CONTO
De Lima Barreto
Quando naquele dia São Pedro
despertou, despertou risonho e de bom humor. E, terminados os
cuidados
higiênicos da manhã, ele se foi à competente repartição celestial buscar ordens
do Supremo e saber que almas chegariam na próxima leva.
Em
uma mesa longa, larga e baixa, em grande livro aberto se estendia e debruçado
sobre ele, todo entregue ao serviço, um guarda-livros punha em dia a
escrituração das almas, de acordo com as mortes que Anjos mensageiros e
noticiosos traziam de toda extensão da terra. Da pena do encarregado celeste
escorriam grossas letras, e de quando em quando ele mudava a caneta para melhor
talhar um outro caráter caligráfico.
Assim
páginas ia ele enchendo, enfeitadas, iluminadas em os mais preciosos tipos de
letras. Havia no emprego de cada um deles, uma certa razão de ser e entre si
guardavam tão feliz disposição que encantava o ver uma página escrita do livro.
O nome era escrito em bastardo, letra forte e larga; a filiação em gótico,
tinha uma ar religioso, antigo, as faltas, em bastardo e as qualidades em ronde
arabescado.
Ao
entrar São Pedro, o escriturário do Eterno, voltou-se, saudou-o e, à reclamação
da lista d’almas pelo Santo, ele respondeu com algum enfado (endado do ofício)
que viesse à tarde buscá-la.
Aí
pela tardinha, ao findar a escrita, o funcionário celeste (um velho jesuíta
encanecido no tráfico de açúcar da América do Sul) tirava uma lista explicativa
e entregava a São Pedro a fim de se preparar convenientemente para receber os
ex-vivos no dia seguinte.
Dessa
vez ao contrário de todo o sempre, São Pedro, antes de sair, leu de antemão a
lista; e essa sua leitura foi útil, pois que se a não fizesse talvez, dali em
diante, para o resto das idades - quem sabe? - o Céu ficasse de todo estragado.
Leu São Pedro a relação: havia muitas almas, muitas mesmo, delas todas, à vista
das explicações apensas, uma lhe assanhou o espanto e a estranheza. Leu
novamente. Vinha assim:
P.
L. C., filho de..., neto de..., bisneto de... – Carregador, quarenta e oito anos.
Casado. Casto. Honesto. Caridoso. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São
Francisco de Assis. Virtuoso como São Bernardo e meigo como o próprio Cristo. É
um justo.
Deveras,
pensou o Santo Porteiro, é uma alma excepcional; como tão extraordinárias qualidades
bem merecia assentar-se à direita do Eterno e lá ficar, per saecula
saeculorum, gozando a glória perene de quem foi tantas vezes Santo...
–
E porque não ia ? deu-lhe vontade de perguntar ao seráfico burocrata.
–
Não sei, retrucou-lhe este. Você sabe, acrescentou, sou mandado...
–
Veja bem nos assentamentos. Não vá Ter você se enganado. Procure, retrucou por
sua vez o velho pescador canonizado.
Acompanhado
de dolorosos rangidos da mesa, o guarda-livros foi folheando o enorme Registro,
até encontrar a página própria, onde com certo esforço achou a linha adequada e
com o dedo afinal apontou o assentamento e leu alto:
–
P. L. C., filho de..., neto de..., bisneto de... – Carregador. Quarenta e oito
anos. Casado. Honesto. Caridoso. Leal. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São
Francisco de Assis. Virtuoso como São Bernardo e meigo como o próprio Cristo. É
um justo.
Levando
o dedo pela pauta horizontal e nas "Observações", deparou qualquer
coisa que o fez dizer de súbito:
–
Esquecia-me... Houve engano. É! Foi bom você falar. Essa alma é a de um negro.
Vai para o purgatório.
Revista Souza Cruz, Rio, agosto 1924
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