Publicado em literatura por Felipe Azevedo
Do
encontro entre dois homens que amavam narrar o mundo, nasce O Segredo de Joe
Gould, uma obra deliciosa do jornalismo literário que nos transporta para a
excêntrica Nova Iorque dos anos 40
O Segredo de Joe Gould é considerado a obra-prima do jornalista norte-americano
Joseph Mitchell, que viveu sua solidão de escritor na Nova York gelada da
década de 40. No livro estão dois perfis de um velho boêmio de família rica,
que perambulava com um ensebado portfólio debaixo do braço pelas ruas frias do
Greenwich Village, bairro popular da metrópole americana. Escritos com
invejável delicadeza e paciência por Joseph, os dois textos foram publicados em
um intervalo de vinte e dois anos. “O Professor Gaivota” recheou a edição da
revista The New Yorker do dia 12 de dezembro de 1942, e “O Segredo de Joe
Gould”, que saiu nas edições de 19 e 26 de setembro de 1964.
Joseph
nasceu em 1908, no estado da Carolina do Norte, sul dos Estados Unidos. Tomou
um trem e desembarcou na cidade que serviria de cenário para sua narrativa
lenta e deliciosa: Nova York. Trabalhou em diversos jornais até ser contratado
como escritor fixo da The New Yorker, uma revista singular onde ter um artigo
aceito significava uma elevação de status. Mitchell inaugurou um novo modo de
fazer jornalismo literário, usava técnicas de ficção para contar histórias de
personagens ou coisas reais – essa pode ser uma das possíveis teorias para sua
escrita tão lenta e tão cuidadosa. Seu primeiro texto na The New Yorker foi um
perfil de uma cidadezinha chamada Elkton, no estado de Maryland, onde o número
de casamentos era espantoso.
Talvez não
houvesse um lugar tão perfeito para Mitchell como a The New Yorker. Os editores
da revista não estavam interessados em pautas seus escritores, justificavam a
liberdade editorial concedida a eles como um princípio fundamental para que os
textos fossem verdadeiros, sem encomenda. Nenhuma outra publicação poderia
esperar dois ou três anos para que um texto fosse escrito. Era esse o tempo, em
média, que levava para que Joseph martelar calmamente sua máquina de escrever
até que tomasse vida um dos seus perfis.
Foi assim
durante 30 anos até sua morte, em 1996. Cemitérios abandonados, bares, cidades
exóticas e pessoas aparentemente desinteressantes foram os personagens
escolhidos por Joseph. No posfácio escrito por João Moreira Salles em “O
Segredo de Joe Gould” (Companhia das Letras), está à essência do que foi o
escritor americano: “em toda sua obra não há nenhuma palavra fora do lugar,
Joseph não escreveu uma linha sequer para algo que não achasse interessante”.
Era alguém que escutava. Durante 19 anos, de 1938 a 1957, a voz do velho
boêmio, para quem escreveu seu perfil mais conhecido, ecoou nos ouvidos de
Joseph por horas às vezes ininterruptas – em uma ocasião Gould deu-se a falar e
só parou após 600 minutos. Era um velho sujo que quase sempre vestia ternos
maiores que ele. Era baixo e dificilmente pesava mais que 50 quilos. O
portfólio ensebado que carregava poderia ser uma parte do corpo.
Explica-se:
Joe Goud era um excêntrico aventureiro. Uma vez embrenhou-se numa expedição
antropológica para medir a cabeça de índios. Após tropeçar num livro de W.B
Yeats, leu: “A história de uma nação não
está nos parlamentos e nos campos de batalha, mas no que as pessoas dizem umas
às outras em dias de feira e em dias de festa, e na maneira como trabalham a
terra, como discutem, como fazem romaria”. A partir daí, Goud tomou posse
de um caderno velho e se empenhou em efetivamente anotar tudo que se mexesse à
sua volta. A figura de um velho mendigo formado em Havard, morto de fome,
cheirando a cigarro e que se propunha a escrever “A História Oral de Nosso
Tempo” pereceu um prato suculento para um escritor amante e faminto pela vida
de quem era invisível.
