Natureza: evolução
Novos indícios de
que antigos cruzamentos entre as três espécies tiveram consequências evolutivas
Localização geográfica das 159 populações estudadas. SCIENCE
Estamos tão acostumados a ser os únicos humanos
sobre a Terra que quase não podemos imaginar um passado em que, saindo da África para
um mundo desconhecido, o mais fácil era encontrar pelo caminho gentes de outras
espécies do gênero Homo que
compartilhavam conosco um passado esquecido, e com as quais, conforme sabemos
agora, não descartávamos compartilhar o sonho de uma noite de verão. Sem que
nossa lógica mais profunda, a genética, considerasse isso algo inconveniente.
Segundo a última pesquisa de 1.523 genomas de
pessoas de todo o mundo, incluindo pela primeira vez os de 35 melanésios,
os neandertais se
relacionaram não uma, mas três vezes (em três épocas diferentes), com diversas
populações de humanos modernos. Só ficaram de fora os africanos, pela simples
razão de que os neandertais não estavam ali. Os melanésios atuais carregam o
DNA de outra espécie arcaica, os misteriosos denisovanos que viviam na Sibéria
há 50.000 anos, mas nem por isso se livraram da promiscuidade neandertal: seus genomas atuais têm as marcas inconfundíveis
tanto de neandertais como de denisovanos.
E um prêmio de consolação: os genes da evolução do
córtex, a sede da mente humana, são inteiramente nossos, dos Homo sapiens. Os
demais parecem ser adaptações ao clima local. São os resultados que 17
cientistas da Universidade de Washington em Seattle, a Universidade de Ferrara,
o Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva em Leipzig e o Instituto de
Pesquisa Médica da Goroka, na Papua Nova Guiné, entre outros, apresentaram na
revista Science.
Os genomas costumam ser medidos em megabases, ou
milhões de bases (as letras do DNA, gatacca…). O genoma humano tem 3.235
megabases. Dessas, 51 megabases são arcaicas nos europeus, 55 nos asiáticos
meridionais e 65 nos asiáticos orientais. Quase todas essas sequências
arcaicas são de origem neandertal nessas populações. Em contraste, os
melanésios apresentam uma média de 104 megabases arcaicas, das quais 49 são
neandertais e 43 são denisovanas (as 12 restantes são ambíguas por enquanto).
São só números, mas dão uma ideia do grau de precisão alcançado pela genômica
humana.
Mas o
diabo mora nos detalhes. As sequências arcaicas não estão distribuídas de
maneira homogênea pelo genoma, muito pelo contrário. Há zonas onde estão muito
pouco representadas, ou seja, onde há trechos de 8 megabases ou mais sem uma
única letra neandertal ou denisovana. Estes trechos de puro DNA moderno, ou
sapiens, são ricos em genes implicados no desenvolvimento do córtex cerebral –
a sede da mente humana – e o corpo estriado (ou núcleo estriado), uma região
interna do cérebro responsável pelos mecanismos de recompensa e, portanto,
envolvida a fundo no planejamento de ações e na tomada de decisões.
Segundo
as análise estatísticas dos autores, não é por mera casualidade que os genes
envolvidos nessas altas funções mentais estão livres de sequências neandertais
ou denisovanas. O fato implica, provavelmente, que a presença de DNA arcaico
ali se revelou desvantajosa durante os últimos 50 milênios e, portanto, foi
varrida pela seleção natural.
Entre
os genes modernos se encontra o famoso gene da linguagem, FOXP2, o que volta a
levantar dúvidas sobre a capacidade de linguagem dos neandertais. A sequência
idêntica deste gene em neandertais e sapiens foi considerada uma prova de que
os neandertais falavam, mas os genes são mais que sua sequência de código (a que
se traduz em proteínas): existem ainda zonas reguladoras essenciais, as que
dizem ao gene onde, quando e quanto se ativar. Outros genes puramente modernos
são, quando em mutação, os responsáveis pelo autismo.
Também
são interessantes as regiões genômicas contrárias, isto é, as particularmente
ricas em genes neandertais ou denisovanos. Os genomas melanésios revelaram 21
regiões desse tipo que mostram evidências de terem sido favorecidas pela
seleção natural. Muitas delas contêm genes implicados no metabolismo (a cozinha
da célula), como o do hormônio GCG, que incrementa os níveis de glicose no
sangue, ou o da proteína PLPP1, encarregada de processar as gorduras; também há
cinco genes implicados na resposta imune inata, a primeira linha de defesa
contra as infecções.
Tudo
isso reforça os indícios anteriores de que os cruzamentos de nossos ancestrais
sapiens com as espécies arcaicas que encontraram durante suas migrações fora do
continente africano foram importantes para adaptar-se às condições locais:
clima, dieta e infecções frequentes na região. Faz sentido, certamente.
Foram
sonhos de uma noite do verão, mas voltam agora para nosso encontro, como em uma
boa peça de teatro clássico.
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