Entretenimento/Música
Publicado por Homero Nunes
“Aqui Jazz! e
blues e rock...
Foi um sujeito interessado em coisas que compensam: arte, literatura, filosofia. Viveu com poucos recursos e muitas ideias. Pensamentos soltos e devaneios prolixos. Amava as artes e as viagens. Também o cinema. Nostálgico, estudou história, tirou muitas fotos e algumas memórias. Acumulador, colecionou LPs, livros, angústias e bric-à-bracs. Fez o mestrado em Sociologia, acabou professor. Da despedida, em forma de obituário, cunhou o seu epitáfio:
Jornalista, historiador e professor: morreu de fome. Você tem fome de quê?”
Foi um sujeito interessado em coisas que compensam: arte, literatura, filosofia. Viveu com poucos recursos e muitas ideias. Pensamentos soltos e devaneios prolixos. Amava as artes e as viagens. Também o cinema. Nostálgico, estudou história, tirou muitas fotos e algumas memórias. Acumulador, colecionou LPs, livros, angústias e bric-à-bracs. Fez o mestrado em Sociologia, acabou professor. Da despedida, em forma de obituário, cunhou o seu epitáfio:
Jornalista, historiador e professor: morreu de fome. Você tem fome de quê?”
Espancada desde a
pequena infância, filha de um casal de adolescentes e da miséria, violentada e
quase estuprada aos 10, reformatório católico por causa disto, estuprada aos
12, prostituída, presa por prostituição, presa por drogas, marcada à pele pelo
racismo, sofrida, mal amada, incompreendida e, apesar de tudo ou por causa de
tudo, Billie Holiday se tornou a maior diva da história do Jazz.
Billie Holiday *07 de abril de 1915 +17 de
julho de 1959
Pela década mais genial da carreira, 1933 –
1944, Billie Holiday nunca recebeu nada em direitos autorais. Nos anos
seguintes, também geniais, quase nada, uma mixaria. Era contratada como cantora
esporádica das gravadoras e recebia 15, 20 ou 30 dólares por sessão, 75 no
auge. Era só. Vendia sua voz por míseros dólares para quem ganhava milhares e
milhares com ela. No longo prazo, milhões. Mais de 50 discos lançados, centenas
de músicas. Nem mesmo como compositora recebeu tostões. Recebia quando cantava
e – fosse no rádio, no estúdio, no bar ou no teatro – era só o que recebia. Por
isso, cantava sem parar, em vários lugares, com todo mundo, por todo lado.
Vivia na estrada, na noite, no jazz. A vida
já tinha sido dura demais quando a música virou o sentido dela. Descobriu o
talento pela necessidade. Cantar era uma opção para matar a fome. Uma voz
única, tipo ideal, arquétipo. Tão necessária e característica para a música
americana quanto Van Gogh para a história da arte (contando que a música
americana mudou o século XX e que Van Gogh foi o mais malogrado gênio da
pintura). Assombrada pelo espírito da arte, brilho do jazz, Billie Holiday veio
das profundezas das adversidades para provar que a humanidade ainda não
fracassara por completo.
Nasceu em 07 de abril de 1915, em Filadélfia,
mas foi criada em Baltimore, terra de Edgar Alan Poe e d’O Corvo. Descendente
de uma escrava amasiada com um irlandês, era branca demais para a família da
mãe e preta demais para o resto do mundo. A mãe tinha 13 anos no parto, o pai
15. Foi criada na casa da bisavó, a tal do irlandês, que lhe morreu nos braços
junto com a infância. Apanhava diariamente da tia, depois que a mãe foi tentar
a vida em Nova York. Acabou que não era moça de família.
Na adolescência, lavando degraus brancos e
banheiros alheios, conheceu o blues de Bessie Smith e o sopro de Louis
Armstrong no bordel da esquina. Trabalhava para escutar a vitrola e delirar no
som. Ficou mal falada por entrar naquela casa, mas já era mesmo, desde o dia em
que foi condenada ao reformatório por escapar do estupro. Um vizinho chegou a
arrastá-la e prendê-la na cama, mas, por pouco, a polícia invadiu o quarto de
onde se ouvia os gritos da garota de 10 anos. Foi culpada por se insinuar
sexualmente para o homem, aquela criança. Mandaram-na às freiras. Aos 12 um homem
de 40 a estuprou no chão da sala da avó e a mandou para uma temporada no
inferno. Nem chegou a denunciá-lo, pois já tinha aprendido como a justiça
funcionava para ela: culpada por ter nascido. Aos 14 chegou ao Harlem e
sobreviveu graças à ajuda da cafetina que a oferecia por centavos aos pacatos
cidadãos brancos de dignidade. Quando se recusou a atender um cliente mais
violento, foi denunciada e presa por prostituição. Cadeia nela. Voltaria outras
vezes por drogas, confusões, desacatos e, de novo, por ter nascido.
