terça-feira, 17 de novembro de 2015

OS ÚLTIMOS DIAS DE PABLO NERUDA, SEGUNDO SEU MOTORISTA

A morte do grande poeta chileno


Manuel Araya, vítima da ditadura de Pinochet, denunciou em 2011 o assassinato do Nobel. “Deram-me uma injeção e estou queimando por dentro”, disse-lhe o poeta






Manuel Araya, que foi motorista de Neruda, em Isla Negra. / S. UTRERAS (EL PAÍS)


Cerca de quatro horas antes de Pablo Neruda morrer de um “câncer na próstata”, no domingo 23 de setembro de 1973, o homem que cuidava dele não pôde cumprir a sua última missão, interrompida pelos militares: comprar-lhe “um medicamento que, supostamente, aliviaria a dor do poeta”. Quarenta e dois anos depois, Manuel Araya considera que tem de cumprir, ainda, uma última missão para Neruda: “Ajudar a provar que ele foi assassinado”. Ele está convencido de que o poeta não morreu pelas causas divulgadas oficialmente. É a única testemunha direta viva dos últimos dias do Nobel de Literatura, naqueles momentos iniciais do grande túnel que foi a ditadura de Augusto Pinochet, iniciado em 11 de setembro de 1973.
Manuel Araya tinha 27 anos naquele domingo, véspera de uma viagem de Neruda ao México. Dias que ele recorda agora, ao telefone, falando do Chile, aos 69 anos. Por volta das seis e meia da tarde, ele saiu correndo da Clínica Santa María, de Santiago do Chile, pegou o Fiat 125 branco e foi comprar o medicamento. Quatro militares, portando metralhadoras, o fizeram parar. Araya lhes explicou quem ele era: “Sou o secretário, motorista e a pessoa que cuida do senhor Pablo Neruda, o Nobel de Literatura, e estou indo comprar um medicamento para ele com urgência”. Como resposta, fizeram-no descer do veículo, insultaram-no, aplicaram-lhe golpes e deram-lhe um tiro em uma perna... Depois disso, levaram-no a uma delegacia de polícia, onde foi interrogado e torturado, para depois deixa-lo no Estádio Nacional, para onde a ditadura enviava os opositores a fim de lhes aplicar maus tratos ou fazer com que desaparecessem.
Passou a noite ali. No dia seguinte, o arcebispo Raúl Silva Henríquez o reconheceu e, depois da surpresa inicial, lhe disse: “Manuel, veja só, o Pablito morreu esta noite, às dez e meia”. Araya exclamou: “Assassinos!”. O arcebispo pediu aos militares para tirarem o motorista do Estádio. O que só veio a acontecer 42 dias mais tarde, com ele usando roupas emprestadas, uma barba longa e pesando 33 quilos. Seu calvário estava apenas começando.
Única testemunha
Desde a morte de Pablo Neruda até hoje, Manuel Araya se manteve praticamente à sombra, em silêncio. Talvez tenha escapado pela segunda vez da morte quando, em 22 de março de 1976, seu irmão Patricio desapareceu, segundo ele, por terem-no confundido com ele. Nunca mais se soube desse irmão. Para reforçar sua tese, ele recorda que também o secretário pessoal de Neruda, Homero Arce, foi assassinado, em 1977. “Sumiram com todos os colaboradores de Neruda. Eu sou a parte principal do que ainda continua vivo”.
“Certo dia, voltei para Santiago para não continuar expondo minha família. Vivia quase escondido na casa de alguns amigos. Não tinha carteira de identidade nem carta de motorista. Não conseguia trabalho, até que, em 1977, comecei a trabalhar como taxista. A ditadura acabou em 1990. Dois anos depois, comecei a trabalhar na Pullmanbus, no setor administrativo, até 2006, quando me aposentei.”


Manuel Araya, na época em que trabalhava como motorista para Neruda.

