Ciência: conservação ambiental
Especialistas denunciam que 450 represas podem acabar com um
terço dos peixes de rio do mundo nas bacias do Amazonas, do Congo e do Mekong,
nas quais vivem 4.000 espécies de peixes fluviais
POR MANUEL ANSEDE
PARA EL PAÍS, O JORNAL GLOBAL
Quase 500 barragens projetadas nas bacias de três dos
principais rios do planeta colocam um terço dos peixes de rio em risco, segundo
denúncia feita nesta sexta-feira por 40 especialistas na revista científica
Science. Apenas no Brasil, a represa da hidrelétrica de Belomonte coloca em
risco 50 espécies que só existem no país. Enquanto nas nações industrializadas
emerge um movimento para destruir as represas mais nocivas, existem projetos
para construir 450 novas barragens nas bacias dos rios Amazonas (América do
Sul), Congo (África) e Mekong (Ásia). Os signatários do artigo denunciam a
“falta de transparência” durante os processos de autorização das represas e a
“falta de protocolos” para avaliar seu impacto ambiental.
Queimada florestal junto ao rio Xingu (Pará), preparando terreno para a represa de Belo Monte. LILO CLARETO |
“Esses projetos abordam importantes necessidades
energéticas, mas seus defensores costumam superestimar os benefícios econômicos
e subestimar os efeitos de longo prazo sobre a biodiversidade e recursos
pesqueiros cruciais”, alertam os autores, liderados pelo ecologista Kirk
Winemiller, professor da Universidade Texas A&M (EUA).
Nas bacias dos rios Amazonas, Congo e Mekong vivem 4.000
espécies de peixes de rio, uma terça parte de todas as conhecidas no planeta. A
maioria não é encontrada em nenhum outro lugar. Os 40 especialistas salientam
que “as grandes represas invariavelmente reduzem a diversidade pesqueira”, além
de impedir a conexão entre diferentes populações fluviais e bloquear o ciclo de
vida normal de espécies migratórias. “Isso pode ser especialmente devastador
para os estoques pesqueiros tropicais, nos quais muitas espécies de grande
valor migram centenas de quilômetros”, argumentam.
Entre os signatários há dezenas de professores de universidades
dos EUA, Brasil, Reino Unido, Camboja e Alemanha, além de especialistas do
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e da União Internacional para a
Conservação da Natureza.
O cascudo-zebra, valorizado como espécie ornamental, só vive em trechos ameaçados do rio Xingu. / Kirk Winemiller |
“Mesmo quando as avaliações de impacto ambiental são
obrigatórias, milhões de dólares podem ser gastos em estudos que não têm
nenhuma influência real para os projetos, às vezes porque eles são finalizados
quando a construção já está em andamento”, denunciam os autores.
Winemiller recorda o caso do rio Xingu, um importante
afluente do Amazonas. Seu trecho inferior é um complexo de corredeiras que
serve de hábitat a quase meia centena de espécies pesqueiras que não são
encontradas em nenhum outro ponto da Terra. “Essas espécies, que alimentam os
pescadores locais que abastecem o comércio internacional de peixes ornamentais,
estão agora ameaçadas pelo gigantesco projeto hidrelétrico de Belo Monte”,
observa Winemiller. Esse complexo de represas no Estado do Pará, com conclusão
prevista para este ano, foi projetado para ser a terceira maior usina
hidrelétrica do mundo, atrás apenas das de Três Gargantas (China) e Itaipu
(Brasil/Paraguai).
“Esse polêmico projeto está quase terminado e vai alterar
radicalmente o rio, sua ecologia e a vida da população local, especialmente das
comunidades indígenas que dependiam dos serviços que o ecossistema do rio
proporciona”, acrescenta Winemiller. A construção é parte do Programa de Aceleração
do Crescimento do Governo brasileiro, que busca impulsionar o desenvolvimento
econômico do país. A organização Survival, que defende os direitos dos povos
indígenas em todo o mundo, denunciou que “a represa destruiria os meios de
subsistência de milhares de indígenas que dependem da selva e do rio para obter
água e alimentos”.
“Somos céticos quanto à afirmação de que as comunidades
rurais no Amazonas, no Congo e no Mekong estariam se beneficiando mais pelo
fornecimento de energia e a geração de emprego do que sofrendo prejuízos pela
perda da pesca, da sua agricultura e das suas propriedades”, dizem os autores
na Science. Os cientistas pedem que as autoridades utilizem os métodos
analíticos mais modernos para levar em conta todos os impactos acumulativos das
represas sobre o meio ambiente e as populações locais, com o objetivo de
descartar projetos muito prejudiciais ou realocá-los para trechos fluviais
menos frágeis.
Em 75% dos casos, a construção das grandes represas no mundo
teve estouros orçamentários de quase 100% em relação ao valor estimado
previamente.
Os especialistas calculam que em 75% dos casos a construção
das grandes represas no mundo teve estouros orçamentários de quase 100% dos
valores estimados previamente. A equipe recorda o caso da represa de Três
Gargantas, em que o Governo chinês precisou destinar 26 bilhões de dólares
(105,3 bilhões de reais, pelo câmbio atual) adicionais para atenuar o impacto
ecológico.
“As agências governamentais responsáveis pelas autorizações
para a construção de represas devem exigir avaliações de impactos ambientais
rigorosos e amparados na ciência, em escala regional”, pleiteia Winemiller.
Além disso, afirma ele, as instituições financeiras, como o Banco Mundial e o
Banco Interamericano de Desenvolvimento, “devem exigir garantias de que esse
tipo de avaliação ocorra antes da aprovação dos financiamentos”.
Emmanuel Boulet, especialista-chefe em questões ambientais
do Banco Interamericano de Desenvolvimento, recorda que há protocolos
internacionais de boas práticas para a construção de barragens fluviais.
“Quando aplicados, podemos ter resultados benéficos para todos, como na usina
hidrelétrica de Reventazón, na Costa Rica, ou na central hidrelétrica de
Chaglla, no Peru”, opina. O banco concedeu créditos de 200 milhões e 150
milhões de dólares, respectivamente, para esses dois projetos.
Boulet, no entanto, aceita as críticas. “Reconhecemos que os
países podem melhorar seu planejamento da energia hidrelétrica. Em outras
palavras, temos de realizar os projetos adequados e fazê-los adequadamente.”
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