respira agora?". Ela se eleva, despreza a mulher
escolhida pelo homem que ainda ama, mas, no fundo de si, sabe que perdeu tanto
quanto ele: “Você está entediado com o corpo dela? / Como vão as coisas, com
uma mulher terrena / Sem sexto sentido? / Você está feliz? / Não? Em um raso
abismo – como vai sua vida, / meu amado? Difícil como a minha / com outro
homem?”.
A desilusão
amorosa também foi algo que muito inspirou Sylvia Plath, poeta e romancista
americana nascida em 27 de Outubro de 1932 e falecida em 11 de Fevereiro de
1963, talvez a maior, mais popular e mais cultuada figura do cânone das poetas
suicidas. Desconhecida enquanto viva e transformada em ícone após a morte,
Plath foi atormentada por sua própria mente durante toda a vida. Teve uma juventude
marcada pela excelência acadêmica e um relacionamento simbiótico e controlador
com sua mãe. Prolífica e disciplinada, documentou grande parte de seu cotidiano
em diários, hábito que cultivou até o dia de sua morte. Demonstrou interesse
nas artes desde muito nova, através de pinturas e desenhos. O desequilíbrio
emocional que lhe era característico foi estabelecido pela morte do pai quando
ela tinha apenas nove anos. Em Agosto de 1953, Sylvia Plath tentou o suicídio
pela primeira vez, sem êxito. Seguiu-se um casamento tempestuoso com o também
poeta Ted Hughes, com o qual teve dois filhos: Frieda e Nicholas. Escreveu um
romance, A Redoma de Vidro, e diversos poemas, incluindo os que resultariam em
uma das obras centrais da poesia confessional: o já clássico Ariel, lançado
postumamente.
Mergulhada
na profunda depressão que a acompanhou por toda a vida adulta e terminou por
ser agravada em decorrência da separação de seu marido, Plath atingiria o auge
em uma madrugada sombria do inverno mais frio do século na Inglaterra. Ela
deixou dois copos de leite no quarto dos filhos que dormiam, vedou as portas de
toda a casa com toalhas molhadas, foi até a cozinha, abriu o gás e repousou a
cabeça no fundo de seu fogão. Profética, viria a descrever com precisão o cenário
de sua morte em um dos últimos poemas que escreveu, “Edge”: “A mulher está
perfeita. / Morto / Seu corpo veste o sorriso da satisfação, / A ilusão de uma
necessidade grega / Flui pelas dobras de sua toga, / Nus / Seus pés parecem
dizer: / Viemos tão longe, é o fim. / Cada criança morta, uma serpente branca,
/ Envolvendo-se em cada pequena / Vasilha de leite, agora vazias.”
Sylvia
Plath venceu o prêmio Pulitzer em 1982 por uma coletânea em ordem cronológica
de sua obra poética, denominada The Collected Poems. O último volume de seus
diários, compreendendo o fim do ano de 1962 e o início de 1963, foi destruído
por Hughes: ele alegou que não gostaria que seus filhos entrassem em contato
com o material. Tal episódio gerou controvérsia no meio literário, com diversas
figuras acusando-o de ter praticado um gesto egoísta. O pivô da separação do
casal, a alemã Assia Wevill, viria a cometer suicídio pelo mesmo método que
Plath apenas alguns anos após a morte de sua rival, levando consigo a filha que
teve com Ted Hughes, Shura, na época com quatro anos. Em 2009, o filho mais
novo de Sylvia Plath e Ted Hughes, Nicholas, também viria a cometer suicídio.
Em um de
seus poemas mais emblemáticos, “Lady Lazarus”, Sylvia Plath diz: “Morrer / É
uma arte, como tudo o mais. / Eu faço isso excepcionalmente bem. / Eu faço de
forma a parecer infernal. / Eu faço parecer real. / Pode-se dizer que tenho uma
vocação”. Se morrer é uma arte, Plath poderia dizer que Anne Sexton, sua amiga
e companheira de profissão, era excelente artista. Ao saber da notícia do
falecimento de Plath, Sexton comentou: “essa morte era minha”, e “esse foi um
excelente movimento na carreira”. Plath e Sexton se encontraram pela primeira
vez nas aulas de escrita criativa do poeta Robert Lowell (que sofreu com o transtorno
bipolar por grande parte de sua vida, mas faleceu em virtude de um ataque
cardíaco). Após Plath se mudar para a Inglaterra, terra natal de Ted Hughes,
elas mantiveram uma ocasional correspondência epistolar.
Nascida em
9 de Novembro de 1928 e falecida em 4 de Outubro de 1974, Anne Sexton
certamente flertou com a morte mais vezes do que qualquer outra participante do
grupo das poetas suicidas. Sua obra pode ser vista como uma extensa
documentação poética de sua luta contra inúmeras tormentas pessoais, que vão
desde o sentimento de inadequação em diversas áreas de sua vida até o grave
desequilíbrio mental que tanto lhe assombrou e inspirou. Confessional ao
extremo, Anne sempre utilizou sua vida como material primário em seu trabalho.
Ela não mascarou, diminuiu ou ocultou aspectos ora dolorosos, ora extremamente
pessoais de seu dia-a-dia, pelo contrário, fez questão de que seu estilo fosse
brutal e honesto, ao ponto de incomodar críticos e fazer pessoas se retirarem
de seus recitais.
