“Quando
se quer bem a uma pessoa a presença dela conforta. Só a presença, não é
necessário mais nada.”
“Queria
endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando
emendo um período — riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões,
suprimir todas as letras, não deixar vestígio de idéias obliteradas.”
Graciliano
Ramos
Biografia
(Masceu
em Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 — 20 de março de 1953, Rio de Janeiro) foi um romancista,cronista, contista, jornalista político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por seu livro VidasSecas (1938)
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Primeiro de dezesseis irmãos de uma família de
classe média do sertão nordestino, ele viveu os primeiros anos em diversas
cidades do Nordeste brasileiro, como Buíque (PE),
Viçosa
e Maceió
(AL). Terminando o segundo grau em Maceió, seguiu para o Rio de Janeiro, onde passou um tempo trabalhando como jornalista.
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília,
Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste
bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante
em Palmeira dos Índios, Alagoas.
Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927,
tomando posse no ano seguinte. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril
de 1930. Segundo uma das auto-descrições, "(...)
Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem
estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram
a atenção de Augusto Frederico
Schmidt, editor carioca que o animou
a publicar Caetés
(1933)
Entre 1930 e 1936 viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial,
professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934 havia publicado São Bernardo,
e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso em decorrência
do pânico insuflado por Getúlio Vargas após a Intentona Comunista de 1935. Com ajuda de amigos, entre os quais José Lins do Rego, consegue publicar Angústia (1936), considerada por muitos críticos como sua melhor obra.6
Em 1938 publicou VidasSecas.
Em seguida estabeleceu-se no Rio de Janeiro, como inspetor federal de ensino.
Em 1945 ingressou no antigo Partido Comunista do Brasil
- PCB (que nos anos sessenta dividiu-se em Partido Comunista
Brasileiro - PCB - e Partido Comunista
do Brasil - PCdoB),
de
orientação soviética
e sob o comando de Luís Carlos Prestes;
nos anos
seguintes, realizaria algumas viagens a países europeus com a segunda esposa, Heloísa Medeiros Ramos,
retratadas no livro Viagem
(1954). Ainda em 1945, publicou Infância, relato autobiográfico.
Adoeceu gravemente em 1952. No começo de 1953 foi internado, mas acabou falecendo em 20 de março
de 1953, aos 60 anos, vítima de câncer do pulmão.
UM
CINTURÃO
Conto de Graciliano
Ramos
As minhas primeiras relações com a justiça
foram dolorosas e deixaram- me funda impressão.
Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu.
Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a
entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto
era natural.
Os golpes que recebi antes do caso do
cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha
mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas
sangrentas. Moído, girando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas
grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água
de sal — e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava,
condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa,
em querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele,
a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história
do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.
Meu pai dormia na rede, armada na sala
enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita,
os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo
com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da
ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma
exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia
habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes,
que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A
força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.
Débil e ignorante, incapaz de conversa
ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor
não me segurasse, tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao
açude, pela do corredor acharia o pé de turco. Devo ter pensado nisso, imóvel,
atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía
surgissem de repente, me livrassem daquele perigo.
Ninguém veio, meu pai me descobriu
acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente,
reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil
explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da
raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam,
desprovidos de significação.
Não consigo reproduzir toda a cena.
Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros
de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui
sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.
Onde estava o cinturão? Impossível
responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão
apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da
minha infância, e as consequências delas me acompanharam.
O homem não me perguntava se eu tinha
guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus
gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.
Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir
uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a
voz emperra, a vista escurece, uma cólera
doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de quem fura os tímpanos
com pontas de ferro.
Onde estava o cinturão? A pergunta
repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.
A fúria louca ia aumentar, causar-me
sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos
frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro
entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros
eram inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu
pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no
quintal.
Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá
Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na
garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os
cortiços enchendo-me os ouvidos — e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea,
sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás dos caixões, livre do
martírio.
Havia uma neblina, e não percebi direito
os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A
mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro
fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber
que rogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu
amigo, era um pobre-diabo.
Achava-me num deserto. A casa escura,
triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios
e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se portas e as janelas do teto negro pendiam
teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem
dolorosa.
Junto de mim, um homem furioso,
segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito
fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C,
valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na
sala como carrapeta, eram menos um sinal de dor que a explosão do medo
reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões,
movia-me, num desespero.
O suplício durou bastante, mas, por
muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase
preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a
mastigar uma interrogação incompreensível.
Solto, fui enroscar-me perto dos
caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com
os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar
as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o
maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e
entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça,
a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me
abatia, aniquilado.
Pareceu-me que a figura imponente
minguava — e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu
o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se
aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.
Sozinho, vi-o de novo cruel e forte,
soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante
e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.
Foi esse o primeiro contato
que tive
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