Publicado por Guilherme Zufelato
Em vista de certos fins, tornam-se
sórdidos os meios. Vale tudo em Política?
Pensar com (e a partir de) linguagens
artísticas como Teatro, Cinema, Literatura, Música é sempre um desafio. Cada
linguagem possui sua especificidade. Pensar com significa
compreender um enredo fictício como um modo de ver específico do mundo. Uma
ficção, como disse o escritor argentino Jorge Luis Borges, não é uma falsidade
nem reivindica-se como verdade. É apenas válida ou não para nós. Entre profetas
da verdade e eufóricos do falso, pensar com uma peça teatral, um
filme, um livro, uma letra de música é tecer um esforço a fim de refletir sobre
o mundo num entrecruzamento crítico de verdades e falsidades. Uma ficção põe-se
à margem do verificável e é isso, paradoxalmente, o que lhe confere algum
crédito.
O exercício da historiografia (isto é, da
escrita da história) pode nos ensinar a pensar a partir de manifestações
artísticas distintas. Um texto de história busca estabelecer um diálogo
instigante entre o que consideramos como passado e o presente do intérprete
(seu lugar de escrita, seus questionamentos atuais). A representação atualizada
do passado é, portanto, um processo em constante mudança. Isso não quer dizer
que a intriga histórica seja só uma ficção. Não, não. Antes significa que a
história escrita, sempre verificável, é viva e mutável mesmo em seu
comprometimento com um efeito de verdade. Essa é uma característica que a
diferencia de outras modalidades de ficções narrativas. Como exemplo do que
estamos falando, vamos pensar com e a partir do filme Tudo
pelo Poder (2011), de George Clooney*.
Com essa ficção cinematográfica, Clooney nos
convida a pensar historicamente sobre o campo da política. Aparentemente, o
tema central do filme são as disputas entre os candidatos do Partido Democrata
e Republicano à presidência dos Estados Unidos da América, em tempos recentes.
A câmera do diretor, à primeira vista, está direcionada às traições, chantagens
e acordos espúrios, elementos que dão o tom a uma trama de reviravoltas. O
verdadeiro protagonista é Stephen Meyers (Ryan Gosling),
gerente de campanha do democrata Mike Morris (Clooney). A
transformação pela qual passa a personagem Stephen é sem
dúvidas um duro golpe no idealismo utópico de quem ainda hoje mantém a
integridade de relações políticas como horizonte de expectativas. A relação
de Stephen com a estagiária Molly Stearns (Evan
Woody) desencadeia uma avalanche de fragmentos de vidas públicas e revelações
íntimas que, entremeados, compõem um perigoso jogo político.
Além das aparências, já o título original do
filme, em inglês, The Ides of March, faz alusão a um tema
histórico: Idus Martii, 15 de março do ano 44 A.C. pelo calendário
romano, dia do assassinato do ditador Júlio César por homens preocupados em
defender a República romana. Isso é bastante sugestivo. Interpretado como
alegoria narrativa, o filme nos oferece uma história, sugerindo outra de raízes
bem mais antigas.
Uma grande questão trabalhada por Clooney
parece a mesma que animou o imaginário de muitos pensadores ao longo de
séculos, como Nicolau Maquiavel (1469-1527) e William Shakespeare (1564-1616).
Com Maquiavel, podemos pensar a alegoria fílmica a partir da pergunta sobre os
limites das ações políticas à conquista e manutenção do poder: os fins, ainda
que considerados justos, justificam os meios (um assassinato)? Shakespeare, por
sua vez, em torno de 1599, curiosamente enquanto lia Maquiavel, escreveu uma
peça teatral chamada A Tragédia de Júlio César. Mas não é César a
personagem principal, e sim Marco Bruto, mais conhecido pela famosa
frase "Até tu, Bruto?". É possível afirmar que essa peça é uma aula
de Ciência Política. Aqui, importa dizer que essas referências históricas estão
implícitas ao roteiro do filme Tudo pelo Poder. Bastaria pensarmos
a partir da observação atenta dos atos da personagem interpretada por
Gosling, Stephen Meyers.
Alguém morre na ficção política imaginada por
George Clooney. As ações de todas as personagens, a partir desse acontecimento,
tomam uma direção evidentemente não determinada. Em vista de certos fins,
tornam-se sórdidos os meios. Diante desse cenário é que cabe a pergunta: vale
tudo em Política? Finalmente, o filme sugere que pensemos suas várias questões
historicamente, a contar da alusão ao ditador Júlio César feita pelo título em
inglês. Mas podemos também atualizar essas questões numa tentativa de pensar
com o filme, a partir do nosso presente. No atual cenário
político do Brasil, em que vivemos tempos sombrios de conservadorismos extremos
e de luta a todo custo pelo poder, quais os meios estamos realmente dispostos a
cunhar para alcançar determinados fins?
* Em 18 de dezembro de 2015, publiquei um
texto bastante semelhante (sem apenas os dois parágrafos aqui iniciais) sobre a
mesma obra, pela coluna do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da
Cultura (NEHAC) no jornal Correio de Uberlândia. Disponível em:http://www.correiodeuberlandia.com.br/colunas/nehac-2/tudo-pelo-poder/
Último acesso: 01/07/2016.
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