Publicado em literatura por Alexandre Coslei
Para
Euclides da Cunha, o sertanejo era antes de tudo um forte. Guimarães Rosa nos
contou sobre os cangaceiros valentes em Sagarana e Grande Sertão Veredas.
Graciliano escolheu a contramão, nos apresentou um nordestino conformado, que
se assume como fraco e avesso à comunicação. Em Vidas Secas vemos o homem que
foge apenas para sobreviver.
Antes de
começar qualquer análise de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é
relevante conhecer que este livro se formou de textos esparsos, escritos numa
pensão, com intenção de serem contos, mas foram reunidos numa arquitetura
editorial que os transformou em romance, obra que marca a identidade maior do
autor.
A narrativa
é composta em terceira pessoa e segue os passos de uma família de retirantes,
nômades transitando por um cenário desolado, paisagem que também se incorpora
ao livro como se fosse uma decisiva personagem.
Na
contramão de Euclides da Cunha, que descreve o nordestino como um forte,
contrariando também os valentes cangaceiros de Guimarães Rosa, o escritor
Graciliano Ramos escolheu descrever figuras humanas que se declaram fracas e
conformadas, vítimas de um hostil ambiente social e geográfico. Não agem,
apenas reagem. Não resistem, somente subsistem.
Fabiano e
sua família são personagens tão áridos quanto o agreste que os abriga. Pouco se
comunicam. A linguagem de Graciliano Ramos, econômica e afiada, nos conduz a um
mergulho intenso na vida ressecada e inóspita desses sertanejos. O estilo do
texto, que usa as palavras como lâminas e, apesar disso, não nos poupa de uma
descrição riquíssima de tudo que envolve a história, nos remete a recordar o
poeta João Cabral de Melo Neto, que segue por linhas que encontram muitas
semelhanças com Graciliano.
Fabiano, o
chefe da família, constantemente exprime uma revolta abafada, sente-se
oprimido, explorado e muitas vezes humilhado, mas aceita. Por diversas vezes
revela o respeito pelas patentes, pelo Governo. Governo é Governo, diz ele,
como se fosse ideia inconcebível afrontar o status quo. É Fabiano
quem toca e decide os rumos da família e é a ele que seguem Sinhá Vitória (a
esposa), o menino mais novo e o mais velho (os filhos). Como personagem,
Fabiano agrega a riqueza da contradição, é passivo diante da vida e passional
em seus pensamentos. Guarda sua força para manter a meta pela mera
sobrevivência. Ao seu redor, não parece existir esperança. Só há a espera entre
a seca que os faz migrar e a subsistência que mantém o existir.
Sinhá
Vitória, em alguns momentos, parece ser o contraponto a Fabiano. É pragmática,
a ela cabem os cálculos, o planejamento das finanças. Corrói-se, em determinada
passagem, por ter comido o papagaio que os acompanhava na jornada, mas
justifica o ato com a razão, apesar da consciência doída. Possui vaidade e uma
limitada ambição, enquanto Fabiano demonstra o absoluto conformismo em seu
discurso.
Baleia é a
presença marcante que atravessa toda a narrativa, como se fosse o núcleo, a
convergência emocional para todos os personagens centrais do romance. A
cachorra Baleia é o hiato naquela aridez claustrofóbica, ela é a única projeção
de afeto da família. Sua morte constrói o momento magistral de Vidas Secas, é
um relato tão comovente ao ponto de causar uma inevitável catarse em quem lê.
Baleia é a lembrança do amor incondicional em seres que já desaprenderam o que
é amar. Baleia é a poesia numa prosa que se empreendeu a contar sobre o
deserto.
E é nessa
vida de gado, do povo marcado pelos versos do cantor contemporâneo Zé Ramalho,
que a pequena manada dos nordestinos de Vidas Secas migra, sob o sol
causticante, por entre o barro vermelho dos sertões do Brasil. Graciliano pinta
o retrato que denuncia e expõe as enraizadas desigualdades do nosso país.
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