No Brasil, a companheira do cineasta-gênio de 'Cidadão Kane', Oja Kodar,
contou histórias íntimas que andavam guardadas junto com os vários filmes
inacabados dele
A experiência brasileira de Welles
CAMILA MORAES São Paulo
Oja Kodar no Caixa Bellas Artes. / LILO CLARETO
Tudo parece
já ter sido dito sobre Orson Welles, o cineasta-gênio de Cidadão
Kane, que deixou vários filmes inacabados, mas dê uma chance a Oja Kodar, sua
companheira em seus últimos 25 anos de vida, e algumas novidades surgirão.
Muito pouco foi contado sobre o cara que usava caftans em casa e, aos 70,
dançava samba no meio da sala para provar à amada que ainda tinha energia. Além
de comentar seus filmes com dedicação, esse é tipo de histórias que Oja, conta
durante uma visita ao Brasil este mês para celebrar Orson, que em 2015
completaria 100 anos.
Os dois se
conheceram quando ela tinha 20 anos e ele, 46. A ocasião era O processo,
que em 1962 ele filmava em Zagreb, capital da ex-Iugoslávia, atual Croácia,
onde ela nasceu. Orson ainda era casado com a atriz italiana Paola Mori – de
quem, na realidade, nunca se divorciou no papel –, mas não resistiu aos
encantos da jovem com quem escreveu e filmou depois Verdades e mentiras (1974),
além de outros projetos incompletos. Ficaram juntos, em uma relação estável que
combinava vida pessoal e trabalho. Hoje, foram-se já 30 anos da morte de Orson
por um ataque cardíaco, mas os olhos dela brilham ao resgatar o passado como se
exibissem um filme.
“Era
absolutamente excitante trabalhar com ele. Algumas vezes, bem difícil também.
No trabalho, ele podia ser bem… duro, é a palavra. Ele me dizia coisas que
soavam ríspidas, mas depois eu ponderava e achava que ele tinha razão”, conta
Oja. Não que ele fosse grosseiro, sobretudo com os atores, diz ela, mas era um
perfeccionista – alguém que, como bom diretor de cinema, mas próprias palavras
de Welles, “presidia sobre o inesperado”.
LILO CLARETO
“Ele era
uma pessoa muito gentil. Certa vez, ele disse claramente: ‘Preciso fazer amor
com os meus atores, porque são eles que levam meu trabalho à tela’. Com os
técnicos, especialmente na montagem, era mais complicado. Lembro de uma vez, em
Paris, ele alugou um estúdio e pediu que disponibilizarem seis mesas de edição.
Ele ia de uma para outra, escolhendo takes das tiras de filme
e embaralhando-os de lá pra cá enquanto imaginava a montagem na cabeça dele.
Era quase impossível para as pessoas acompanhá-lo”, relata, acrescentando que
sua própria irmã, que trabalhou com eles, foi levada pelo cunhado várias vezes
às lágrimas.
Para Oja,
muito da fama consagrada de Orson Welles – as críticas negativas, sobretudo –
não é verdade. Dizem por aí que ele era gastão e pouco comprometido com
entregas, mas ela defende que seu problema era basicamente a falta de dinheiro.
"Ele começava algo, daí precisava parar para levantar mais recursos e
continuar”, alega. No caso de seu filme brasileiro, É Tudo
Verdade, a atriz – que preferiu continuar como escultora em seu país quando
o marido faleceu – aponta razões ainda mais complicadas, que ela resume como
“azar”.
“Ele amava
o Brasil, mas sinto dizer que sua visita naquela época foi cercada de azar. O
filme era uma encomenda sobre a América Latina. Então ele veio, filmou o
material e mandou de volta para o estúdio. Mas aqueles bastardos de Hollywood
analisaram a filmagem e disseram: “O que o Orson Welles está fazendo lá
embaixo, filmando aqueles negros pobres?”. Porque é assim que essas pessoas se
referiam aos brasileiros… Mas Orson não pensava dessa maneira. Ele nunca falou
de outro país como do Brasil”.
O gênio
tinha problema com entregas, fato, mas também é verdade que não parava de
trabalhar. Nos últimos anos de vida, sofria de artrite e passava as madrugadas
teclando só com os dois dedos indicadores. Oja, ao vê-lo digitando com
dificuldade quando despertava de manhã, queria se certificar de que tudo estava
bem, ainda que conhecesse “cada detalhe dele, sem precisar que abrisse a boca”.
“Eu perguntava se havia algo errado, e ele respondia: ‘Não, estou perfeitamente
bem, quer ver?’. Então, ele levantava e, vestindo aqueles caftans chineses que
usava sempre dentro de casa, dançava pra mim no meio da sala e dizia: ‘Viu? Eu
ainda posso dançar samba’”.
LILO CLARETO
Ela – cujo
nome real é Olga Palinkaš, mas que adotou o Oja apelidado pela irmã e o Kodar
(que significa em croata ‘como um presente’) sugerido por Welles – garante que
não são só seus olhos que brilham diante da grandeza do companheiro. As pessoas
costumavam se sentir intimidadas com seu "olhar inteligente e
penetrante" e, apesar de toda a admiração, temê-lo por causa disso. Mas
não Oja, jamais. Diz sem restrições que nunca houve atuação melhor, nem nunca
haverá, do que a de Welles em uma cena de seu filme preferido dele, Falstaff
- O toque da meia-noite, e que se o cinema não o tivesse “roubado”, ele
seria um escritor premiado com um Nobel de literatura. Não que seu objetivo
seja mitificá-lo ainda mais. "Ele é a única pessoa que amei. As pessoas
dizem que o tempo cura as feridas e, em certo sentido, é verdade. Posso falar
dele e rir de algumas coisas hoje. Mas o golpe é tão forte, que dói exatamente
como antes”. É o amor.
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