Tim
Vickery*Colunista da BBC Brasil *
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Eduardo Martino
Acho que nasci com alguma parte virada
para a lua. Chegar ao mundo na Inglaterra em 1965 foi um golpe e tanto de
sorte. Que momento! The Rolling Stones cantavam I Can’t
Get no Satisfaction, mas a minha trilha sonora estava mais para uma
música do The Who, Anyway, Anyhow, Anywhere.
Na minha infância,
nossa família nunca teve carro ou telefone, e lembro a vida sem geladeira,
televisão ou máquina de lavar. Mas eram apenas limitações, e não o medo e a
pobreza que marcaram o início da vida dos meus pais.
Tive saúde e escolas
dignas e de graça, um bairro novo e verde nos arredores de Londres, um apartamento
com aluguel a preço popular – tudo fornecido pelo Estado. E tive oportunidades
inéditas. Fui o primeiro da minha família a fazer faculdade, uma possibilidade
além dos horizontes de gerações anteriores. E não era de graça. Melhor ainda, o
Estado me bancava.
Olhando para trás,
fica fácil identificar esse período como uma época de ouro. O curioso é que,
quando lemos os jornais dessa época, a impressão é outra. Crise aqui, crise lá,
turbulência econômica, política e de relações exteriores. Talvez isso revele um
pouco a natureza do jornalismo, sempre procurando mazelas. É preciso dar um
passo para trás das manchetes para ganhar perspectiva.
Será que, em parte,
isso também se aplica ao Brasil de 2015?
Não tenho dúvidas de
que o país é hoje melhor do que quando cheguei aqui, 21 anos atrás. A
estabilidade relativa da moeda, o acesso ao crédito, a ampliação das
oportunidades e as manchetes de crise – tudo me faz lembrar um pouco da
Inglaterra da minha infância.
Por lá, a
arquitetura das novas oportunidades foi construída pelo governo do Partido
Trabalhista nos anos depois da Segunda Guerra (1945-55). E o Partido
Conservador governou nos primeiros anos da expansão do consumo popular
(1955-64). Eles contavam com um primeiro-ministro hábil e carismático, Harold Macmillan,
que, em 1957, inventou a frase emblemática da época: "nunca foi tão bom
para você" ("you’ve never had it so good", em inglês).
É a versão britânica
do "nunca antes na história desse país". Impressionante, por sinal,
como o discurso de Macmillan trazia quase as mesmas palavras, comemorando um
"estado de prosperidade como nunca tivemos na história deste país"
("a state of prosperity such as we have never had in the history of this
country", em inglês).
Macmillan,
"Supermac" na mídia, era inteligente o suficiente para saber que uma
ação gera uma reação. Sentia na pele que setores da classe média, base de apoio
principal de seu partido, ficaram incomodados com a ascensão popular.
Em 1958, em meio a
greves e negociações com os sindicatos, notou "a raiva da classe
média" e temeu uma "luta de classes". Quatro anos mais tarde,
com o seu partido indo mal nas pesquisas, ele interpretou o desempenho como
resultado da "revolta da classe média e da classe média baixa", que
se ressentiam da intensa melhora das condições de vida dos mais pobres ou da
chamada "classe trabalhadora" ("working class", em inglês)
na Inglaterra.
Em outras palavras,
parte da crise política que ele enfrentava foi vista como um protesto contra o
próprio progresso que o país tinha alcançado entre os mais pobres.
Mais uma vez, eu
faço a pergunta – será que isso também se aplica ao Brasil de 2015?
Alguns anos atrás,
encontrei um conterrâneo em uma pousada no litoral carioca. Ele, já senhor de
idade, trabalhava como corretor da bolsa de valores. Me contou que saiu da
Inglaterra no início da década de 70, revoltado porque a classe operária estava
ganhando demais.
No Brasil
semifeudal, achou o seu paraíso. Cortei a conversa, com vontade de vomitar.
Como ele podia achar que suas atividades valessem mais do que as de
trabalhadores em setores menos "nobres"? Me despedi do elemento com a
mesquinha esperança de que um assalto pudesse mudar sua maneira de pensar a
distribuição de renda.
Mais tarde, de
cabeça fria, tentei entender. Ele crescera em uma ordem social que estava sendo
ameaçada, e fugiu para um lugar onde as suas ultrapassadas certezas continuavam
intactas.
Agora, não preciso
nem fazer a pergunta. Posso fazer uma afirmação. Essa história se aplica
perfeitamente ao Brasil de 2015. Tem muita gente por aqui com sentimentos
parecidos. No fim das contas, estamos falando de uma sociedade com uma noção
muito enraizada de hierarquia, onde, de uma maneira ainda leve e superficial, a
ordem social está passando por transformações. Óbvio que isso vai gerar uma
reação.
No cenário atual,
sobram motivos para protestar. Um Estado ineficiente, um modelo econômico míope
sofrendo desgaste, burocracia insana, corrupção generalizada, incentivada por
um sistema político onde governabilidade se negocia.
A revolta contra
tudo isso se sente na onda de protestos. Mas tem um outro fator muito mais
nocivo que inegavelmente também faz parte dos protestos: uma reação contra o
progresso popular. Há vozes estridentes incomodadas com o fato de que, agora,
tem que dividir certos espaços (aeroportos, faculdades) com pessoas de origem
mais humilde. Firme e forte é a mentalidade do: "de que adianta ir a Paris
para cruzar com o meu porteiro?".
Harold Macmillan,
décadas atrás, teve que administrar o mesmo sentimento elitista de seus
seguidores. Mas, apesar das manchetes alarmistas da época, foi mais fácil para
ele. Há mais riscos e volatilidade neste lado do Atlântico. Uma crise
prolongada ameaça, inclusive, anular algumas das conquistas dos últimos anos.
Consumo não é tudo, mas tem seu valor. Sei por experiência própria que a
primeira geladeira a gente nunca esquece.
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil
e formado em História e Política pela Universidade de Warwick
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