Cinema
Publicado por Flávia Farhat
Uma bomba explodiu nos
anos 40 quando Cidadão Kane decidiu expor abertamente a podridão da imprensa e
a falta de ética jornalística. A história do magnata que usava todo o poder a
seu favor não só mudou a forma de fazer cinema, como também abriu uma nova
interrogação: existe alguma verdade que realmente chegue aos nossos ouvidos?
Jaz aqui um roteiro fictício que não poderia ser mais verdadeiro.
O apreço por escândalos sempre fez parte da
natureza humana. Somos irresistivelmente atraídos por tudo que entra em choque
com nossa tão lapidada moralidade: o inesperado e a tragédia podem ser de certa
forma, muito mais sedutores do que o tédio dos feitos comuns. Para a mídia,
essa não tão-sutil fraqueza humana acaba transformando-se em uma constante
tendência em aumentar os fatos; botar fogo onde nem faísca havia. Existe aí uma
oportunidade de manipulação com proporções desastrosas em um terreno paralelo à
atual comercialização de notícias. Algo que um certo George Orwell há muito já
havia previsto com uma colocação que vem sendo repetidamente comprovada: “Em
tempos de engano universal, falar a verdade torna-se um ato revolucionário”.
Gravado nos anos 40, Cidadão Kane chocou o
mundo ao expor abertamente a florescente podridão da mídia jornalística. O
enredo é bastante conhecido: Charles Kane, magnata da imprensa americana, morre
logo na primeira cena após pronunciar a enigmática palavra Rosebud.
Procurando por seu significado, um jovem jornalista passa a entrevistar várias
pessoas que um dia foram próximas a Kane e acaba esbarrando em diversas versões
de uma mesma história. São entregues ao público panoramas distintos de um homem
que construiu seu império em pilares de muita ganância e nenhuma ética.
Responsável por uma descarada monopolização informativa, o protagonista usa sua
influência para distorcer as notícias do modo que lhe for conveniente e cortar
assim qualquer compromisso com a verdade.
A narrativa em si é bastante impressionante,
mas acredite: foram os aspectos técnicos os responsáveis por eternizar Cidadão
Kane como um divisor de águas na história do cinema. Com apenas 25 anos na
época, o diretor Orson Welles foi um dos pioneiros do flashback, a
arte de contar uma história não linear. Além disso, a obra foi também uma das
primeiras a utilizar intencionalmente a noção de profundidade em cena,
contribuindo enormemente para toda a filmografia posterior. E não dá para falar
de Cidadão Kane sem citar sua complexa fotografia expressionista, um trabalho
pontuado pelo uso de luzes e sombras para criar significado à trama.
Apesar de nunca confirmado pelo diretor, há
forte especulação de que Cidadão Kane seja baseado na história real de William
Hearst, um magnata da imprensa estadunidense que coincide em muito com nosso
protagonista. A verdade é que isso faz pouca diferença: a obra de Welles
poderia ser baseada em qualquer profissional que tenha perdido seu compromisso
com a imparcialidade.
Engana-se, no entanto, quem pensa que só dos
comunicadores é a culpa por essa bagunça. Sim, a culpa também é sua. A
alienação não vem só de fatos distorcidos, mas também do desinteresse por
informação palpável e concreta. Vai saber se você realmente quer ouvir a
verdade. De repente, ao folhear as páginas de um jornal, o que você procura é a
bomba que vai virar assunto no fim de semana. Cidadão Kane é um filme
indiscutivelmente atemporal, mas é mais do que vergonhoso que sua temática
também seja.
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