Cultura: Bahia, Brasil
Publicado por Daniele
Nascimento
Se você é um viajante à moda
antiga, daqueles que não sofrem de ansiedade por não ter tirado cento e
cinquenta selfies com obras de arte das quais você nunca mais lembrará a
sensação de ter estado em contato, ao término da jornada turística, então, está
apto a visitar a Casa do Rio Vermelho – residência de dois monstros sagrados,
no bom sentido, da cultura brasileira. Ícones de uma nação que se esqueceu de
amar e de se orgulhar dos seus feitos.
Num mundo em que as
notícias de intolerância nas redes sociais, escândalos de corrupção, guerra de
poder, desastres ambientais e atentados terroristas parecem ser os únicos temas
para os quais nossa atenção deva estar imperiosamente direcionada, por uma
questão de sobrevivência neste planeta, ingressar na Casa do Rio Vermelho, onde
viveram Jorge Amado e Zélia Gattai, é nos levar, imediatamente, a um templo em
que as ideias eram compartilhadas ao vivo, no calor das relações humanas ainda
presenciais.
Com muita simplicidade, amor e elegância,
esses dois grandes escritores foram capazes não somente de trazer ao mundo sua
genialidade como, paralelamente, agregarem em torno de suas vidas uma gama
variada de tipos humanos, de músicos, escritores, cineastas, intelectuais,
políticos, astronauta, líderes religiosos do candomblé e gente anônima do povo.
Só para ilustrar: o casal recebeu na famosa casa da Rua Alagoinhas, 33, visitas
de Glauber Rocha, Pablo Neruda, Saramago, Tom Jobim, Dorival Caymmi, Roman
Polanski, Jack Nicholson, Pierre Verger, Sartre e Simone de Beauvoir entre
tantos outros.
Por abrigar tanta riqueza cultural, a
visitação desse Memorial é como realizar um exercício de valorização da nossa
cultura. Remédio para a cura da nossa baixa autoestima de país subdesenvolvido
e verdadeiro elixir para almas cansadas de tanta desgraça pairando no mundo e
ameaçando a própria existência do ser humano.
A Casa tem vida própria. Ela em si é um
personagem que vibra como se ainda seus anfitriões e amigos ali estivessem
circulando. Esse sentimento não é ao acaso. Há inúmeros sinais de que ela é
especial, a começar pelo fato de que as cinzas de Zélia Gattai e Jorge Amado
encontram-se enterradas no gracioso e acolhedor jardim desta incrível
residência, mais precisamente próximo ao banco onde o casal adorava ficar nos
fins de tarde. Isso imprime a sensação de que você visitante está sendo
convidado a partilhar, mesmo que por algumas horas, da intimidade daqueles
eternos moradores.
Outro sinal é a intrigante escultura de Exú,
ser de ligação entre o mundo material e espiritual segundo a crença do
candomblé, espécie de protetor de Jorge Amado e da Casa, o qual dá as
boas-vindas àqueles que se lançam nessa jornada, não sem antes cobrar uma
oferenda para se seguir viagem.
Seguindo a visitação e penetrando no interior
Casa, quem tem curiosidade de estudar o processo criativo de grandes artistas,
encontrará um mapa completo de dados e concluirá, sem dúvida, que a
simplicidade é o caminho das pedras para despertar ideias. Num rápido olhar, é
possível captar a atmosfera leve presente em cômodos basicamente preenchidos de
móveis rústicos alternados entre madeira, ferro e alvenaria. Ambiente perfeito
para transformar sonhos em arte.
Do contrário, quem quer apenas buscar
sensações, poderá rememorar que o ser humano merece estar neste planeta chamado
Terra, podendo até voltar a ter até orgulho disso ao mergulhar num
microuniverso repleto de alegria, cores e muita paixão pela vida.
