Escrevo
porque preciso, publico porque sou curiosa.
Faço quase tudo.
Quase musicista, quase cantora; quase compositora, quase fumante; quase escritora, quase artista; quase viajante, quase aventureira; quase corajosa .
Mas sei que sou toda poesia. E que gosto de gatos.
Graduada em Preguiça e pós graduada em Procrastinação pela Universidade do Ócio.
Faço quase tudo.
Quase musicista, quase cantora; quase compositora, quase fumante; quase escritora, quase artista; quase viajante, quase aventureira; quase corajosa .
Mas sei que sou toda poesia. E que gosto de gatos.
Graduada em Preguiça e pós graduada em Procrastinação pela Universidade do Ócio.
Publicado por Letícia Souto
Como o colombiano Gabriel García
Márquez foi profético ao nomear sua obra e porque as pluralidades da cólera
estão cada vez mais naturais na sociedade brasileira: um panorama dos tempos
modernos da cólera – do racismo à intolerância religiosa.
Fermina Daza e Florentino Ariza. O amor
febril, jovial, recém-descoberto. O mundo nas mãos da moça, um telégrafo nas
mãos dele – a invenção revolucionária do século 19. O amor através das
correspondências, pedidos de casamento por cartas apaixonadas. A proibição do
matrimônio; a mudança de vida de Fermina; a espera eterna de Florentino. Quase
um Romeu e Julieta latino-americano se não fosse pelo reencontro do casal, 53
anos e alguns meses depois da última correspondência. Gabriel García Márquez,
um dos maiores escritores que esse continente já fez nascer, não poupa o leitor
cada detalhe, cada sentimento, cada imagem. Durante as páginas de O Amor Nos
Tempos do Cólera é até possível sentir o cheiro da varanda da casa ou da
castanheira da pracinha. Mas por que García Márquez, falecido no ano passado,
parece cada vez mais ter dado um título tão coerente e anatômico para os dias
atuais?
Deixando bem claro, isso não é sobre amor
romântico. Fermina Daza e Florentino Ariza nada têm em comum com o panorama
aqui proposto. É sobre empatia, sobre amar o próximo – já teria dito Jesus
Cristo. E por falar nele, a travesti crucificada na parada LGBT deste ano foi
esfaqueada na semana passada. Tempos do cólera. Mas dessa vez sem sintoma
físico aparente, além de alguns rostos cheios de empáfia e mau humor. Dessa vez
não há dores abdominais, diarreia e náusea nos corpos. Apenas almas doentes
sofrendo de cólera. Náusea sentida ao ver um casal de pessoas do mesmo sexo
andando de mãos dadas na rua. Enjoo de ver uma mulher à frente da nação,
governando um país imerso em crise. Crise essa moral e de personalidade. A
cólera é a doença do século na sociedade brasileira. Dessa vez ela causa
cegueira e ignorância. Faz o povo repetir certas palavras como “Impeachment” e
“corrupção” incessantemente, a todo instante, não importando onde.
O amor nos tempos do cólera é um desafio. É
saber a hora certa de ficar quieto quando seu melhor amigo diz que “não tem
nada contra negros, até tem amigos de cor”. Exercer a paciência, a sabedoria.
Contar até dez. Vinte, trinta, se necessário. A cólera está também naqueles que
ouvem tais pérolas. Dá dor de barriga, enjoo. Dá um mal estar ficar na fila da
padaria e ouvir alguém xingando o governo federal. Faça um teste: experimente
falar bem da Dilma para alguém em um lugar público. Conte quantas pessoas irão
te olhar como se você fosse uma aberração. Observe a cólera em seus pobres
olhares vazios. Esses são os principais sintomas da doença moderna: enjoo do
governo federal; sede de piadas racistas, machistas e homofóbicas; diarreia
oral, perceptível através de discursos de ódio e reproduções de falas jamais
comprovadas verdadeiras. Experimente também mudar a foto de perfil no Facebook
para a bandeira símbolo da luta LGBT. Perceba quantas pessoas irão se sentir na
obrigatoriedade de fazer comentários totalmente dispensáveis como “é modinha”,
“lutar contra a fome ninguém quer”. Por isso tão desafiante esse sentimento
chamado amor.
Se o casal de jovens da obra de Gabriel
García Márquez vivesse nos dias atuais, certamente trocaria mensagens pela
Internet depois de ter se conhecido no Tinder e possuir preferências em comum:
a presença no evento pró-Impeachment do dia 16 de agosto; o prazer em atacar
feministas na Internet; em defender o Datena na prefeitura de São Paulo e o
Bolsonaro na presidência. Mesmo que as classes sociais dos dois fossem tão
distintas: Florentino já trabalhava desde cedo, enquanto Fermina se dedicava
aos estudos e outras atividades como costurar e tocar piano. Porque a cólera
dos tempos modernos é assim: não mais escolhe classe social. É possível, apesar
de inacreditável, ser negro e pobre e defender a pena de morte. Talvez
Florentino Ariza se revelasse um desses casos, dignos de estudo.
Os tempos do cólera aqui no Brasil começaram
a surgir depois das manifestações de junho de 2013. De repente todo mundo se
sentiu na obrigação de ter opinião (primeiro sintoma da doença). O gigante
acordou e acabou acordando movimentos e opiniões que já deveriam estar mortos e
enterrados há muito tempo. Desde então, chegamos a tal ponto que elegemos a
bancada mais conservadora desde a época da ditadura. Coincidência? Não. Apenas
a cólera diagnosticada sem ao menos precisar de exame e avaliação médica.
Apesar de que, em tempos como esse, um pedido de intervenção médica seria mais
do que justo e de bondade tamanha. Quiçá traria de volta algumas faculdades
mentais já sequeladas pela doença. O tratamento desses pacientes exigiria muito
mais do que paciência, amor e empatia: disposição para debater opiniões
próprias disfarçadas de fatos e argumentos.
Por isso, dialoguemos. Além de contar até
dez, de ter que dividir a mesa de jantar com pessoas que odeiam o que é
diferente pelo simples fato de não conhecer, de ser Fermina Daza e ter seu
matrimônio proibido por intolerância... Acima de tudo isso: sejamos Florentino
Ariza. Aprender a insistir em sermos aceitos como somos. Será bem ruim para os
conservadores, para os que esfaqueiam travesti, apedrejam candomblecistas e
para no semáforo para fazer a dança do Impeachment. Vai doer. E que doa.
Nenhuma doença se cura sem dor. Todo mundo já levou uma injeção na bunda por
causa de dor de garganta. Doeu, ardeu, nós choramos e insistimos pra não ter
que tomar. Mas chega uma hora em que a doença avança e é preciso tomar alguma
providência mais séria. A injeção de uma dose de realidade e bom senso nos
atingidos e sequelados pelo cólera é o começo de um tratamento lento, doloroso,
mas que no final valerá a pena. E será bom para todos nós ver uma doença tão
complexa erradicada. Acabar-se-á o mal do século, e Gabriel García Márquez
poderá finalmente descansar em paz.
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