Seu contato com Matilde Urrutia, a terceira mulher de Neruda, falecida em 1985, se manteve. “Ela nunca quis falar sobre o assassinato. Rompi relações com ela por causa disso. Acabamos criando uma inimizade. Bati em muitas portas esse tempo todo. Inclusive na do presidente Eduardo Lagos. Ninguém me ouviu.”
Passou muitos anos correndo atrás de alguém que pudesse ouvir a sua versão, mas ninguém lhe deu ouvidos: “Nem os políticos, nem os veículos de comunicação. Talvez tivessem medo, não sei”. Até que um jornalista da revista mexicana Proceso publicou a sua história, em 2011. Depois disso, o Partido Comunista e Rodolfo Reyes, sobrinho de Neruda, entraram com um pedido de investigação a partir de seu testemunho. Em 2013, o corpo do escritor foi exumado, mas os médicos legistas não encontraram nele resquícios de envenenamento.
O caso voltou à tona com o lançamento da biografia Neruda. El Príncipe de los Poetas [Neruda, o príncipe dos poetas], do historiador alicantino Mario Amorós, cuja principal revelação foi noticiada em primeira mão pelo EL PAÍS na última quinta-feira: o relatório secreto do Programa de Direitos Humanos do Ministério do Interior, enviado em 25 de março de 2015 ao juiz Mario Carroza Espinosa, encarregado do processo. O documento, baseado em provas testemunhais e documentais, afirma que “é claramente possível e altamente provável a intervenção de terceiros” na morte do Nobel. Além disso, uma equipe internacional de legistas investiga a presença do estafilococo dourado no corpo do poeta. Trata-se de um germe que, alterado geneticamente e aplicado em doses elevadas, pode ser letal. A equipe científica definiu o prazo até março de 2016 para emitir um parecer sobre um caso sem precedentes: decifrar o DNA desse germe, detectar a sua presença e se ele foi alterado por alguma equipe militar, levando em consideração que a ditadura chilena usou armas químicas para eliminar pessoas, como admitiu Carroza Espinosa.
O golpe de Estado
Araya nasceu em 29 de abril de 1946, no hospital de Melipilla. Foi batizado como Manuel del Carmen Araya Osorio. Era o primogênito do casal Manuel e María, que teria treze filhos. Não terminou os estudos, mas com 14 anos se mudou para Santiago. Lá começou a trabalhar no Partido Comunista. Quando Salvador Allende foi indicado candidato à presidência, em 1970, Araya o acompanhou na campanha. Todos esses dias voltam agora à sua lembrança:
“Em 1972, quando Neruda retorna ao país, deixando a embaixada na França para ajudar Allende no caos que o Chile vivia, o Partido Unidade Popular me manda para ele. Passo a ser seu guarda-costas, seu secretário e seu chofer. Com ele vivi na casa de Isla Negra. Neruda tinha flebite na perna direita e às vezes mancava. Estava em tratamento de câncer de próstata, mas não estava agonizante. Era um homem de mais de cem quilos, robusto, de boa mesa e festas, e muito cordial e bom com as pessoas.”
História de um caso
Manuel Araya nasce em Melipilla (Chile), em 1946. Com 14 anos vai para Santiago. Começa a trabalhar no Partido Comunista.
Em 1970, participa da campanha de Salvador Allende à presidência.
Em 1972 é cedido a Pablo Neruda para desempenhar as funções de guarda-costas, secretário e motorista.
Em 11 de setembro de 1973, dia do golpe de Estado de Pinochet, está com Neruda em sua casa de Isla Negra.
Nos dia 12, um navio de guerra com canhões se instala em frente a Isla Negra, e a casa de Neruda é revistada.
No dia 19, Neruda chega à Clínica Santa María, em Santiago. No dia 22, o embaixador do México combina a ida do poeta para o seu país.
No dia 23, Neruda, segundo Araya, recebe uma injeção no estômago e morre seis horas depois.
Na noite do dia 23, Araya é levado a uma delegacia, onde é interrogado e torturado. Sai 42 dias depois. Vive semioculto.
Em 1977, começa a trabalhar como taxista.
Em 2011, Araya denuncia o assassinato na revista Proceso. O Partido Comunista e Rodolfo Reyes, sobrinho de Neruda, abrem um processo.
Em 2016, o juiz Mario Carroza Espinosa ditará o veredicto.
