Publicado em sociedade por Helena Margot
Esquecemo-nos de como falar,
mas há sempre um monarca que pode tomar o nosso direito à voz.
Revirando algumas prateleiras de livros
empoeirados, deparo-me com um exemplar que li aos sete anos de idade, mas que,
apenas hoje, consegui compreender de fato. Trata-se de O Reizinho Mandão, de
Ruth Rocha. O enredo envolve a trajetória de um pequeno herdeiro (despreparado)
de um reino, que, após a morte do pai, torna-se um governante autoritário.
Certa vez, o Reizinho ordena que todos os cidadãos do reino ''calem as suas
bocas''. Com o tempo, as pessoas foram se esquecendo de como falar, e restou
apenas o monarca como falante no reino.
Esquecemo-nos de como falar. É claro que os
reizinhos capazes de nos calar não se restringem aos governantes - temos os
reizinhos midiáticos, os das grandes empresas, os do status quo, os do extrato
bancário. E isto é o mais triste: a liberdade, aparentemente tangível em uma
democracia, não passa de uma grande ilusão, pois até a ela já foi ordenado que
''calasse a boca'' por um reizinho. Nossos gostos e escolhas pessoais são
constantemente limitados por vozes as quais, não raro, desconhecemos. O leitor
já se deparou com o seu feed de notícias do Facebook e percebeu certa tendência
nos posts apresentados? E com as pesquisas no Google, as quais, muitas vezes,
apresentam os resultados com maior potencial de venda e não aqueles pelos quais
estamos realmente procurando? Sem falar nas notícias. O leitor alguma vez já se
viu pensando ''como fulano está sumido, não se ouve mais falar nele'', quando,
na verdade, o tal fulano está em grande atividade, apenas não é mais tão
comercializável?
Há, por exemplo, certo rei que se recusa a
falar sobre a música de qualidade: eis o porquê de se ouvir tantas reclamações
acerca da música brasileira de hoje. Dizem que a geração de músicos corrente é
inferior e de péssima qualidade. Tais comentários deixam-me demasiadamente
triste, pois tenho acesso a músicos talentosíssimos do Brasil de agora, os
quais não merecem o título de ''desqualificados'', mas que, por não produzirem
músicas tão palatáveis ao público consumidor, acabam por ser desconhecidos e
incluídos no grande balaio em que se jogam todos os ''músicos'' brasileiros da
atualidade.
Outra tendência de opinião altamente
difundida pelos reizinhos é a de que o Poder Executivo é mais poderoso do que
os outros dois, provavelmente alguns bilhões de vezes mais poderoso. Ora, se
assim fosse, não haveria razão de os outros poderes existirem-por certo,
Montesquieu está se debatendo em seu túmulo com tais atrocidades que têm
deturpado a sua obra. Lamentavelmente, já nos deparamos com declarações do tipo
''deputado, voto em qualquer um; no final das contas, nenhum presta, mesmo''. O
brasileiro só sabe votar em presidente, governador e prefeito e espera uma
grande mudança do país com tais escolhas. O leitor já deve ter ouvido e até
participado das manifestações por um certo impeachment da representante maior
do Executivo brasileiro. Sem assumir qualquer posição política, apenas
questiono se o Poder Executivo, sozinho, com um Legislativo que o acorrenta e o
imobiliza como o que temos, pode desenvolver o Brasil. Não seria essa mais uma
das vezes em que temos um reizinho falando por nós e em que agimos sem
questionar(falar) sobre o assunto, apenas seguimos e tentamos pôr em prática
essa ideia?
Um rei ao qual nutro real desdém é o que
transmite a ideia de que injetar dinheiro no setor educacional é a grande
solução para o ensino brasileiro. Tal monarca esquece-se do fato de termos um
currículo na educação básica extremamente atrasado, o qual, em vez de preparar
os jovens para serem futuros cidadãos, apenas os preparam para serem
consumidores embebidos na cegueira do individualismo. Antes de dinheiro, a
educação precisa de uma reforma, a qual deve ser incisiva na mudança da matriz
curricular, para que os conteúdos aprendidos pelos jovens possam ser associados
à prática e à vida real, e não apenas a cálculos nebulosos que apenas servem
nas CNTP e no vácuo. Lendo Anna Karenina, vejo-me diante de uma discussão entre
alguns membros da alta sociedade russa a respeito da inclusão das ciências
naturais no ensino dos seus filhos. As opiniões eram demasiadamente
divergentes, algumas voltando-se à ideia de que, caso as ciências naturais
fossem incluídas, a literatura, a arte, a história, a música e as línguas
acabariam por ser subjugadas. Alguma semelhança com a atual conjuntura?
Evidentemente, sou a favor das ciências naturais na educação básica, apenas
questiono, como estudante, se a ênfase desmedida à teoria de tais conteúdos, e
não à face prática (e realmente útil) deles, não estaria, de fato, prejudicando
o desenvolvimento do jovem como ''falante''.
Por fim, volto-me aos reis que calam aqueles
que estão envolvidos em um relacionamento. Esses monarquinhas incutem no
pensamento coletivo a noção de que há apenas uma opção para se demonstrar o
quanto se ama alguém: o matrimônio. Se pararmos para pensar, tudo o que temos
hoje foi inventado por outro ser humano no passado. O matrimônio também o foi,
apesar da inclinação monogâmica natural do homo sapiens. Questiono, por isso,
se ele é, de fato, a melhor forma de relacionamento sentimental,
considerando-se que há corajosos os quais conseguiram desbancá-lo com outras
opções, como, até mesmo, o seu primo em segundo grau, '' morar junto''. O que quero
dizer é que o fato de duas pessoas estarem casadas não indica um aumento do
amor ou da lealdade que ambas destinavam uma à outra antes da união
legal/religiosa. No entanto, somos constantemente induzidos a pensar que o
casamento, aquele com a grande festa e os presentes, é a única via de acesso à
felicidade entre um casal, o que se observa no grande imaginário feminino em
que constam idealizações acerca desse tema. Quando tais idealizações,
obviamente, não são supridas pelo matrimônio, e logo ocorre a separação,
dificilmente, a culpa recai sobre a estrutura do casamento como ela nos é
apresentada e sobre como tentamos reproduzi-la: o primeiro culpado, na maioria
das vezes, é o ex-companheiro. Assim, enquanto tentamos reproduzir um modelo de
relacionamento criado por terceiros e não nos esforçamos para criar o nosso
próprio (somos plurais, ora), deixamos o reizinho falar por nós em nossas
escolhas mais íntimas.
O homem só será livre quando o último rei for
enforcado nas tripas do último padre. Mentira. Não precisamos matar os
reizinhos emudecedores para nos libertarmos. Deixemos que eles falem: é para
isso que existem os tapa-ouvidos.
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