Literatura/ Romance
Lolita
Vladimir Vladimirovich Nabokov foi um escritor
russo-americano. Nabokov escreveu seus primeiros nove romances em russo e então
chegou à fama internacional como um mestre estilista de prosa em inglês.
Poetas, escritores e filósofos
falam das portas que a grande e controversa obra de Nabokov abriu para a
literatura.
“Lolita, light of my life,
fire of my loins. My sin, my soul” (“Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha
alma, meu pecado” – em tradução de Sergio Flaksman). São as palavras mágicas
com que Vladimir Nabokov abre o mundo de Lolita, um dos romances mais perturbadores e
cativantes da literatura, e um clássico universal. Uma obra cuja beleza
aumenta com o tempo. Como aumentam as dúvidas sobre se hoje, sessenta anos
depois de sua primeira edição, seria publicada em um mundo que parece
retroceder em certos aspectos. Mas, o que a literatura teria perdido se Lolita
não tivesse existido?
Na longa
luta entre a liberdade e o puritanismo, 'Lolita' está do lado da liberdade”,
diz o poeta González Iglesias
Sua
publicação hoje seria difícil, segundo alguns escritores, pensadores e
críticos. Até mesmo sua condição de clássico cambalearia, explica o poeta Juan
Antonio González Iglesias, “porque os inimigos da liberdade são muitos, e com
um grande poder. Na longa luta entre a liberdade e o puritanismo, Lolita está
do lado da liberdade”. Uma obra, segundo o filósofo Manuel Cruz, que “mostra
que a aparência de liberdade e de tolerância sexual e amorosa em geral na qual
vivemos não vem a ser outra coisa, no final das contas, que a substituição dos
velhos tabus visíveis por outros novos, invisíveis por representar a obviedade
emergente”. Nabokov garante a escritora Marta Sanz, “convidou a refletir sobre
o significado do obsceno e sobre nossa própria hipocrisia”.
Para além do
desejo, mais para o lado do amor, rodeado de obsessão e dor, o protagonista do
romance, um escritor chamado Humbert Humbert, torna público seu “pecado” de
amar e desejar uma adolescente com a arte da literatura até criar,
segundo o escritor Mario Vargas Llosa em 1987, uma “das mais
sutis e complexas criações literárias de nosso tempo”.
Rejeitada por quatro editoras – só The Olympia Press, um pequeno selo
editorial parisiense especializado em obras eróticas, se atreveu a publicá-la,
em 15 de setembro de 1955–, três anos depois apareceu nos Estados Unidos. Lolita nasceu quase maldita. O próprio Nabokov (1899-1977)
um dia lançou o original ao fogo e sua esposa, Vera, o resgatou; mais tarde, depois de chegar às livrarias, provocou uma
onda de escândalo e acusações por desafiar tabus e pôr a sociedade ante o
espelho de desejos obscuros. Sua popularidade aumentou quando Stanley
Kubrick lhe fez justiça no cinema, em 1962, com roteiro do próprio escritor
russo.
“Lo-lee-ta: the tip of de tongue taking a trip of three steps down the
palate to tap, at three, on the teeth. Lo.Lee.Ta” (Lo-li-ta: a ponta da língua toca em
três pontos consecutivos do palato para encostar, ao três, nos dentes. Lo. Li.
Ta).
