Comportamento
Catrin Nye e Divya Talwar
Do programa Victoria
Derbyshire, da BBC
Mulheres sul-asiáticas contam que são abusadas, roubadas e
abandonadas pelos próprios maridos, muitos deles cidadãos britânicos
Elas realizam o sonho de se casar, mas o sonho dura
pouco: logo são vítimas de abusos físicos e sexuais pelos próprios maridos e
veem seu dinheiro se esvair nas mãos do parceiro, que em geral as abandona - ou
as torna "escravas domésticas" dos novos sogros.
Muitas achavam que teriam uma vida matrimonial no Reino Unido, mas
acabam sendo deixadas em seu país de origem que, na maioria dos casos, é a
Índia.
Esse é um resumo do drama das chamadas "mulheres descartáveis"
sul-asiáticas, segundo um recém-publicado relatório da Universidade de Lincoln,
na Inglaterra.
Os autores do estudo defendem que esses casos sejam tratados como uma
forma de violência doméstica e punidos conforme a lei britânica.
Algumas vítimas chegam a passar um tempo no Reino Unido com seus maridos,
mas depois, durante supostas viagens de férias à Índia, têm seus passaportes
confiscados pelos maridos e ficam por lá.
Como muitas dessas "mulheres descartáveis" têm vergonha de
compartilhar sua história, os pesquisadores dizem ter passado mais de um ano
para encontrar 57 vítimas na Índia dispostas a relatar os abusos e humilhações
da vida matrimonial.
Sunita (de costas) contou à BBC
que sua vida foi “arruinada” pelo abandono do marido
Casamento dos sonhos
Para Sunita (nome fictício), da região indiana do Punjab, o casamento
começou com alegria: com um belo vestido vermelho e uma festa para centenas de
convidados em um grande salão indiano.
"Foi tudo ótimo", ela relembra, enquanto olha o álbum de
fotografias da cerimônia.
Depois do casamento, o marido de Sunita passou um mês com ela na Índia
antes de regressar para o Reino Unido, onde ele morava. Sunita esperava que ele
voltasse para buscá-la e levá-la consigo, mas logo as coisas começaram a
piorar.
"Depois de quase um ano (de casados), ele ainda não havia voltado
(à Índia)", conta Sunita. "Eu perguntava quando ele viria, e ele só
respondia 'Agora não, em algum outro momento'. Ele também exigia muito de mim,
me pedia dinheiro."
Até que o marido parou de falar com ela ao telefone. Ela não o viu mais
- e acabou descobrindo que ele era casado com uma outra mulher em território
britânico.
Dote
Seguindo tradição comum na Índia e em outros países do sul da Ásia, a
família de Sunita havia dado à família do marido quase 3 mil libras (R$ 12,6
mil) em dinheiro e 4 mil libras em ouro (R$ 17 mil), como dote.
Sunita conta que seu pai, um homem de poucos bens, deu o dinheiro na
esperança de oferecer um futuro feliz a sua filha.
Além da perda financeira, Sunita conta que sofreu abusos físicos por
parte dos sogros.
"Eles me batiam apenas por eu perguntar se ele (marido) tinha uma
outra mulher e por que ele havia se casado comigo", conta Sunita.
"Estou muito triste. É difícil falar disso. Ele teve relações
(sexuais) comigo, minha vida está arruinada."
Pesquisadores relatam casos semelhantes em Paquistão e Bangladesh - onde
são comuns casamentos em que um dos cônjuges mora no Reino Unido, Canadá e EUA,
países com uma grande diáspora de sul-asiáticos.
'Produto danificado'
A acadêmica Sundari Anitha, da Escola de Ciências Políticas e Sociais da
Universidade de Lincoln, conversou com diversas vítimas, durante viagens ao
Punjab, Nova Déli e Gujarat.
Pragna Patel quer que esse tipo
de caso seja considerado violência doméstica e punido conforme a lei britânica
Algumas chegaram a pagar o equivalente a R$ 100 mil em dote para logo
serem estupradas e abandonadas por seus maridos. Outras foram transformadas em
serventes domésticas para os pais do noivo.
Anitha explica que, por conta da cultura patriarcal sul-asiática, o
abandono por parte do marido é capaz de arruinar a vida dessas mulheres, a
ponto de até as irmãs delas terem dificuldade em se casar.
"O estigma é enorme e tem um grande impacto na família", conta
a pesquisadora. "A mulher não conseguirá emprego, enfrentará insegurança
financeira e será vista como um produto 'danificado' - sobretudo pela presunção
de que ela teve relações sexuais."
O relatório da Universidade de Lincoln recomenda que o governo britânico
reconheça o abandono como uma forma de violência e ofereça proteção às mulheres
"descartadas" por maridos com cidadania britânica, mesmo que elas
jamais tenham estado no Reino Unido.
Pragna Patel, diretora do grupo ativista Southhall Black Sisters, que
ajudou na produção do estudo, diz que tal medida daria a essas mulheres a
chance de obter algum tipo de reparação.
Segundo o grupo, elementos do processo de abandono - como as exigências
de dinheiro, a fraude, o abuso físico, emocional e financeiro, o comportamento
coercivo e a servidão doméstica - podem ser processados judicialmente sob leis
já existentes no Reino Unido. "Mas poucos perpetradores sofrem
consequências, se é que algum chega a sofrer", diz.
Além disso, muitas vítimas desconhecem seus direitos ou sentem vergonha
de relatar o abuso sofrido.
Patel afirma, porém, que uma vez que esses casos sejam oficialmente
reconhecidos como violência doméstica, diversos caminhos legais se abririam a
essas mulheres.
Sundari Anitha, que pesquisou o tema para a Universidade de
Lincoln, diz que vítimas passam por forte estigma social
'É como um negócio'
Em comunicado, o Departamento do Interior britânico disse que "o
governo não tolerará abusos em casamentos ou outros relacionamentos" e que
"analisará com cuidado ações que possam ajudar a prevenir abusos ou
amparar vítimas".
Enquanto isso, Patel conta que, no mês passado, seu grupo ativista se
deparou com o caso de um homem que havia se casado com cinco mulheres
diferentes - e abandonado todas elas, depois se beneficiar financeiramente dos
matrimônios.
"Era como um negócio para ele", diz Patel.
"Esses homens são cidadãos britânicos. Se o Estado britânico fizer
vista grossa ou for indiferente a esse abuso, contribuirá com essa cultura de
impunidade. Temos que acordar para o fato de que está emergindo uma violência
transnacional contra mulheres."
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