Figura
magnética e sedutora, Anne Sexton terminou por, na sociedade rígida do
pós-guerra, abordar em sua poesia temas como o suicídio, doenças mentais, sexo,
violência e adultério. Começou a escrever por aconselhamento de seu psiquiatra,
e o que deveria ser um auxílio na terapia tornou-se uma carreira profissional.
Ela lamentava profundamente sua falta de instrução formal (Sexton não terminou
os estudos e não fez faculdade), e nutria uma grande desvalorização por si
mesma. Ela conquistou o prêmio Pulitzer no ano de 1967, por seu livro Live or
Die. Em “Wanting to Die”, um dos poemas do livro em questão, Anne versa sobre o
suicídio e sobre os motivos e consequências do ato, além de falar com lucidez
sobre sua fixação com a morte: “A morte é um triste osso; fraturado, dirias, /
e, apesar disso, ela me espera ano após ano, / Para delicadamente sarar uma
ferida antiga, / para livrar minha respiração de sua prisão perversa.”
Perto do
fim de sua vida, havia se transformado em uma alcoólatra solitária e instável,
e sua criatividade estava deteriorada. Após numerosas tentativas de suicídio,
foi numa sexta-feira ensolarada que Anne Sexton encontrou a morte: vestiu o
casaco de peles de sua mãe, serviu-se de algumas doses de vodca, entrou em sua
garagem, sentou-se em seu carro, ligou a ignição e o rádio.
A carioca
Ana Cristina Cesar também possui um lugar no grupo das mulheres trágicas da
poesia. A poeta e tradutora nascida em 2 de Junho de 1952 e falecida em 29 de
Outubro de 1983 escreveu: “Eu não sabia / que virar pelo avesso / era uma
experiência mortal”. Nasceu em uma família culta, e, desde muito jovem, Ana
demonstrou grande talento para a poesia: ditava poemas antes mesmo de saber
escrever. Como Sylvia Plath, Ana Cristina Cesar obteve destaque e sucesso
acadêmico: com uma licenciatura em Letras em 1975, tornou-se Mestre em
Comunicação em 1979 e estudou na Inglaterra em 1980, onde conquistou mais um
diploma, o mestrado em tradução literária pela Universidade de Essex. Ana
também traduziu alguns poemas de Sylvia Plath e escreveu diversas cartas e
ensaios ao longo de sua vida.
Ana C.,
como também ficou conhecida, atirou-se da janela do apartamento de seus pais em
Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. Ela vinha sofrendo de uma depressão
profunda. Um de seus poemas mais conhecidos chama-se “Psicografia”: “Também eu
saio à revelia / e procuro uma síntese nas demoras / cato obsessões com fria
têmpera e digo / do coração: não soube / e digo da palavra: não digo (não posso
ainda acreditar na vida) e demito o verso como quem acena / e vivo como quem
despede a raiva de ter visto”.
Pode-se
dizer que a portuguesa Florbela Espanca, descrita por Fernando Pessoa como
“Alma sonhadora / Irmã gémea da minha!”, também teve muito a dizer a respeito
de dores pessoais e inquietações do espírito, tendo levado uma vida bastante
conturbada e marcada por eventos traumáticos. Nascida em 8 de Dezembro de 1894
e falecida no dia de seu aniversário no ano de 1930, Florbela nasceu Flor Bela
de Alma da Conceição. Em 1908, sua mãe viria a falecer, com vinte e nove anos.
Florbela foi uma das primeiras mulheres em seu país a receber instrução
superior, ao iniciar estudos no Liceu Masculino André de Gouveia, em Évora. Em
1913, casou-se com um colega de escola. Trabalhou também como jornalista, e
escreveu alguns contos. Matriculou-se no curso de Direito da Universidade de
Lisboa, mas não chegou a concluir tal curso.
Tendo
sofrido um aborto, a escritora passou a apresentar sinais de desequilíbrio
mental. Em 1919, lançou seu primeiro livro: Livro de Mágoas, composto unicamente
de sonetos. Tempos mais tarde, passou a viver com outro homem, sendo ainda
casada com seu colega de escola. Logo veio a publicar seu segundo volume de
poemas, financiado por seu pai. As dificuldades financeiras viriam a
desempenhar um significativo papel em sua vida. Em 1925, se divorciou pela
segunda vez. Pouco tempo depois, o irmão da escritora veio a falecer em um
acidente de avião, e, em 1928, ela tenta o suicídio pela primeira vez.
Florbela
Espanca, que, mesmo adoentada, não deixou de escrever, tentaria o suicídio mais
duas vezes: uma em Outubro, outra em Novembro de 1930, às vésperas do
lançamento de seu livro Charneca em Flor. Foi diagnosticada com um edema
pulmonar, e, no dia em que completaria trinta e seis anos, veio a falecer em
decorrência de uma overdose de barbitúricos.
Florbela
finalizou um de seus poemas, intitulado “Amar”, dando voz aos sofrimentos de
todas as poetas que encontrariam um fim como o dela: “E se um dia hei de ser
pó, cinza e nada / Que seja a minha noite uma alvorada, / Que eu saiba me
perder / pra me encontrar”. Que todas possam ter, por fim, se encontrado.
Nota: a tradução para o Inglês do poema de Marina
Tsvetaeva (escrito originalmente em russo) é de Ilya Kaminsky e Jean Valentine.
A tradução para o português é de minha autoria, feita a partir dos versos em
Inglês. As traduções de Sylvia Plath e Anne Sexton também são de minha autoria.
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