Gould não
era o único boêmio do Village, mas era, de longe, o mais exótico. Durante os
encontros com Mitchell nos diversos bares do Village, entortava tubos inteiros
de catchup em cima do ovo frito pago pelo escritor, “esse é o único grude de
graça que eu conheço”, dizia. Falava muito. Começava contando sobre sua relação
difícil com os pais, passando sobre o dia em que quase morreu de fome e não
cansava de comentar sobre a sua peculiar habilidade de se comunicar com as
gaivotas. Chamado de “o professor gaivota” pelos garçons e habitantes do bairro,
Gould um dia demonstrou para Joseph um pouco de sua destreza: levantou da mesa
onde conversaram e rodopiou com os braços para trás. “Gru, gru”, gritava para o
incômodo dos clientes.
“A minha
obra é enorme, não sei quantas vezes o tamanho da bíblia”. Joe Gould se gabava
de estar escrevendo o maior livro que havia existido no mundo. Era financiada
pelo Fundo Joe Gould, uma espécie de contribuição paga por alguns amigos e
intelectuais que acreditavam na sua obra. Dizia que os escritos estavam
espalhados em lugares estratégicos, o que continha nas mãos eram apenas as
anotações recentes, “a parte principal eu guardo, escondo em locais espalhados,
por segurança”, dizia. Joseph teve acesso mais de uma vez aos textos e reparou
que, curiosamente, os títulos dos capítulos se repetiam quase sempre.
A paciência
e o interesse inesgotável de Joseph por Gould parecem ser duas características
fundamentais para que os encontros e conversas entre eles acontecessem durante
tanto tempo. Joe Gould passava fome, às vezes pedia um jantar ou um café
fumegante antes de cada conversa. No primeiro perfil, “O Professor Gaivota”,
Joseph narrou em poucas páginas os seus encontros com Gould. Contou o quão era
singular aquele homenzinho magro, rabugento, que guardava ponta de cigarro
dentro do bolso e comia dia sim, outro não. Descreveu com delicadeza o velho
sujo que anotava frenético cada conversa que ouvia, cada som que lhe viesse aos
ouvidos fazia parte da História oral de Joe Gould. Anos mais tarde, decidiu
escrever “O Segredo de Joe Gould” onde a narrativa passa por questões curiosas,
onde o leitor poderá se perguntar até onde Joe Gould está totalmente lúcido
sobre sua obra extraordinária.
O livro é
pesado, de tão leve. Uma aula de jornalismo literário escrita por um homem
solitário, calado e lento. Joseph Mitchell foi um escritor paciente e
extremamente observador. João Moreira Salles, ainda no posfácio da obra, narra
o dia em que Joseph se deitou no meio do mato e fixou seus olhos em um binóculo
por duas horas. Ele observava quieto o trabalho de um pica-pau que bicava sem
parar o tronco de uma árvore. Ficou ali e viu o pássaro romper a casca, depois
o tronco até que a madeira se partiu e a árvore caiu no chão. “Foi uma das
coisas mais extraordinárias que vi na vida”, disse Mitchell. São raros os que
teriam a mesma paciência espontânea.
Em seu
cubículo na redação da The New York, Joseph passou 30 anos de sua vida traçando
seus personagens incríveis. Não abandonou a máquina de escrever até o a sua
morte, em 1996. Os amigos e colegas se perguntavam nos bastidores da revista o
que Joseph poderia estar escrevendo, havia anos que não publicava e mesmo
assim, todas as noites escutavam-se as batidas de tecla que vinham de trás do
seu biombo. De manhã a equipe de limpeza jogava fora as bolinhas de papel
jogadas no lixo.
Joseph e
Joe eram homens incomuns. Duas histórias de quem escrevia história e que se
encontraram durante anos, um ouvia e o outro falava. O resultado foi uma obra
singular do jornalismo literário, leitura obrigatória para quem deseja um dia
aprender a narrar o mundo.
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