terça-feira, 8 de setembro de 2015

O REIZINHO MANDÃO E A ARTE DE FALAR


Publicado em sociedade por Helena Margot



Esquecemo-nos de como falar, mas há sempre um monarca que pode tomar o nosso direito à voz.






Revirando algumas prateleiras de livros empoeirados, deparo-me com um exemplar que li aos sete anos de idade, mas que, apenas hoje, consegui compreender de fato. Trata-se de O Reizinho Mandão, de Ruth Rocha. O enredo envolve a trajetória de um pequeno herdeiro (despreparado) de um reino, que, após a morte do pai, torna-se um governante autoritário. Certa vez, o Reizinho ordena que todos os cidadãos do reino ''calem as suas bocas''. Com o tempo, as pessoas foram se esquecendo de como falar, e restou apenas o monarca como falante no reino.
Esquecemo-nos de como falar. É claro que os reizinhos capazes de nos calar não se restringem aos governantes - temos os reizinhos midiáticos, os das grandes empresas, os do status quo, os do extrato bancário. E isto é o mais triste: a liberdade, aparentemente tangível em uma democracia, não passa de uma grande ilusão, pois até a ela já foi ordenado que ''calasse a boca'' por um reizinho. Nossos gostos e escolhas pessoais são constantemente limitados por vozes as quais, não raro, desconhecemos. O leitor já se deparou com o seu feed de notícias do Facebook e percebeu certa tendência nos posts apresentados? E com as pesquisas no Google, as quais, muitas vezes, apresentam os resultados com maior potencial de venda e não aqueles pelos quais estamos realmente procurando? Sem falar nas notícias. O leitor alguma vez já se viu pensando ''como fulano está sumido, não se ouve mais falar nele'', quando, na verdade, o tal fulano está em grande atividade, apenas não é mais tão comercializável?

Há, por exemplo, certo rei que se recusa a falar sobre a música de qualidade: eis o porquê de se ouvir tantas reclamações acerca da música brasileira de hoje. Dizem que a geração de músicos corrente é inferior e de péssima qualidade. Tais comentários deixam-me demasiadamente triste, pois tenho acesso a músicos talentosíssimos do Brasil de agora, os quais não merecem o título de ''desqualificados'', mas que, por não produzirem músicas tão palatáveis ao público consumidor, acabam por ser desconhecidos e incluídos no grande balaio em que se jogam todos os ''músicos'' brasileiros da atualidade.
Outra tendência de opinião altamente difundida pelos reizinhos é a de que o Poder Executivo é mais poderoso do que os outros dois, provavelmente alguns bilhões de vezes mais poderoso. Ora, se assim fosse, não haveria razão de os outros poderes existirem-por certo, Montesquieu está se debatendo em seu túmulo com tais atrocidades que têm deturpado a sua obra. Lamentavelmente, já nos deparamos com declarações do tipo ''deputado, voto em qualquer um; no final das contas, nenhum presta, mesmo''. O brasileiro só sabe votar em presidente, governador e prefeito e espera uma grande mudança do país com tais escolhas. O leitor já deve ter ouvido e até participado das manifestações por um certo impeachment da representante maior do Executivo brasileiro. Sem assumir qualquer posição política, apenas questiono se o Poder Executivo, sozinho, com um Legislativo que o acorrenta e o imobiliza como o que temos, pode desenvolver o Brasil. Não seria essa mais uma das vezes em que temos um reizinho falando por nós e em que agimos sem questionar(falar) sobre o assunto, apenas seguimos e tentamos pôr em prática essa ideia?
Um rei ao qual nutro real desdém é o que transmite a ideia de que injetar dinheiro no setor educacional é a grande solução para o ensino brasileiro. Tal monarca esquece-se do fato de termos um currículo na educação básica extremamente atrasado, o qual, em vez de preparar os jovens para serem futuros cidadãos, apenas os preparam para serem consumidores embebidos na cegueira do individualismo. Antes de dinheiro, a educação precisa de uma reforma, a qual deve ser incisiva na mudança da matriz curricular, para que os conteúdos aprendidos pelos jovens possam ser associados à prática e à vida real, e não apenas a cálculos nebulosos que apenas servem nas CNTP e no vácuo. Lendo Anna Karenina, vejo-me diante de uma discussão entre alguns membros da alta sociedade russa a respeito da inclusão das ciências naturais no ensino dos seus filhos. As opiniões eram demasiadamente divergentes, algumas voltando-se à ideia de que, caso as ciências naturais fossem incluídas, a literatura, a arte, a história, a música e as línguas acabariam por ser subjugadas. Alguma semelhança com a atual conjuntura? Evidentemente, sou a favor das ciências naturais na educação básica, apenas questiono, como estudante, se a ênfase desmedida à teoria de tais conteúdos, e não à face prática (e realmente útil) deles, não estaria, de fato, prejudicando o desenvolvimento do jovem como ''falante''.
Por fim, volto-me aos reis que calam aqueles que estão envolvidos em um relacionamento. Esses monarquinhas incutem no pensamento coletivo a noção de que há apenas uma opção para se demonstrar o quanto se ama alguém: o matrimônio. Se pararmos para pensar, tudo o que temos hoje foi inventado por outro ser humano no passado. O matrimônio também o foi, apesar da inclinação monogâmica natural do homo sapiens. Questiono, por isso, se ele é, de fato, a melhor forma de relacionamento sentimental, considerando-se que há corajosos os quais conseguiram desbancá-lo com outras opções, como, até mesmo, o seu primo em segundo grau, '' morar junto''. O que quero dizer é que o fato de duas pessoas estarem casadas não indica um aumento do amor ou da lealdade que ambas destinavam uma à outra antes da união legal/religiosa. No entanto, somos constantemente induzidos a pensar que o casamento, aquele com a grande festa e os presentes, é a única via de acesso à felicidade entre um casal, o que se observa no grande imaginário feminino em que constam idealizações acerca desse tema. Quando tais idealizações, obviamente, não são supridas pelo matrimônio, e logo ocorre a separação, dificilmente, a culpa recai sobre a estrutura do casamento como ela nos é apresentada e sobre como tentamos reproduzi-la: o primeiro culpado, na maioria das vezes, é o ex-companheiro. Assim, enquanto tentamos reproduzir um modelo de relacionamento criado por terceiros e não nos esforçamos para criar o nosso próprio (somos plurais, ora), deixamos o reizinho falar por nós em nossas escolhas mais íntimas.
O homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre. Mentira. Não precisamos matar os reizinhos emudecedores para nos libertarmos. Deixemos que eles falem: é para isso que existem os tapa-ouvidos.



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