segunda-feira, 3 de outubro de 2016

POLÍTICA BRASILEIRA E A ALQUIMIA DAS VERDADES E DAS MENTIRAS

 Política: ideias












Publicado por João Lopes


"Pode ser que a minha verdade seja para ti mentira..." - Saramago




Em um dos episódios de Downton Abbey em que a incrível Maggie Smith aparece como a Violet Crawley, a Condessa viúva de Downton, ela diz após uma discussão de suas netas sobre uma questão controvertida que “a verdade não é uma, nem outra, o importante é o que se quer fazer parecer”. Embora Downton Abbey seja uma série que se proponha a contar a entrada da aristocracia inglesa no século XX, a fala da personagem de Maggie Smith tornou-se um imperativo em nossa época.
É bem verdade que a realidade é um elemento que se constrói pessoalmente, portanto ninguém que esteja vivendo alheio às possíveis lógicas de realidade de nossa época está, efetivamente, desejando viver fora do que seria real ao padrão da crença média social. É nesse ambiente que surgem as narrativas do irreal, ainda que baseadas em elementos puramente concretos, às vezes até mesmo dados estatísticos.
Realmente, mesmo dados estatísticos podem ser interpretados de maneira absurdamente diferente por duas ou mais pessoas, isso porque tendemos a condicionar nossas interpretações das coisas em variantes subjetivas com elementos do repertório interior que trazemos em nós mesmos. Por isso, mesmo cientistas e pesquisadores de diferentes áreas cometem previsões erradas sobre dados eventos, ainda que não haja nenhum erro em seus dados estatísticos.
Nesse processo, de construção da realidade, seja social ou pessoal, o senso comum é um elemento a ser considerado, de fato. Primeiro porque essa percepção comum a todos em um determinado ambiente define o tipo de interpretação que o individuo pessoalmente irá fazer de todas as coisas. E é aqui que entra o título desse texto, e a fala célebre da Violet Crawley, porque a verdade – como princípio absoluto – pode ser tornada apenas em uma aparência, ou em uma narrativa minimamente aceitável.
Em nossa sociedade, na constante dialética ruim da política brasileira, por exemplo, embora as discussões aparentemente estejam buscando a prevalência da verdade, se observarmos bem, notaremos que o ponto comum de qualquer discussão sobre a “verdade dos fatos” é a busca de qual narrativa – política – prevalecerá. Portanto as discussões não estão necessariamente versando sobre a verdade, mas sobre qual discurso político se tornará hegemônico.
Em outras palavras, isso significa que mesmo a busca da verdade em determinados momentos da convivência social, não representa nenhuma verdade em si, mas o oferecimento de uma razoável narrativa de fatos. Isso pode soar para os mais ortodoxos como uma relativização feroz da verdade e da realidade, o que é igualmente aceitável que soe, porque em qualquer ambiente plural uma verdade para alguns pode ser uma mentira para outros.
Essas coisas, quando aplicadas ao nosso contexto político-social, dão provas de que o regime político adotado pela maioria das sociedades modernas funciona e se expande o tempo inteiro, porque se a verdade é um elemento em constante transformação, mesmo que seja somente a aparência de verdade, todos os grupos possuem o direito de oferecer a sua verdade aparente como discurso.
Diretamente, isso deveria propor uma melhora em nossos ambientes políticos, econômicos e na sociedade como um todo, no entanto, quando esse processo é deliberadamente tomado pelo autoritarismo de qualquer grupo, por meio da violência – expressa em suas variadas formas – há o sufocamento do processo natural de construção da realidade social, e abrem-se espaços para todo tipo de fundamentalismo.
Ora, tudo que vemos surgir e crescer no Brasil, nestes últimos anos, é o aprofundamento de grupos que não apenas lutam por definir qual a narrativa política prevalecerá, como também quais serão os únicos fatos possíveis sobre os quais se construirão as verdades. Esse último fator corresponde exatamente a um tipo sutil e crescente de autoritarismo. Não fosse assim, conseguiríamos compreender, em nossas discussões nos mais variados ambientes, que o outro pode pensar diferente e simplesmente prosseguirmos com nossas relações.
No entanto, como as questões versam já exclusivamente não sobre como ler os acontecimentos, mas sim como definir como eles aconteceram, não se tolera que exista outra forma de acontecimento do fato, sem que isso represente no outro alguma deficiência, limitação ou falha de caráter. Isso significa exatamente que pensar diferente não é mais parte de uma democracia forte e uma sociedade plural, mas sim de desonestidade intelectual, burrice ou simplesmente vontade de ofender a subjetividade alheia, pois a discussão não se concentra em uma narrativa da verdade, mas em perseguir uma definição absoluta dos fatos.
Por isso, em discussões, geralmente, a ofensa é direcionada a pessoa em si, e não aos seus argumentos ou ideias. Obviamente que isso traz o tipo de pensamento em que alguém que seja incapaz de definir os fatos como eu mesmo defino, não é alguém minimamente honesto ou aceitável, portanto é digno de escárnio e bloqueio. Essa eliminação do pensamento diferente gerada pela absolutização dos fatos ignora a ética e dogmatiza a política.
Assim, enquanto não superamos nossa afeição a definir – sem que se permita ao outro dizer diferente – quais são os fatos sobre os quais se fundarão nossas verdades, ou nossas aparências de verdades, estaremos incorrendo em um tipo sutil de autoritarismo, sob o qual se esconde nosso fundamentalismo ideológico, mas que, embora sutil, é profundamente destruidor da diversidade, da liberdade e, consequentemente, do próprio individuo.

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