As referências artísticas permeiam toda a
residência dos escritores. Há obras de arte espalhadas por toda a parte
começando pelos elementos que compõem a própria residência: por todos os
cômodos da casa há azulejaria pintada pelo famoso artista plástico Carybé, o
qual cravou em cada um a imagem dos orixás Oxóssi e Oxum, os guardiões da vida
de Jorge e Zélia na religião do candomblé. Há ripas de madeira que sustentam o
telhado, cujo acabamento revela um pássaro esculpido prestes a voar. Das portas
surgem figuras geométricas ligadas a espaços vazios possibilitando entrada
sutil de luz natural e ventilação.
No item decoração, não há tendências ou
modismos impostos por nenhum expert contratado pelos antigos moradores. Na
realidade, há uma inquestionável impressão de que artistas de todas as origens
queriam expressar gratidão aos anfitriões, após serem encantados e tocados pelo
amor do mítico casal, transmutando, assim, sentimentos em objetos obra-de-arte
para sorte e deleite dos atuais visitantes. São exemplos os pratos com poesias
do músico Tom Zé que enfeitam as paredes da cozinha, uma enorme sereia
esculpida em madeira por Mário Cravo Júnior e um belo azulejo pintado por Pablo
Picasso.
Outro ponto surpreendente, é o local de
trabalho do autor. Seu “home officer” era a sala de jantar, decorada com mesa
de madeira a repousar, quase flutuar, uma máquina de escrever manual (talvez,
mágica), de onde floresceram mais de trinta obras traduzidas em diversas
línguas. Ao lado da máquina estão manuscritos do autor, provocando no visitante
a experiência de estar assistindo o ato criativo naquele instante. O baú de
madeira com livros integra o escritório e completa o set laborativo.
Ao que tudo indica, observando seus objetos
de criar, Jorge Amado nunca usou um computador, fato que não o impediu de
forjar uma parte da identidade brasileira e espalhá-la pelo mundo, assim como o
fizeram, cada um ao seu modo, Euclydes da Cunha, Oswald de Andrade, Gilberto
Freyre, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Ariano Suassuna, João Ubaldo Ribeiro.
Todos compondo uma linda aquarela de cores e tons da nossa, hoje, tão combalida
nacionalidade.
Delicada e justamente, a exposição não relega
ao posto secundário Zélia Gattai. A companheira de Jorge Amado, de família
italiana, está lá em suas diversas facetas. Em primeiro plano como a corajosa
jovem jornalista, escandalosamente divorciada, que ousou viver ao lado do seu
grande amor Jorge Amado. Em seguida, originada dessa matriz revolucionária, vem
a mãe, a fotógrafa, a intelectual, a escritora, a costureira, bordadeira, a
colecionadora de artes, a ocupante da Academia Brasileira de Letras como assim
foi também seu marido, enfim, a mulher que ousou ser moderna, como poucas o
foram, antes mesmo da modernidade chegar para o gênero feminino.
É tão rica a história da dupla de escritores
que há várias exposições dentro da mesma exposição: há correspondências de
Jorge com Zélia e com diversos expoentes da política, do cinema, da
intelectualidade daqui e do mundo em diversos momentos históricos. Há fotos,
roupas, gastronomia baiana com as receitas ensinadas pela famosa cozinheira
Dadá, cultura de candomblé (Jorge, quando deputado federal pelo Partido
Comunista, foi autor da emenda constitucional que garantiu a liberdade
religiosa), esculturas trazidas do mundo inteiro e também de várias regiões do
Brasil.
Quando se chega ao final do tour do
museu-casa, o sentimento a brotar do peito, sem pieguice, é a de que podemos
cantar em voz alta: “Eu sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor”.
Jorge Amado, Zélia Gattai e a Casa do Rio
Vermelho formam uma espécie de Santíssima Trindade, na qual as futuras gerações
poderão encontrar o retrato fiel da essência brasileira, pois nessa entidade
tríade reside um pedaço do genoma cultural brasileiro.
Salvem, Jorge, Zélia, a Casa do Rio Vermelho
e o Brasil da diversidade, ontem, hoje e sempre!
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