Lançou uma
pergunta sobre se é mais obsceno, e até mais imoral, a atração por uma ninfeta
ou o assassinato. Sobre se é mais imoral cometer essas ações ou mostrá-las se
deleitando nelas”, explica Marta Sanz
A partir
desse magistral e musical começo, a história de Humbert Humbert desliza por
vários estágios de leitura onde se destaca o virtuosismo da linguagem e sua
arquitetura. Nabokov, afirma Marta Sanz, “lançou uma pergunta sobre se é mais
obsceno, e até mais imoral, a atração por uma ninfeta ou o assassinato. Sobre
se é mais imoral cometer essas ações ou mostrá-las se deleitando nelas. Sobre
se o obsceno é a vulgaridade de uma sociedade que acredita que o Redear’s
Digest é cultura ou a sofisticação intelectual (maligna?) de um Humbert Humbert
que no fundo se movimenta pelo ímpeto lascivo de seus olhos de macaco. Nabokov
talvez se conecte com essa sensibilidade estética tão contemporânea que mantém
que a provocação pode constituir uma ação moral sem cair no moralismo. Tudo
isso se sugere por meio de uma palavra sensual na qual importam tanto as unhas
pintadas dos pés da ninfeta como o som de seu nome: Lo-li-ta. Nabokov sabe que
é impossível dizer o mesmo de outra maneira e que a textura de sua linguagem é
tão atraente, provocadora e excitante como o que nos está contando. De fato, é
o que nos está contando: a fusão da ética e da estética em função do princípio
libertino do prazer”.
Filme
Mas Lolita
desatou um escândalo moral, quando justo o que Nabokov buscava era
distanciar-se da moral, afirma Javier Aparicio Maydeu, crítico literário e
especialista no autor russo. O romance é muito mais que esses adjetivos
envenenados ao se tornar um elo na sensibilidade do século XX. Sobretudo,
acrescenta Aparicio Maydeu, “é o triunfo do romance que não persegue a
militância moral sustentada pelo romance naturalista do século XIX (do qual
parece zombar). Lolita parece extirpar a ética do romance e, sem lugar para
dúvidas, conquista para o romance moderno a ambiguidade (do narrador) e o
protagonismo da linguagem acima da trama em si”.
“Ela era Lo,
apenas Lo, pela manhã, um metro e quarenta e cinco de altura e um pé de meia
só. Era Lola de calças compridas. Era Dolly na escola. Dolores na linha
pontilhada. Mas nos meus braços sempre foi Lolita”.
A partir daí
se atribuiu esse nome nas referências àquelas pré-adolescentes tão sedutoras
quanto inocentes de seu próprio milagre de atração sobre alguns homens.
Vladimir Nabokov não ficou de todo contente com a popularidade e algumas
interpretações de sua obra. Em uma entrevista a Bernard Pivot, da televisão
francesa, disse: “Fora do olhar maníaco do senhor Humbert não há ninfeta.
Lolita, a ninfeta, só existe através da obsessão que destrói Humbert. Esse é um
aspecto essencial de um livro singular que tem sido distorcido por uma
popularidade artificial”.
O romance
mostra que a aparência de liberdade e de tolerância sexual e amorosa em geral
na qual vivemos não vem a ser outra coisa, no final das contas, que a
substituição dos velhos tabus visíveis por outros novos”, diz Manuel Cruz
A luta dessa
história no romance é entre a obsessão presente do protagonista e uma
recordação e sonho frustrados que se negam a morrer; e, na vida real, entre a
liberdade e o puritanismo, entre a ética e a estética. “Não é unicamente um
prazer intelectual para cada leitor”, afirma o poeta Juan Antonio González
Iglesias. Esse mundo que Nabokov cria – agrega o poeta – “alarga os limites do
nosso mundo. Lolita é um romance de estirpe poética, tem a beleza, a
sensibilidade e a perfeição, mas também a tensão ética e política de um
acontecimento que é de todos. Na longa luta entre a liberdade e o puritanismo,
Lolita está do lado da liberdade. Seu impacto universal é em direção ao futuro,
embora também repercuta no passado. Permite reler a experiência humana de outra
maneira”. Não duvida Gonzáles Iglesia em considerá-lo um clássico com força
para modificar o mundo. Para o que contribuiu, acrescenta, a vocação formal de
Nabokov, e também o fato de que ele o escreveu fora de seu país e fora de sua
língua materna: “Expõe um arquétipo e por isso pertence à história da
literatura. À universal, não à norte-americana nem à russa, nem deveria incidir
somente no superficial da questão erótica. Felizmente, Lolita já é um clássico.
