terça-feira, 25 de agosto de 2015

O AMOR NOS TEMPOS DE NOSSO CÓLERA





Escrevo porque preciso, publico porque sou curiosa. 
Faço quase tudo.
Quase musicista, quase cantora; quase compositora, quase fumante; quase escritora, quase artista; quase viajante, quase aventureira; quase corajosa .
Mas sei que sou toda poesia. E que gosto de gatos.
Graduada em Preguiça e pós graduada em Procrastinação pela Universidade do Ócio.



Publicado por Letícia Souto



Como o colombiano Gabriel García Márquez foi profético ao nomear sua obra e porque as pluralidades da cólera estão cada vez mais naturais na sociedade brasileira: um panorama dos tempos modernos da cólera – do racismo à intolerância religiosa.





Fermina Daza e Florentino Ariza. O amor febril, jovial, recém-descoberto. O mundo nas mãos da moça, um telégrafo nas mãos dele – a invenção revolucionária do século 19. O amor através das correspondências, pedidos de casamento por cartas apaixonadas. A proibição do matrimônio; a mudança de vida de Fermina; a espera eterna de Florentino. Quase um Romeu e Julieta latino-americano se não fosse pelo reencontro do casal, 53 anos e alguns meses depois da última correspondência. Gabriel García Márquez, um dos maiores escritores que esse continente já fez nascer, não poupa o leitor cada detalhe, cada sentimento, cada imagem. Durante as páginas de O Amor Nos Tempos do Cólera é até possível sentir o cheiro da varanda da casa ou da castanheira da pracinha. Mas por que García Márquez, falecido no ano passado, parece cada vez mais ter dado um título tão coerente e anatômico para os dias atuais?
Deixando bem claro, isso não é sobre amor romântico. Fermina Daza e Florentino Ariza nada têm em comum com o panorama aqui proposto. É sobre empatia, sobre amar o próximo – já teria dito Jesus Cristo. E por falar nele, a travesti crucificada na parada LGBT deste ano foi esfaqueada na semana passada. Tempos do cólera. Mas dessa vez sem sintoma físico aparente, além de alguns rostos cheios de empáfia e mau humor. Dessa vez não há dores abdominais, diarreia e náusea nos corpos. Apenas almas doentes sofrendo de cólera. Náusea sentida ao ver um casal de pessoas do mesmo sexo andando de mãos dadas na rua. Enjoo de ver uma mulher à frente da nação, governando um país imerso em crise. Crise essa moral e de personalidade. A cólera é a doença do século na sociedade brasileira. Dessa vez ela causa cegueira e ignorância. Faz o povo repetir certas palavras como “Impeachment” e “corrupção” incessantemente, a todo instante, não importando onde.
O amor nos tempos do cólera é um desafio. É saber a hora certa de ficar quieto quando seu melhor amigo diz que “não tem nada contra negros, até tem amigos de cor”. Exercer a paciência, a sabedoria. Contar até dez. Vinte, trinta, se necessário. A cólera está também naqueles que ouvem tais pérolas. Dá dor de barriga, enjoo. Dá um mal estar ficar na fila da padaria e ouvir alguém xingando o governo federal. Faça um teste: experimente falar bem da Dilma para alguém em um lugar público. Conte quantas pessoas irão te olhar como se você fosse uma aberração. Observe a cólera em seus pobres olhares vazios. Esses são os principais sintomas da doença moderna: enjoo do governo federal; sede de piadas racistas, machistas e homofóbicas; diarreia oral, perceptível através de discursos de ódio e reproduções de falas jamais comprovadas verdadeiras. Experimente também mudar a foto de perfil no Facebook para a bandeira símbolo da luta LGBT. Perceba quantas pessoas irão se sentir na obrigatoriedade de fazer comentários totalmente dispensáveis como “é modinha”, “lutar contra a fome ninguém quer”. Por isso tão desafiante esse sentimento chamado amor.
Se o casal de jovens da obra de Gabriel García Márquez vivesse nos dias atuais, certamente trocaria mensagens pela Internet depois de ter se conhecido no Tinder e possuir preferências em comum: a presença no evento pró-Impeachment do dia 16 de agosto; o prazer em atacar feministas na Internet; em defender o Datena na prefeitura de São Paulo e o Bolsonaro na presidência. Mesmo que as classes sociais dos dois fossem tão distintas: Florentino já trabalhava desde cedo, enquanto Fermina se dedicava aos estudos e outras atividades como costurar e tocar piano. Porque a cólera dos tempos modernos é assim: não mais escolhe classe social. É possível, apesar de inacreditável, ser negro e pobre e defender a pena de morte. Talvez Florentino Ariza se revelasse um desses casos, dignos de estudo.
Os tempos do cólera aqui no Brasil começaram a surgir depois das manifestações de junho de 2013. De repente todo mundo se sentiu na obrigação de ter opinião (primeiro sintoma da doença). O gigante acordou e acabou acordando movimentos e opiniões que já deveriam estar mortos e enterrados há muito tempo. Desde então, chegamos a tal ponto que elegemos a bancada mais conservadora desde a época da ditadura. Coincidência? Não. Apenas a cólera diagnosticada sem ao menos precisar de exame e avaliação médica. Apesar de que, em tempos como esse, um pedido de intervenção médica seria mais do que justo e de bondade tamanha. Quiçá traria de volta algumas faculdades mentais já sequeladas pela doença. O tratamento desses pacientes exigiria muito mais do que paciência, amor e empatia: disposição para debater opiniões próprias disfarçadas de fatos e argumentos.
Por isso, dialoguemos. Além de contar até dez, de ter que dividir a mesa de jantar com pessoas que odeiam o que é diferente pelo simples fato de não conhecer, de ser Fermina Daza e ter seu matrimônio proibido por intolerância... Acima de tudo isso: sejamos Florentino Ariza. Aprender a insistir em sermos aceitos como somos. Será bem ruim para os conservadores, para os que esfaqueiam travesti, apedrejam candomblecistas e para no semáforo para fazer a dança do Impeachment. Vai doer. E que doa. Nenhuma doença se cura sem dor. Todo mundo já levou uma injeção na bunda por causa de dor de garganta. Doeu, ardeu, nós choramos e insistimos pra não ter que tomar. Mas chega uma hora em que a doença avança e é preciso tomar alguma providência mais séria. A injeção de uma dose de realidade e bom senso nos atingidos e sequelados pelo cólera é o começo de um tratamento lento, doloroso, mas que no final valerá a pena. E será bom para todos nós ver uma doença tão complexa erradicada. Acabar-se-á o mal do século, e Gabriel García Márquez poderá finalmente descansar em paz.



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