Literatura: Crônica
Publicado por Yan Masetto
”Na eterna
vida ‘severina’ de todos os dias, na rotina de todas as construções de
conhecimento, a vida se reflete em palavras, palavras que ecoam das almas que
tanto querem, mas pouco podem dizer. São dutos que levam, perpassam e
transformam os cotidianos daqueles olhos fatigados de tanto quererem. Na
reflexão dos espelhos, na reflexão das mentes que pedem por mais, por algo além
da superfície já esburacada pela mesmice. Escrever para ajudar, para ampliar,
para retirar a insatisfação, não com a vida, mas com a própria força interna presente
em todos os seres humanos, fortalecidos pelas línguas, pela linguagem, pela
comunicação e pela interação constante e ininterrupta entre os espíritos. Para
sobrevivermos no mundo real, ultrapassando algumas veredas, em direção a tão
sonhada Pasárgada.
Todos os seres humanos têm, sem
exceção, um amigo, ou ao menos um conhecido, que seja muito sincero. Muitas
brincadeiras - e comentários - desse cidadão, muitas vezes, não são tão apenas
sinceros, como também entram no campo da grosseria. Palavras desnecessárias,
colocações improváveis em momentos inoportunos, piadinhas em circunstâncias
adversas. E muitos, mas muitos dias em que ficar a seu lado se torna um desafio
infindável. Entretanto, até que ponto alguém sincero não é nada além do que um
ser grosseiro?
O ser humano é, em
essência, social. Desde nosso nascimento, entramos em contato com o mundo, com
outras pessoas, com pessoas que conhecem pessoas que conhecem pessoas, e vêm
todas nos ver, felizes, enquanto bebês. Viramos a vitrine da família, a foto de
perfil de tantas tias e tios nas atuais redes sociais - quando não nos tornamos
milhares de fotos dentro de muitos álbuns, muitas vezes sem noção. E sem
dúvida, dentre todas as circunstâncias bizarras, eis que a única certeira é a
do convívio social, da divisão de nossos espaços e tempos com outros seres -
crescidos ou não.
Isto é uma segurança em nossas vidas.
Enquanto crianças, enquanto adolescentes, adultos, universitários,
trabalhadores, empresários, professores, seja lá o que escolher, conviveremos
com outras pessoas de diversos modos, com diversas posições em relação ao que é
viver, e diversas posturas diante de todos os muitos assuntos de todos os
cotidianos - ideologia, política, sociedade, economia, administração, família, casamento,
a alta do dólar, o fim de semana no rancho, etc. E, em meio a todo este
emaranhado complexo e quase infinito, de conexões diretas e indiretas entre as
pessoas, nos deparamos com uma postura que, muitas vezes, nos causa
perturbação: a sinceridade. Obviamente, a alheia, pois a nossa nunca nos
incomodará, pois quem escuta decide se o que falamos é cabível - ou não. Porém,
neste momento, nos atentemos a tal postura.
Em meio de nossos caminhos, nos encontramos
com pessoas, e mais pessoas, que nos ajudarão, oferecerão um ombro para chorar,
uma mão para se levantar, um sorriso para continuar a darmos nossos passos. E
dos ajudantes, dos sorridentes, ou até mesmo dos ranzinzas, fazemos uma seleção
estranha e ganharemos ao nosso lado os amigos. Normalmente, e muito mais
normal do que imaginamos, o amigo sempre será aquele que podemos "contar
para tudo", além de sempre ser o personagem principal para
comentários: sempre nos oferecerá aquela "real" que precisamos
escutar, sobre a nossa roupa, sobre o nosso cabelo, sobre se a garota com que
você está saindo é meio louca, ou se é muito chato aquele "boy magia"
com o qual deu aquela flertada no último sábado na balada. Homens e mulheres,
estes seres tão ativos em nossos caminhos nos completam, sendo muito importantes
para tudo, e principalmente para nos lembrarmos de quem somos.
