Literatura brasileira
Afonso
Henriques de Lima Barreto, mais conhecido como Lima Barreto, foi um jornalista,
contribuinte para alguns periódicos anarquistas do início do século XX, e um
dos mais importantes escritores brasileiros.
Conto de Lima Barreto
(Foi preservada a grafia da
época)
Vivia em casa dos tios, numa estação de
subúrbios, onde tinha moradia, comida, roupa, calçado e algum dinheiro que a
sua bondosa tia e madrinha lhe dava para os cigarros.
Ele, porém, não os comprava; “filava-os” dos
outros. “Refundia” os níqueis que lhe dava a tia, para flores a dar às
namoradas e comprar bilhetes de tômbolas, nos vários “mafuás”, mais ou menos eclesiásticos,
que há por aquelas redondezas.
O conhecimento do seu hábito de “filar” cigarros
aos camaradas e amigos, estava tão espalhado que, mal um deles o via, logo
tirava da algibeira um cigarro; e, antes de saudá-lo, dizia:
—Toma lá o cigarro, Cazu.
Vivia assim muito bem, sem ambições nem tenções. A
maior parte do dia, especialmente a tarde, empregava ele, com outros
companheiros, em dar loucos pontapés, numa bola, tendo por arena um terreno
baldio das vizinhanças da residência dele ou melhor: dos seus tios e padrinhos.
Contudo, ainda não estava satisfeito. Restava-lhe a
grave preocupação de encontrar quem lhe lavasse e engomasse a roupa, remendasse
as calças e outras peças do vestuário, cerzisse as meias, etc., etc.
Em resumo: ele queria uma mulher, uma esposa,
adaptável ao seu jeito descansado.
Tinha visto falar em sujeitos que se casam com
moças ricas e não precisam trabalhar; em outros que esposam professoras e
adquirem a meritória profissão de “maridos da professora”; ele, porém, não
aspirava a tanto.
Apesar disso, não desanimou de descobrir uma mulher que lhe servis
convenientemente.
Continuou a jogar displicentemente, o seu football vagabundo
e a viver cheio de segurança e abundância com os seus tios e padrinhos.
Certo dia, passando pela porteira da casa de uma
sua vizinha mais ou menos conhecida, ela lhe pediu:
— “Seu” Cazu, o senhor vai até à estação?
— Vou, Dona Ermelinda.
— Podia me fazer um favor?
— Pois não.
— É ver se o “Seu” Gustavo da padaria “Rosa de
Ouro”, me pode ceder duas estampilhas de seiscentos réis. Tenho que fazer um
requerimento ao Tesouro, sobre coisas do meu montepio, com urgência, precisava
muito.
— Não há dúvida, minha senhora.
Cazu, dizendo isto, pensava de si para si: “É um
bom partido. Tem montepio, é viúva; o diabo são os filhos!”. Dona Ermelinda, à
vista da resposta dele, disse:
— Está aqui o dinheiro.
Conquanto dissesse várias vezes que não precisava
daquilo — o dinheiro — o impenitente jogador de football e
feliz hóspede dos tios, foi embolsando os nicolaus, por causa das dúvidas.
Fez o que tinha a fazer na estação, adquiriu as
estampilhas e voltou para entregá-las à viúva.
De fato, Dona Ermelinda era viúva de um contínuo ou
cousa parecida de uma repartição pública. Viúva e com pouco mais de trinta
anos, nada se falava da sua reputação.
Tinha uma filha e um filho que educava com grande
desvelo e muito sacrifício.
Era proprietária do pequeno chalet onde
morava, em cujo quintal havia laranjeiras e algumas outras árvores frutíferas.
Fora o seu falecido marido que o adquirira com o
produto de uma “sorte” na loteria; e, se ela, com a morte do esposo, o salvara
das garras de escrivães, escreventes, meirinhos, solicitadores e advogados
“mambembes”, devia-o à precaução do marido que comprara a casa, em nome dela.
Assim mesmo, tinha sido preciso a intervenção do
seu compadre, o Capitão Hermenegildo, a fim de remover os obstáculos que certos
” águias” começavam a pôr, para impedir que ela entrasse em plena posse do
imóvel e abocanhar-lhe afinal o seu chalézito humilde.
De volta, Cazu bateu à porta da viúva que
trabalhava no interior, com cujo rendimento ela conseguia aumentar de muito o
módico, senão irrisório montepio, de modo a conseguir fazer face às despesas
mensais com ela e os filhos.
Percebendo a pobre viúva que era o Cazu, sem se
levantar da máquina, gritou:
— Entre, “Seu” Cazu.