Do encontro com a mãe, apenas 13 anos mais
velha, em Nova York, fez de tudo para sobreviver. Até roubou. Quando apertava
demais, era puta, mas não levava jeito para a coisa, nem para ladra. Um dia,
desesperada, tentou uma vaga de dançarina em uma boate. Não sabia mais de dois
passos. Desengonçada na dança, cantarolou a letra. O pianista a mandou parar a
dança e fazer aquilo de novo. “O que? Cantar?” Sim. Ela nem sabia que cantava.
Foi imediatamente contratada, pelo preço das gorjetas das mesas, sem fixo. Na
primeira noite chegou em casa com mais dinheiro que o do sexo. Descobriu que a
noite também podia lhe dar a dignidade e os aplausos. Podia ser gente.
Abandonou Eleanora na sarjeta e assumiu a
estrela de Billie Holiday. Eleanora Fagan Gough foi o seu nome de batismo,
“Lady Day” o título que ganhou pelo talento, Billie Holiday o nome que escolheu
para dobrar a vida e enganar o destino. Com ele subiu, virou uma lenda imortal
do jazz. Música eterna. Diva. Um gênio da voz, por força da pobreza.
Na Renascença do Harlem, convivendo com os
melhores músicos de jazz de sempre, cresceu na música, ocupou espaço entre
metais e pianos. Levantava notas como trompetes, cantava como sopros de sax,
usava a voz como instrumentos de jazz. Chorava o sofrimento em melodia,
emocionada. Sem estudo além da quinta série, nunca estudou música, o feito
vinha da alma. Há quem diga que vinha da dureza da vida. Tornou-se a maior diva
da era do jazz, entre monstros como Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan. Nina
Simone.
Billie Holiday & Ella
Fitzgerald
Lady Day ficou respeitada entre os músicos,
acompanhou os seus ídolos, inclusive Louis Armstrong, o culpado do seu amor
pela música. Foi acompanhada por eles. Benny Goodman, Lester Young, Teddy
Wilson e mais uma infinidade medalhões gravaram com ela. Lotou shows no
Carnegie Hall, no Apollo e quaisquer espeluncas nas quais desse as graças.
Viajou pela América lutando para ser artista, contra o racismo, contra o
machismo, contra a maré. Depois conquistou a Europa e o mundo. Mas nem o
estrelato lhe deu sossego do malho.
Louis Armstrong, Billie Holiday & Barney Bigard
Entre a genialidade de sua música e a dureza
da vida, apanhava também dos homens, dos armários, das maçanetas das portas...
olhos roxos por culpa da pia do banheiro. Amor sem correspondência, pior
miséria depois da pobreza. Foi explorada, roubada, enganada, abusada, agredida,
chantageada, traída e abandonada por eles. Mal amada de carteirinha, condenada
à solidão. Ninguém era dela, ainda que fosse de todos.
Quanto mais famosa, maiores os problemas. A
polícia lhe perseguia devido às drogas, o fisco por sonegação do que nem tinha,
a justiça porque tinha nascido, os brancos porque era negra, os homens porque
era mulher, as mulheres porque era famosa, os músicos porque tinham inveja
dela. Mas nada lhe doía tanto quanto o racismo. Sentia na pele o peso da
estratificação racial nos Estados Unidos. Teve que enfrentar o preconceito na
raça, dar a sua parcela de luta pela humanidade. Seu maior sucesso, “Strange
Fruit”, é uma canção de protesto contra a segregação e o racismo. Um Hino.
Count Basie & Billie
Holiday
Heroína do jazz, heroína nas veias. Viciou-se
em agulhas e fumos, nunca sem o Bourbon e o cigarro que lhe destruíram a voz
antes dos 40. Não bebia champanhe. Para muitos, a decadência lhe aumentou o
talento, na rouquidão da voz, na tristeza que impunha ao cantar. Olhos cheios
d’água, veias estufando no pescoço, a garganta estourando, pulmões buscando
fôlego como se nada fosse mais importante que aquela nota, que aquele refrão,
que aquela música. Estraçalhada, dilacerada pela vida, ainda era o gênio de
Billie Holiday.
Morreu aos 44, numa cama de hospital, triste
e solitária. Toda desgraçada, sem fígado, sem pulmões, sem forças, infeccionada,
envenenada pelas drogas. Sem voz. 750 dólares enfiados na vagina. 15 notas de
50, enroladas e amarradas. Era tudo que tinha. Seu funeral foi bancado pelos
fãs, aos milhares. Ainda hoje, no seu centenário, é uma das maiores cantoras de
todos os tempos, de todos os estilos, a maior da era do jazz. Eterna Lady Day.
Compensa "a autobiografia
dilacerada" de Billie Holiday, publicada no Brasil pela Zahar:
e a biografia de "Strange
Fruit", publicada no Brasil pela Cosac Naify:
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