Mas nada na vida é perfeito. Tratando deste
assunto em particular, não, não é muito agradável a falta de perfeição. Pelo
menos à primeira vista. A presença de pessoas que comentam, e são sinceras, é
maravilhosa, como exposto ali em cima. Aí começam os comentários impertinentes,
no meio da balada, no meio daquele beijo legal com a garota super gata, ou
daquele cineminha com o garotão - tudo entra em um estado de sinceridade plena.
A roupa, o cabelo, a pele, o carinha, a menina, a roupa da menina, o bíceps
pequeno do boy, etc. A liberdade de comentar - e julgar tudo -, se
torna a única característica. E nós vamos, aos poucos, nos desgostando disso,
até explodirmos de tão cheio que estará nossos sacos de paciência - ou de
tolerância. E fica a dúvida: esta pessoa está sendo sincera ou já entra naquele
nível insuportável de grosseria? Apesar da resposta tender ao que é muito
óbvio, a proposta aqui é tentar entender porque a/o BFF pode -
ou já é - o grosseiro/a da história. E temos alguns pontos para lidar.
O primeiro é o nível de intimidade com
a pessoa. Obviamente, colocamos como exemplo aquele/ amigo/a muito/a íntimo/a.
Mas, mesmo ele/ela não está ausente de se encaixar no grupo da grosseria. Aliás,
muito facilmente eles se encaixarão, mais cedo ou mais tarde, se não se
cuidarem. Pois bem, se alguém não é íntimo e comenta sobre sua roupa, dizendo
que sua combinação de cores está horrível, ou está causando uma gafe, o
desconforto virá quase que imediatamente, pois a falta de empatia anterior faz
com que recebamos como um ataque direto, um tapa na cara, com aquela soma de
"não sabemos nada de moda". Não que importe, mas treme o mundo de
qualquer forma, fica um climão bem estranho no ar e aí dá
aquela vontade de responder, dizer para a dita cuja o que ela tem a ver com
nossas vidas. Honestamente, não vale a pena fazer isso, mas a vontade vem, é
certo.
Em segundo lugar, ficamos em uma
encruzilhada: não somente o conteúdo do que é dito, mas o tom,
o como dizer é muito importante. Exatamente porque dizer que se está mal
arrumado, ou a roupa não combina com a meia não é um problema em si, pois a
própria pessoa possa ter querido ir dessa forma e, qualquer comentário que
venha, não ser interpretado como um - e causar o tal climão. Dessa
forma, o amigo que faz muitos comentários não infringiria o limite de
sinceridade. O problema real se instala em como ele/a dirá tal posicionamento:
se houver uma exaltação, quase impositiva, em um nível de juízo, aí sim entra a
grosseria. Ele/a tem todo o direito de analisar e falar o que pensa - mas se se
fala de tal forma que apenas seu ponto de vista é o que vale, e não só, faz com
que o receptor da mensagem fique totalmente sem jeito, sim, meu caro, você foi
grosseiro. Dizer para alguém sobre sua roupa, a combinação de cores,
inicialmente não é um problema. Obrigá-lo a entender que as escolhas dele são
as piores, inclusive querendo que aja, a partir de então, da forma que o BFF quer,
houve uma transgressão problemática: a da grosseria. A sinceridade se
transforma, e sim, pode causar transtornos de relacionamento, principalmente
entre pessoas muito íntimas, que começam a interpretar estarem acima da vontade
do outro.
Sinceridade e grosseria são dois lados de uma
mesma moeda. Sua linha, muito tênue, se apresenta quase que para tentarmos
conferir o motivo da sensação de climão. Por excelência, alguém
sincero não é problemático - e, pelo contrário, mais pessoas sinceras (e até
objetivas) facilitam sim o cotidiano e a rotina. Entretanto, se tal postura se
transforma em uma dominação de espaço e de decisões, contando a maneira com que
se expõe isto, sim, a sinceridade se dissolve e, mesmo aqueles a quem temos um
grande apreço, se tornarão pessoas que não desejaremos por perto pela impertinência
do que se fala - o que, infelizmente, é muito comum.
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