Eu me pergunto se chegaria a sê-lo caso fosse publicado agora”.
Em tal caso,
talvez a respiração de alguns voltasse a se alterar. Quando a verdade, explica
o filósofo Manuel Cruz, é que “a grande virtude do livro é ter posto em
evidência, para além dos subterfúgios do desejo, o modo obscuro e invisível em
que nossas sociedades respondem a ele. O catálogo de figuras dos distintos
poderes que (cada uma à sua maneira) atemorizam o protagonista, os fantasmas
que o ameaçam convertê-lo ante si mesmo e ante os demais na materialização das
diferentes figuras da maldade (criminoso, pervertido, louco...) mostram que a
aparência de liberdade e de tolerância sexual e amorosa em geral na qual
vivemos não vem a ser outra coisa, no final das contas, que a substituição dos
velhos tabus visíveis por outros invisíveis por representar a obviedade
emergente. Ou alguém se atreveria a escrever hoje um livro no qual o autor
tornasse seu o olhar amoroso de Dante para Beatriz?”
Tesouros
perdidos ou secretos. Um grito que se nega a ser silenciado. O resultado,
segundo o escritor Colm Tóibín, “é como se Nabokov inserisse uma música
artística e requintada na vida norte-americana. Encontrou um tom astuto,
cômico, cheio de beleza e desejo para pôr no país que estava menos disposto a
tolerar tudo isso. O fato de que Lolita era norte-americana e o romance se
passasse nos subúrbios e estradas abertas desse país criou a graça do estilo, o
risco obscuro nas sentenças, e a tornou mais sedutora”.
Lolita é uma
matrioska na realidade e na ficção. Nas mãos dos leitores surgem múltiplas
leituras, mas sempre beleza. Sob o romance, em sua origem, está O Feiticeiro,
um relato que Nabokov escreveu em 1939 e que manteve entre sombras até um par
de anos depois da publicação de Lolita. Ao mesmo tempo, essa ninfeta da ficção
tem uma precursora, o fantasma que persegue Humbert Humbert chamado Annabel
Leigh, aquele amor adolescente, correspondido, mas frustrado no limite da
realização. E Annabel, por sua vez, vem de um tempo muito distante. Nasce em
1849 pelas mãos do último poema completo que Edgar Allan Poe escreveu: Annabel
Lee:
Foi há
muitos e muitos anos já,
Num reino de
ao pé do mar.
Como sabeis
todos, vivia lá
Aquela que
eu soube amar;
E vivia sem
outro pensamento
Que amar-me
e eu a adorar.
(...)
Porque os
luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que
eu soube amar;
E as
estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que
eu soube amar;
E assim
'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo,
meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro
ao pé do mar,
Ao pé do
murmúrio do mar.
(tradução de
Fernando Pessoa)
E à beira-mar
foi a última vez que Humbert Humbert viu seu primeiro amor, Annabel Leigh, que
logo se transformaria em um desejo nocivo. Aquela história de amor e paixão de
Poe com sua música de elegante tristeza e orfandade, Vladimir Nabokov a faz
ressoar em seu protagonista que sonha com sua ninfeta e seu amor murchado antes
de florescer e, sobretudo, deseja ser desejado. “Simplesmente gosto de compor
enigmas com soluções elegantes” disse seu autor. E deixou clara sua concepção
da literatura: “uma obra de ficção só existe na medida em que me proporciona o
que chamarei, pura e simplesmente, de prazer estético”.
E é assim que na confissão de seu
escritor Humbert Humbert se lê: “Para dizer a verdade, é bem possível que a
atração que a imaturidade exerce sobre mim resida não tanto na limpidez da
beleza infantil, imaculada, proibida, quanto na segurança de uma situação em
que perfeições infinitas preenchem o abismo entre o pouco concedido e o muito
prometido...”.
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