Estava só, os filhos ainda não tinham vindo do
colégio. Cazu entrou.
Após entregar as estampilhas, quis o rapaz
retirar-se; mas foi obstado por Ermelinda nestes termos:
— Espere um pouco, “Seu” Cazu. Vamos tomar café.
Ele aceitou e, embora, ambos se serviram da infusão
da “preciosa rubiácea” , como se diz no estilo “valorização”.
A viúva, tomando café, acompanhado com pão e
manteiga, pôs-se a olhar o companheiro com certo interesse. Ele notou e fez-se
amável e galante, demorando em esvaziar a xícara. A viuvinha sorria
interiormente de contentamento. Cazu pensou com os seus botões: “Está aí um bom
partido: casa própria, montepio, renda das costuras; e além de tudo, há de
lavar-me e consertar a roupa. Se calhou, fico livre das censuras da tia…”
Essa vaga tenção ganhou mais corpo, quando a viúva,
olhando-lhe a camisa, perguntou:
— “Seu ” Cazu, se eu lhe disser uma cousa, o senhor
fica zangado?
— Ora, qual, Dona Ermelinda?
— Bem. A sua camisa está rasgada no peito. O senhor
traz “ela” amanhã, que eu conserto “ela”.
Cazu respondeu que era preciso lavá-la primeiro;
mas a viúva prontificou-se em fazer isso também. O player dos
pontapés, fingindo relutância no começo, aceitou afinal; e doido por isso
estava ele, pois era uma ” entrada”, para obter uma lavadeira em condições
favoráveis.
Dito e feito: daí em diante, com jeito e manha, ele
conseguiu que a viúva se fizesse a sua lavadeira bem em conta.
Cazu, após tal conquista, redobrou de atividade
no football, abandonou os biscates e não dava um passo, para obter
emprego. Que é que ele queria mais? Tinha tudo…
Na redondeza, passavam como noivos; mas não eram,
nem mesmo namorados declarados.
Havia entre ambos, unicamente um “namoro de
caboclo”, com o que Cazu ganhou uma lavadeira, sem nenhuma exigência monetária
e cultivava-o carinhosamente.
Um belo dia, após ano e pouco de tal namoro, houve
um casamento na casa dos tios do diligente jogador de football.
Ele, à vista da cerimônia e da festa, pensou: “Porque também eu não me caso?
Porque eu não peço Ermelinda em casamento? Ela aceita, por certo; e eu…”
Matutou domingo, pois o casamento tinha sido no
sábado; refletiu segunda e, na terça, cheio de coragem, chegou-se à Ermelinda e
pediu-a em casamento.
— É grave isto, Cazu. Olhe que sou viúva e com dois
filhos!
— Tratava “eles” bem; eu juro!
— Está bem. Sexta-feira, você vem cedo, para
almoçar comigo e eu dou a resposta.
Assim foi feito. Cazu chegou cedo e os dous
estiveram a conversar. Ela, com toda a naturalidade, e ele, cheio de ansiedade
e, apreensivo.
Num dado momento, Ermelinda foi até à gaveta de um
móvel e tirou de lá um papel.
— Cazu — disse ela, tendo o papel na mão — você vai
à venda e à quitanda e compra o que está aqui nesta “nota”. É para o almoço.
Cazu agarrou trêmulo o papelucho e pôs-se a ler o
seguinte:
1 quilo de feijão. . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . .600 rs.
1/2 de farinha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 rs.
1/2 de bacalhau. . . . . . . . . . . . . . . . . . .1.200 rs.
1/2 de batatas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 360 rs.
Cebolas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 rs.
Alhos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .100 rs.
Azeite. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 300 rs.
Sal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 rs.
Vinagre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 rs.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.260 rs.
Quitanda:
Carvão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . 280 rs.
Couve. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 rs.
Salsa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 rs.
Cebolinha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 rs.
tudo: . . . . . . . . . . .3.860 rs.
Acabada a leitura, Cazu não se levantou logo da
cadeira; e, com a lista na mão, a olhar de um lado a outro, parecia atordoado,
estuporado.
— Anda Cazu, fez a viúva. Assim, demorando, o
almoço fica tarde…
— É que…
— Que há?
— Não tenho dinheiro.
— Mas você não quer casar comigo? É mostrar
atividade meu filho! Dê os seus passos… Vá! Um chefe de família não se
atrapalha… É agir!
João Cazu, tendo a lista de gêneros na mão,
ergueu-se da cadeira, saiu e não mais voltou…
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