“Em 11 de setembro de 1973, quando Pinochet dá o golpe de Estado, estávamos em Isla Negra. Nesse dia ele ia fazer uma espécie de inauguração de Cantalao, uns terrenos que ele havia comprado, em El Quisco, onde queria construir uma residência para escritores do mundo todo. Mas às quatro da manhã escutei o sininho com que ele me chamava, para me dizer que acabava de escutar numa rádio argentina que um golpe de Estado estava sendo preparado. Nesse dia entram no palácio de La Moneda e assassinam Allende. Eu tinha afrouxado uns tubos da televisão para que ele não visse o que acontecia. Mas fica sabendo, claro. Todo o país entra em toque de recolher. Ficamos sem telefone. Isla Negra se enche de carabineiros. ‘Vão matar todo mundo’, dizia don Pablo. Falava da Guerra espanhola, do que Franco fez… Neruda se dava valor.”
“No dia seguinte, colocam um navio de guerra com canhões em frente à Isla Negra. O embaixador do México lhe oferece asilo. No dia 14 chegam os militares e revistam a casa. Ficamos assustados. Neruda fala com seu médico, o doutor Roberto Vargas Salazar, que lhe diz que em 19 de setembro vagaria o quarto 406 da Clínica Santa María. Os militares não queriam lhe dar o salvo-conduto, então ele precisou dizer que estava mal e que precisava sair para receber tratamento; a única forma de tirá-lo era por razões humanitárias.”
“Nos dia 19 viajamos de carro de Isla Negra a Santiago. Levamos umas cinco horas, quando o normal eram duas. Foi um dia horrível. Pararam-nos várias vezes. Em Melipilla nos fizeram descer e deitar no chão. Fizeram-nos passar medo. A perseguição foi terrível. Chegamos lá pelas seis da tarde. Não deixamos Neruda sozinho em nenhum instante. Todas as noites eu ficava dormindo sentado numa poltrona, e Matilde numa saleta da entrada principal do quarto.”
“Nos dia 22 lhe entregam o salvo-conduto e ele decide com o embaixador mexicano, Gonzalo Martínez Corbalá, viajar na segunda-feira, dia 24. Nesse mesmo dia 22 [o embaixador] o visita na Clínica Radomiro Tomic e lhe conta que Víctor Jara foi assassinado. Neruda se desespera."
Um domingo negro
"No dia seguinte, domingo, dia 23, ele me diz para ir a Isla Negra com La Patoja, como ele chamava Matilde, para trazer a bagagem. Vamos, e ele fica com sua meia irmã Laurita. Quando estamos quase de volta, às quatro da tarde, ele liga para a Hospedaria Santa Helena e pede que digam a Matilde que vá imediatamente para a clínica. Quando chegamos, vejo Neruda com a cara vermelha. ‘O que está havendo, don Pablo!', pergunto. ’Deram-me uma injeção no estômago e estou queimando por dentro’, me respondeu. Fui ao banheiro, peguei uma toalha, molhei-a e a coloquei sobre o estômago. No que estou fazendo isso entra um médico e me diz: ‘Como motorista, você precisa ir comprar Urogotán’. Eu não sabia o que era, só depois soube que era para a gota.”
Saiu e nunca pôde voltar
“Quando estou no carro, outros dois automóveis me interceptam. Descem quatro homens com mini metralhadoras e me golpeiam. Falam de tudo para mim: filho da mãe, da avó… Digo a eles quem sou. ‘Vamos matar os comunistas!’, gritavam. Levam-me para a delegacia, me interrogam e me torturam. Queriam que eu lhes dissesse onde estavam os líderes comunistas, e com quem Neruda se reunia. Digo a eles que só se reúne com escritores. No final me levam ao Estádio Nacional. No dia seguinte, o arcebispo Silva Henríquez me dá a notícia [da morte de Neruda].”


Manuel Araya, em Isla Negra, neste mês. / SEBASTIÁN UTRERAS (EL PAÍS)

Em 2011, Manuel Araya diz que Pablo Neruda foi assassinado. Abre-se o processo. O cadáver é exumado em abril de 2013, e em novembro desse mesmo ano a equipe científica opina que não encontrou rastro de veneno. Em janeiro de 2015, a presidenta Michelle Bachelet designa advogados para que investiguem o caso no âmbito do Programa de Direitos Humanos do Ministério do Interior. Assim, em 25 de março enviam a conclusão das suas investigações ao juiz Mario Carroza Espinosa, que a incorpora ao sigilo do processo.
Manuel Araya espera o veredicto. Sua última missão com Pablo Neruda está cumprida. Foi ouvido. Em 2016, já com 70 anos, saberá como tudo termina. Agora no Chile é primavera, como naqueles dias de 1973, mas ele sente frio e afirma: “Estou mais tranquilo do que nunca”.

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