Política: ideias
Publicado por João Lopes
"Pode ser que a minha verdade seja
para ti mentira..." - Saramago
Em um dos episódios de Downton Abbey em que a
incrível Maggie Smith aparece como a Violet Crawley, a Condessa viúva de
Downton, ela diz após uma discussão de suas netas sobre uma questão
controvertida que “a verdade não é uma, nem outra, o importante é o que se quer
fazer parecer”. Embora Downton Abbey seja uma série que se proponha a contar a
entrada da aristocracia inglesa no século XX, a fala da personagem de Maggie
Smith tornou-se um imperativo em nossa época.
É bem verdade que a realidade é um elemento
que se constrói pessoalmente, portanto ninguém que esteja vivendo alheio às
possíveis lógicas de realidade de nossa época está, efetivamente, desejando
viver fora do que seria real ao padrão da crença média social. É nesse ambiente
que surgem as narrativas do irreal, ainda que baseadas em elementos puramente
concretos, às vezes até mesmo dados estatísticos.
Realmente, mesmo dados estatísticos podem ser
interpretados de maneira absurdamente diferente por duas ou mais pessoas, isso
porque tendemos a condicionar nossas interpretações das coisas em variantes
subjetivas com elementos do repertório interior que trazemos em nós mesmos. Por
isso, mesmo cientistas e pesquisadores de diferentes áreas cometem previsões
erradas sobre dados eventos, ainda que não haja nenhum erro em seus dados
estatísticos.
Nesse processo, de construção da realidade,
seja social ou pessoal, o senso comum é um elemento a ser considerado, de fato.
Primeiro porque essa percepção comum a todos em um determinado ambiente define
o tipo de interpretação que o individuo pessoalmente irá fazer de todas as
coisas. E é aqui que entra o título desse texto, e a fala célebre da Violet
Crawley, porque a verdade – como princípio absoluto – pode ser tornada apenas
em uma aparência, ou em uma narrativa minimamente aceitável.
Em nossa sociedade, na constante dialética
ruim da política brasileira, por exemplo, embora as discussões aparentemente
estejam buscando a prevalência da verdade, se observarmos bem, notaremos que o
ponto comum de qualquer discussão sobre a “verdade dos fatos” é a busca de qual
narrativa – política – prevalecerá. Portanto as discussões não estão
necessariamente versando sobre a verdade, mas sobre qual discurso político se
tornará hegemônico.
Em outras palavras, isso significa que mesmo
a busca da verdade em determinados momentos da convivência social, não
representa nenhuma verdade em si, mas o oferecimento de uma razoável narrativa
de fatos. Isso pode soar para os mais ortodoxos como uma relativização feroz da
verdade e da realidade, o que é igualmente aceitável que soe, porque em
qualquer ambiente plural uma verdade para alguns pode ser uma mentira para
outros.
Essas coisas, quando aplicadas ao nosso
contexto político-social, dão provas de que o regime político adotado pela
maioria das sociedades modernas funciona e se expande o tempo inteiro, porque
se a verdade é um elemento em constante transformação, mesmo que seja somente a
aparência de verdade, todos os grupos possuem o direito de oferecer a sua
verdade aparente como discurso.
Diretamente, isso deveria propor uma melhora
em nossos ambientes políticos, econômicos e na sociedade como um todo, no
entanto, quando esse processo é deliberadamente tomado pelo autoritarismo de
qualquer grupo, por meio da violência – expressa em suas variadas formas – há o
sufocamento do processo natural de construção da realidade social, e abrem-se
espaços para todo tipo de fundamentalismo.
Ora, tudo que vemos surgir e crescer no
Brasil, nestes últimos anos, é o aprofundamento de grupos que não apenas lutam
por definir qual a narrativa política prevalecerá, como também quais serão os
únicos fatos possíveis sobre os quais se construirão as verdades. Esse último
fator corresponde exatamente a um tipo sutil e crescente de autoritarismo. Não
fosse assim, conseguiríamos compreender, em nossas discussões nos mais variados
ambientes, que o outro pode pensar diferente e simplesmente prosseguirmos com
nossas relações.
No entanto, como as questões versam já
exclusivamente não sobre como ler os acontecimentos, mas sim como definir como
eles aconteceram, não se tolera que exista outra forma de acontecimento do
fato, sem que isso represente no outro alguma deficiência, limitação ou falha
de caráter. Isso significa exatamente que pensar diferente não é mais parte de
uma democracia forte e uma sociedade plural, mas sim de desonestidade
intelectual, burrice ou simplesmente vontade de ofender a subjetividade alheia,
pois a discussão não se concentra em uma narrativa da verdade, mas em perseguir
uma definição absoluta dos fatos.
Por isso, em discussões, geralmente, a ofensa
é direcionada a pessoa em si, e não aos seus argumentos ou ideias. Obviamente
que isso traz o tipo de pensamento em que alguém que seja incapaz de definir os
fatos como eu mesmo defino, não é alguém minimamente honesto ou aceitável,
portanto é digno de escárnio e bloqueio. Essa eliminação do pensamento
diferente gerada pela absolutização dos fatos ignora a ética e dogmatiza a
política.
Assim, enquanto não superamos nossa afeição a
definir – sem que se permita ao outro dizer diferente – quais são os fatos
sobre os quais se fundarão nossas verdades, ou nossas aparências de verdades,
estaremos incorrendo em um tipo sutil de autoritarismo, sob o qual se esconde
nosso fundamentalismo ideológico, mas que, embora sutil, é profundamente
destruidor da diversidade, da liberdade e, consequentemente, do próprio
individuo.
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